Somos gente cuidando de gente, por Maria Alice Sena

As mulheres acostumaram-se a demonstrar afeto com menos pudor e, portanto, fazem esse papel, com mais naturalidade.

O anúncio da descoberta de um novo Coronavírus, na China, causador de doença respiratória grave, de alta transmissibilidade, pegou-nos de surpresa, justamente, em uma época em que nos preparávamos para receber a chegada de um novo ano com expectativas e planos de dias melhores. Como boa brasileira que sou, quis me fazer crer que demoraríamos para ser atingidos pelo mal e, se assim o fôssemos, tiraríamos de letra a situação.

A medida em que os dados foram sendo divulgados e pudemos tomar ciência do potencial de gravidade da Covid-19, principalmente, quanto à sua alta transmissibilidade, começou a surgir um sentimento de apreensão, associado à ansiedade de mover todos os esforços para nos prepararmos para o enfrentamento. Momentos de muita luta nos aguardavam pela frente e precisávamos estar prontos, física e psicologicamente, para a situação.

Como Diretora Médica de uma unidade de referência em doenças infecciosas e parasitárias que passaria a ser dedicada a Covid-19, vivi momentos de muita angústia, pela incerteza causada pelo desconhecido. Desconhecíamos os mecanismos de ação do vírus, desconhecíamos tratamentos eficazes, desconhecíamos a magnitude de disseminação que o vírus teria entre nós. Entretanto, em face do múnus assumido, foi preciso superar todos os medos e partir para o trabalho. Apoiando-nos, uns aos outros, fomos vencendo, dia pós dia, as incertezas e nos aparelhando, ao máximo, para o enfrentamento desse inimigo oculto.

Quando tudo parecia começar estar se ajustando, modificamos o hospital todo, transformando uma unidade de 120 leitos com 20 leitos de UTI, em outro de 159 leitos, com 89 leitos de UTI, em cerca de três meses.  Realizamos contratações, treinamentos, elaboramos protocolos assistenciais, baseados nos trabalhos científicos que iam sendo publicados, criamos serviços de apoio as familiares. Enfim, nos estruturamos da melhor forma para darmos a melhor assistência aos pacientes e, para isso, trabalhamos exaustivamente, de domingo a domingo. A vida, a sua preservação, pede urgência.

Em meio a esse turbilhão de acontecimentos, fomos assaltados pelas notícias falsas de tratamentos miraculosos. Mas, pior do que as ditas “fake news”, o que, realmente, nos causou indignação, foi termos que lidar com profissionais de saúde e autoridades querendo ganhar protagonismo, ao espalhar notícias contrárias às evidências científicas, relacionadas à existência de tratamentos precoces para a doença, assim como profilaxias. Nós, profissionais de saúde sérios, tivemos, muitas vezes, que irromper o silêncio e travar discussões desgastantes, em nome da ciência e da preservação da vida dos pacientes.

Esta pandemia tem desestabilizado a todos nós, pessoas vulneráveis lutando contra um vírus que a cada instante mostra um potencial diferente de causar danos, aliado à necessidade premente de modificarmos o nosso padrão de comportamento, atentando tratar-se de um problema coletivo que requer conscientização e responsabilidade social. As atitudes focadas em interesses puramente individualizados, não vão nos ajudar a controlar a pandemia, é necessário um olhar para a coletividade, agirmos em prol do bem comum.

Em nenhum momento. experenciamos a situação que estamos vivendo. Um ano convivendo com um agente infeccioso que só se fortalece, auxiliado pela falta de adesão da população às regras de distanciamento social, uso de máscaras e higiene das mãos potencializada com uso de álcool a 70%, e ao desserviço ocasionado pela disseminação de notícias falaciosas que geram, na população, a sensação de falsa segurança e banalização dos riscos, além de levarem descrédito aos profissionais dedicados que não se submetem a prescrever tratamentos  que vão na contramão das evidências científicas e ferem os princípios éticos da medicina.

A perspectiva da vacina trouxe-nos,  com muita emoção, uma luz ao final do nebuloso túnel, de, enfim, haver algo palpável que pudesse frear a transmissão do SARSCoV2, mas, ainda assim, sem uma expectativa concreta de quando poderemos comemorar a vacinação em massa da população, no percentual que nos garanta a interrupção da cadeia de  transmissão epidêmica do vírus.

Enquanto ser humano, hoje, sinto inquietude e incompreensão, não consigo identificar qual patologia psíquica coletiva que parte da população está padecendo que nega a ciência, que se contrapõe às vacinas, produtos comprovadamente seguros que livraram a humanidade de diversas mazelas e optam, contrário sensu, por adotar uma atitude francamente negacionista, ao se manterem em aglomerações, comemorando, como se não houvesse amanhã, e disseminando a ideia de que tudo quanto a ciência mostrou ser ineficaz para controle e tratamento da Covid-19 é apenas tendenciosidade de um grupo que nega as evidências, por questões políticas e divergências ideológicas.

Enquanto não nos unificarmos e nos fortalecermos como nação, não seremos capazes de vencer nenhum dos males que nos afligem, nem a fome, nem o desemprego, nem a desigualdade social, nem a intolerância racial, religiosa e de  orientação sexual e, muito menos, a Covid-19. Somos um povo dividido e precisamos nos empoderar, com isenção ideológica, para compreender que o momento requer atenção, compreensão, cooperação, união e conhecimento, o conhecimento é libertador! Não podemos retardar, nem mais um segundo, precisamos nos unir na luta contra um mal que é universal.

Por último, por, neste momento, ser esta uma questão secundária, o falar focado em gênero, quero enfatizar que ser mulher nesta pandemia, também, não é tarefa fácil. Infelizmente, a mulher ainda não desfruta da total igualdade material com as pessoas do gênero masculino e persistem desdobrando-se em múltiplas tarefas. A mulher, profissional de saúde, carrega hoje um peso além de suas forças, com jornadas exaustivas fora e dentro de casa. Não podemos dizer que há impactos diferentes baseados, exclusivamente, em questão de gênero, mas, posso afiançar que as mulheres, hoje, já se constituem na maioria da força de trabalho e, apesar de já estarmos em fase de superação dessa dicotomia – homem X mulher, ainda se atribui às mulheres um olhar mais maternal e acolhedor no tratamento com o outro. As mulheres acostumaram-se a demonstrar afeto com menos pudor e, portanto, fazem esse papel, com mais naturalidade.

É preciso, proativamente, ter um olhar diferenciado para com os profissionais da linha de frente de cuidados da Covid-19. Estamos no limite de nossas forças, tanto físicas, quanto psicológicas, lidamos com pacientes graves, todo o tempo, com mortes prematuras ou antecipadas na história de vida das pessoas acometidas pela  Covid-19 que, em última instância, refletem a nossa própria vulnerabilidade. Somos gente cuidando de gente, gente que tem pai, mãe, filhos, irmãos, amigos; gente que sente medo e tristeza; gente que sofre e chora as dores alheias. Portanto, pedimos: Por amor, não deixem esse vírus continuar se expandindo entre nós!

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