Lições de Sharpeville que atravessaram os oceanos do tempo

O Portal Vermelho publica nesta terça-feira (23) artigo exclusivo do professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Juarez Xavier, que analisa o massacre de Shaperville, em 1960, na África do Sul. A violência da máquina estatal contra a população negra naquela ocasião levou a Organização das Nações Unidas (ONU) a instituir a data de 21 de março como o Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial

Massacre de Shaperville Foto: AFP

Bairro de Sharpeville, Johanesburgo, África do Sul. 21 de março de 1960. Vinte mil mulheres, homens e crianças negras e negros reuniram-se em uma manifestação política pacífica. Objetivo: reivindicar a extinção da lei de passe: a lei determinava a obrigatoriedade de porte de cartões de identificação para transitar em parte do território proibido para a população de origem negro-africana.

Tropas de repressão foram chamadas. A África do Sul tinha a mais completa máquina de repressão interna, em todo o continente. Os gendarmes pediram para que a multidão se dispersasse. A população negra manteve a manifestação. Pacífica! Eles abriram fogo. Foram mortas 69 pessoas, mulheres, homens e crianças. Cento e oitenta e seis foram feridas. Centenas foram presas. E milhares de pessoas foram mantidas em estado de sítio, em sua própria terra.

O dia foi marcado pela ação terrorista do estado, contra a população desarmada, globalizou a luta contra o apartheid[1], e expôs para o mundo um regime de brutal segregação, que contava com o apoio dos Estados Unidos da América, fiador da barbárie em território africano, desde o final da Segunda Guerra Mundial.

A política foi adotada em 1948, com a institucionalização do apartheid, no mesmo ano em que a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU)  aprovou a Declaração Uiversal dos Direitos Humanos (DUDH).

O apartheid vigiu até o ano de 1994, na África do Sul, com a abolição da obrigatoriedade do porte do passe!

O episódio passou para a história como o “Massacre de Sharpeville”.

Em 1966, a ONU instituiu a data de 21 de março como o Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial, marco essencial do enfrentamento ao racismo em âmbito mundial.

Tudo que é sólido…

Em 1922, o Egito proclamou a independência da Inglaterra, e abriu a pauta política para a descolonização do território africano, que se estendeu até a década de 1970, quando caíram as colônias portuguesas. No dia 18 de junho de 1953, o rei Faruk foi destronado, e o Egito, finalmente, proclamou a República. Mas o processo de descolonização estava em curso no continente africano, desde o final do século 19. Uma a uma, as metrópoles europeias, em efeito dominó, viram seu sólido e secular poder se desmanchando diante as ações revolucionárias dos povos africanos[2].

Independente no século 19, a Etiópia é “recolonizada” pela Itália, libertando-se pela segunda vez em 1941; Madagascar, em 1947; Líbia, em 1952; Tunísia e Marrocos, 1956; Gana, 1957.

O Ano Africano -1960- vê florescer a independência em diversas novas nações marcadas pela brasa revolucionária: Camarões, Costa do Marfim, Benin, Burkina Faso, Níger, Mali, Somália, Nigéria, Mauritânia, Congo e Gabão. Nos anos seguintes, Serra Leoa, Tanzânia, Quênia, Gâmbia, Ruanda e Uganda. Mais tarde, Angola, Moçambique, Guiné e Cabo Verde.

As duas guerras que envolveram a Europa fragilizaram os laços das metrópoles com as colônias. Em todo o território, “a arma como argumento” ganhou relevo entre os diversos grupos que se opunham à brutalidade da presença europeia entre os povos africanos.

A África tornou-se o espaço do “não ser”, como definiu o médico/psiquiatra/psicanalista/filósofo e ativista político martiniquense Frantz Omar Fanon (1925-1961), também conhecido como Ibrahim Frantz Fanon, intérprete, em tempo real, da luta anticolonial africana[3].

“Estas são as armas[4]

O fuzil de assalto, calibre 7,62x39mm, criado em 1947 por Mikhail Kalashnikov, conhecido por “Fuzil Kalashnikov” ou simplesmente AK-47, produzido pela indústria estatal soviética IZH, é um dos símbolos representativos das décadas revolucionárias em solo africano. Ele foi tão importante nas lutas de descolonização na África que passou a estampar a bandeira de Moçambique. O Kalashnikov marca o apoio soviético, e mais tarde cubano, às lutas de independência africanas.

A vitória soviética formou um campo de apoio às lutas de libertação nacional em África, que deu bases às ações de muitas lideranças, como Patrice Émery Lumumba[5] (1925-1961), Antonio Agostinho Neto[6] (1922-1979), Samora Moisés Machel[7] (1933-1986) e Amílcar Lopes Cabral[8], e fraturou o alinhamento automático aos EUA, no pós guerra, em múltiplas articulações continentais.

