O novo protagonismo da Argentina na luta pela integração latino-americana

Com o Itamaraty de olhos fixos nos Estados Unidos, vizinho do Sul busca ocupar espaço de liderança da América Latina

Foto: Ricardo Moraes/Reuters

Após uma sequência de derrotas eleitorais e golpes em toda a América Latina, as forças populares têm conseguido retomar sua iniciativa política no continente nos últimos anos. As multitudinárias mobilizações com ganhos concretos no Chile e no Equador, a derrota do golpe na Bolívia e da intervenção mercenária na Venezuela, e os triunfos nas urnas do México e da Argentina são alguns exemplos dessa relativa recuperação de fôlego do campo nacional e popular. E desde sua eleição em outubro de 2019, o presidente argentino Alberto Fernández tem se movimentado para ocupar o espaço de liderança desse campo e implementar sua própria perspectiva de integração latino-americana.

Não é novo que a Argentina trabalhe para ter um protagonismo político e diplomático na região. O general Rosas, no século XIX, buscava garantir a hegemonia de seu país na bacia do Rio da Prata. Em meados do século XX, o general Perón empreendeu extensos contatos com a América Latina e todo o Terceiro Mundo. Também são inesquecíveis os esforços de Néstor Kirchner que garantiram que a ALCA fosse enterrada na Cúpula das Américas de Mar del Plata, em 2005. Porém, com a impressionante guinada do Itamaraty brasileiro em direção à subserviência absoluta aos desígnios do imperialismo e o enfraquecimento de países mais programaticamente latinoamericanistas como Cuba e Venezuela (enfraquecimento esse causado pelos bloqueios e sanções das potências capitalistas, não se pode deixar de lembrar), a Argentina busca aproveitar agora uma janela histórica muito única para tentar liderar com menos concorrência o bloco de países que defende a cooperação entre as nações da América Latina e a autodeterminação dos povos.

As organizações multilaterais e internacionais são um dos principais cenários dessa empreitada dos argentinos. Na contramão do esvaziamento desses órgãos promovido pelos governos de direita que se instalaram no continente, Alberto Fernández busca se tornar um dos principais impulsionadores da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos, a CELAC – de onde Ernesto Araújo fez o Brasil sair, isolando nosso país da necessária integração da América Latina e do Caribe. No Mercosul, Fernández é também um defensor, ainda que hoje relativamente solitário nessa defesa, da manutenção da dimensão social, e não apenas comercial, do bloco.

Para além dos espaços diplomáticos, o protagonismo da Argentina também se expressa nas novas ferramentas internacionais dos setores de esquerda e centro-esquerda. Fernández é um dos principais idealizadores e membros do Grupo de Puebla, que reúne figuras de proa do progressismo da América Latina para incidir politicamente sobre a região. Diversos militantes do Partido Justicialista – a legenda dos peronistas, como Fernández – e de outras siglas da base do governo argentino participam da construção da recentemente lançada Internacional Progressista, inclusive em postos-chave: a Ministra das Mulheres Elizabeth Gómez Alcorta ocupa uma cadeira no Conselho da Internacional.

Na verdade, a intervenção de Fernández foi determinante para a esquerda da região em diversos momentos. Ainda quando candidato, ele se engajou sem pestanejar na campanha pela libertação de Lula. Sua implementação de políticas de combate à lawfare reverbera em outros países onde as lideranças populares são alvo de perseguição judicial constante, como o Equador, onde o ex-presidente Rafael Correa foi exilado e seu vice Jorge Glas está preso. Mais notavelmente, o asilo concedido a Evo Morales e outros membros da cúpula do MAS-IPSP em Buenos Aires ofereceu bases seguras para a organização da resistência ao golpismo e a construção da campanha vitoriosa de Luis Arce. Não à toa, os reacionários da região guardam muito rancor por Alberto Fernández: Bolsonaro o critica constantemente, Lenín Moreno o chama de “mafioso internacional”, Jeanine Áñez considera que ele “não respeita a democracia” (e ela respeitou a democracia na Bolívia ao dar um golpe?) e Iván Duque nem compareceu em sua posse.