A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas articulou uma série de acordos comerciais, políticos, tecnológicos e, importante, de apoio logístico na reorganização das forças armadas nas nações recém descolonizadas.

Ao final desse processo, com a debandada dos colonizadores, que destruíram parte da infraestrutura produtiva e logística, como nas áreas de geração de energia e produção de alimentos, os países africanos tiveram na rede de apoio formada pela órbita da URSS parcerias que deram sustentação estratégica à luta pela descolonização e para a reconstrução nacional.

Essas ações políticas criaram uma rede de países pró soviéticos, no período que se estendeu por 50 anos.

Fizeram parte dessa rede de países pró soviéticos no continente africano: Egito (1954-1973), Guiné (1960-1978), Mali (1960-1968), República Democrática da Somália (1969-1977), Argélia (1962-1991), Gana (1964-1966), Sudão (1968-1972), Líbia (1969-1991), República Popular do Congo (1969-1991), Cabo Verde (1975-1991), Uganda (1971-1979), Madagascar (1972-1991), República Democrática Popular da Etiópia (1987-1991), República Popular do Benin (1975-1990), República Popular de Moçambique (1975-1990), República Popular de Angola (1975-1991) e Burkina Faso (1983-1987).

O apoio seguiu a linha de tempo do final da Segunda Grande Guerra até a dissolução da URSS em 26 de dezembro de 1991.

A luta antirracista se aproximou da luta anticapitalista, no continente africano e se espalhou pelos movimentos revolunários antirracistas em diversos continentes.

Os Estados Unidos da América se tornaram o locus [na terra dos proclamados valores democráticos e de igualdade de oportunidade, segrega-se brutalmente a extensa parcela da população negra, em especial no sul do país, com a política Jim Crow (Jim Crow Laws), entre 1877 a 1964]  e logos [emergência de uma série de organizações políticas que sintetizaram a luta contra o racismo à luta contra o capitalismo] dessa articulação, nos anos de 1960.

Poder Negro

Nesse contexto em ebulição, surge o mais conhecido movimento político radical de enfrentamento ao racismo, que abala a estrutura política do país: o Partido dos Panteras Negras -Black Panther Party [BPP], cuja denominação original era Partido Panteras Negras para a Autodefesa -Black Party for Self-Defense)[9].

Juarez Xavier

No dia 15 de outubro de 1966, dois anos após a assinatura da Lei dos Direitos Civis, dois ativistas fundaram essa organização revolucionária, urbana, e de forte vocação socialista. Robert “Bobby” George Seale (1936) e Huey Percy Newton (1942-1989) estiveram à frente da organização dos “Panteras”, com atuação em todo o território norte-americano, e com filiais internacionais no Reino Unido, na década de 1970, e na Argélia, entre 1969 e 1972. O ativismo político e a obra de Frantz Fanon fez a ponte entre os universos revolucionários dos dois lados do oceano.

Os Panteras desenvolvem dois vetores como fundamentais em suas atividades: o armado e o assistencialista. No primeiro, promoveu patrulhas armadas para monitorar e desafiar a violência dos oficiais da polícia de Oakland, na Califórnia. No segundo, desenvolveu uma ampla rede de atenção social comunitária, como os Programas de Café da Manhã grátis, para crianças e clínicas de saúde, a fim de fortalecer o debate sobre a injustiça alimentar.

Em sua carta-programa, os Panteras reivindicaram, em dez pontos, direitos civis e sociais, assegurados à população branca norte-americana: O QUE QUEREMOS (perguntaram de forma retórica, para logo em seguida, responderem) – 1. Nós queremos liberdade. Queremos poder para determinar o destino de nossa comunidade negra. 2. Queremos emprego pleno para nosso povo. 3. Queremos o fim da roubalheira dos capitalistas brancos contra a comunidade negra. 4. Queremos casas decentes para abrigar seres humanos. 5. Queremos educação decente para nosso povo. Uma educação que exponha a verdadeira natureza da decadência da sociedade americana. Queremos que seja ensinada a nossa verdadeira história e nosso papel na sociedade atual. 6. Queremos que todos os homens negros sejam isentos do serviço militar. 7. Queremos um fim imediato da brutalidade policial e dos assassinatos de pessoas negras. 8. Queremos liberdade para todos os negros que estejam em prisões e cadeias federais, estaduais, distritais e municipais. 9. Queremos que todas as pessoas negras levadas a julgamento sejam julgadas por seus pares ou por pessoas das suas comunidades negras, tal como definido pela Constituição dos Estados Unidos. 10. Queremos terra, pão, moradia, educação, roupas, justiça e paz.

Essa plataforma política alimentou a luta global contra o racismo, e estimulou a fundação do Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial[10], no dia 18 de junho de 1978, no Brasil.

Suas propostas e ações políticas transformaram o Partido dos Panteras Negras em inimigo público “No 1” do estado norte-americano, desencadeando um processo de perseguição e assassinatos de suas lideranças, sem precedente na história recente daquele país, com marcadores étnico-raciais, classistas e de gênero.

O massacre de Sharpeville deu-se no contexto da confluência da ascensão da luta anticolonial no continente africano, quando os dentes das nações colonizadoras foram arrancados nos dois conflitos armados na Europa, a formação do campo de apoio às lutas armadas, com a vitória da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, na Segunda Grande Guerra Mundial, e a emergência dos movimentos sociais radicais de negras e negros contra o estado “patriarcal, capitalista e supremacista branco”.

O ano de 1960 é o epicentro de uma série de ações, que fortaleceram esses vetores, e deixaram uma larga lição política para as gerações futuras.

“Enquanto houver racismo, não haverá democracia[11]

O massacre de Sharpeville é o elo que deu evidência a uma cadeia de acontecimentos que pautaram a luta antirracista revolucionária nas agendas políticas a partir da década de 1970. Os principais movimentos sociais negros compreenderam o papel da escravização de milhões de mulheres, homens e crianças na formação do conceito de descartabilidade humana, que marca as condições de vida da população de ascendência africana no mundo, as ações do colonialismo na formação do status de subcidadania, que desidrata os direitos cidadãos de não brancos pelo mundo afora, e o apartheid, que cria zonas nos territórios onde são segregadas as populações negras, com a suspensão de todos e quaisquer direitos à vida e à dignidade, em um permanente “estado de exceção”.

A lógica da construção dessa arquitetura territorial é dada pelo racismo sistêmico. Ele funda as instituições racistas de coerção do estado -sistema de repressão e encarceramento[12]– e persuasão -sistema educacional e cultural de normalização e naturalização da desigualdade e do racismo-, estrutura o acesso aos bens sociais -econômicos, culturais, sociais e políticos-, criando um sistema de privilégios sociais de classe, e replica as práticas políticas de preconceito -reprodução da visão de menor valia da população negra-, discriminação racial -controle do acesso da população negra aos direitos sociais e políticos- e racismo -com o registro dos altíssimos índices de morbidade de crianças, mulheres e homens negros.

O estado patriarcal, capitalista e supremacista branco[13] -que passou a ser o foco do feminismo negro, a partir dos anos de 1980- é o estado da negação dos direitos econômicos, culturais, sociais e políticos da população negra, como no Brasil.

Na vigência desse estado não há a possibilidade de ações e relações democráticas, não apenas para a população negra, a maioria da população brasileira, mas para o conjunto da população brasileira.

O modelo privilegia 1% da população, assegura acesso aos bens tangíveis e intangíveis a cerca de 19% da população e segrega, em condições de vulnerabilidade permanente, cerca de 80% da população.

No Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial, implicado pelas lições de Sharpeville, que atravessaram os oceanos dos tempos, nesses 62 curtos anos  de aprendizagem, o movimento social de negras e negros converge para a compreensão da impossibilidade de reforma dessa máquina de coerção e persuasão do racismo sistêmico, que molda as condições de vida e morte da população afrodescendente, mas sim, como possibilidade política, pôr fim a esse sistema que promove a destruição em escala industrial de vidas negras.

Juarez Tadeu de Paula Xavier é docente da Universidade Estadual Paulista, graduação e pós-graduação (jornalismo e PPGMiT) membro da comissão de averiguação das autodeclarações de pretos e pardos, no concurso vestibular, membro do Núcleo Negro Unesp para a Pesquisa e Extensão (NUPE), e vice-diretor da Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design.


[1] “Longo caminho para a liberdade – uma auto biografia”. Nelson Mandela, 2013.

[2] História Geral da África. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_%20content&view=article&id=16146.

[3] Os condenados da Terra. Frantz Fanon, 1968.

[4]Documentário sobre a luta da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) contra o colonialismo de Portugal e seus apoiadores. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ZD0xEH70zd.

[5] Congo, my country. Patrice Lumumba, 1962.

[6] Destruir o velho e construir o novo. Antonio Agostinho Neto, 1976.

[7] A luta continua. Samora Machel, 1974.

[8] Revolution in Guinea: selected texts. Amílcar Cabral, 1970.

[9] Filme “Judas e o Messias Negro”. Direção: Shaka King. Lançamento, 2021.

[10] Movimento Negro. Disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/movimento-negro.

[11] Coalizão Negra Por Direitos. Disponível em: https://coalizaonegrapordireitos.org.br/.

[12] A nova segregação: racismo e encarceramento em massa. Michelle Alexander, 2018.

[13] Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. Sueli Carneiro, 2011.