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O fornecimento de vacinas para os povos do continente também foi uma disputa em que a Argentina conseguiu marcar pontos fazendo movimentações diplomáticas hábeis. Ainda em agosto de 2020, o México e a Argentina selaram um acordo para produzir conjuntamente o imunizante da AstraZeneca/Oxford contra a COVID-19 e distribuir as doses para toda a América Latina. Alberto Fernández assegurou pessoalmente aos governos da Bolívia e do Uruguai, e via carta aos presidenciáveis Andrés Arauz e Verónika Mendoza – candidatos da esquerda do Equador e do Peru, respectivamente –, que faria esforços para facilitar o acesso de seus países às vacinas. Não é difícil ver o contraste que se apresenta aqui: a Argentina defendendo a vida e praticando a solidariedade latino-americana; o Brasil do fascista Bolsonaro, celeiro de variantes do coronavírus e baluarte do negacionismo, espalhando a morte.

Os méritos da política externa de Fernández, portanto, são inegáveis, mas é preciso também observar quais são seus limites. A postura da Argentina frente à crise e intervenção imperialista na Venezuela é vacilante. Intelectuais como Atilio Boron apontam que, apesar de não se somar às provocações, o país não condena nem denuncia as agressões dos Estados Unidos e seus servos regionais contra a Venezuela nos organismos internacionais, como corretamente fazem países como Cuba e Nicarágua. Inexplicavelmente, a Argentina continua fazendo parte do Grupo de Lima, organização formada com o objetivo único de pôr um fim à Revolução Bolivariana, como assinalam lideranças latino-americanas do porte de Evo Morales. A falta de compromisso com a defesa do respeito à soberania da Venezuela causou até mesmo o ruidoso pedido de demissão de Alicia Castro, prestigiada militante peronista que ocupou postos estratégicos na área de relações exteriores dos governos de Néstor e Cristina Kirchner. Castro se despediu das funções diplomáticas com uma carta que explica bem as problemáticas da questão a partir da perspectiva de alguém envolvido no processo e deve ser amplamente lida.

Há outros limites na política externa de Fernández. A proposta centrada em personalidades do Grupo de Puebla é rebaixada em comparação com a proeminência dos partidos e movimentos sociais no Foro de São Paulo. Não seria possível esperar de Alberto Fernández uma adesão ao projeto bolivariano da ALBA, mas é sintomático que não tenha ocorrido uma tentativa real, para além de palavras, de retomar a UNASUL. O próprio Fernández, a bem da verdade, se define como um peronista “liberal progressista”, uma autodeclaração desconectada das tradições políticas e intelectuais que nutriram e nutrem a luta popular no continente. Quaisquer que sejam as indignações com esses limites, porém, é muito importante mapeá-los e entendê-los, para que se possa analisar como afetam os horizontes possíveis de sua atuação, especialmente a relacionada ao esforço de unidade da América Latina.

Horizontes esses que são ligados à questão das classes sociais. Não se pode esquecer que apesar da ampla adesão popular, o peronismo – e o governo argentino é um governo cuja força política hegemônica são os peronistas, ainda que estejam coligados com outros setores como as diferentes correntes comunistas – é um fenômeno político orgânico à burguesia nacional da Argentina, a uma fração de sua classe dominante menos subordinada ao imperialismo e com mais aspirações autônomas. Não é possível sustentar a incompreensão de que o governo de Alberto Fernández seja um governo proletário ou socialista. O próprio “albertismo” dentro do peronismo é mais expressivo entre burocratas partidários e tecnocratas de pendor mais centrista, em contraste com a força popular e jovem do kirchnerismo de tinturas anti-imperialistas. A integração latino-americana que Alberto Fernández e seu governo na Argentina planejam liderar é uma de desenvolvimento econômico com um nível importante de justiça social e redistribuição de renda dentro dos Estados Nacionais, mas não é uma onde os povos lutam em aliança para expulsar de vez o imperialismo da região e ter acesso a todos os seus recursos, constituindo uma Pátria Grande onde os frutos do trabalho do povo pertencem apenas ao povo.

Além de seus limites, o governo de Alberto Fernández encontra também empecilhos práticos à sua intenção de ser protagonista do campo político que levanta a bandeira da integração latino-americana. A Argentina não é, de forma alguma, um país pequeno, mas também não tem uma vantagem tão expressiva em relação ao resto da região como têm o Brasil e o México. Sua população de 45 milhões não chega a um quarto da brasileira ou a um terço da mexicana. Seu PIB de 382 bilhões de dólares é menos que um terço do PIB do Brasil e menos que metade do PIB do México. A estratégia de promover uma parte de suas iniciativas em conjunto com o México é uma tentativa de contornar isso, dividindo algumas das tarefas de liderança no continente que a Argentina, pelo menos por enquanto, não consegue dar conta sozinha.

Outro empecilho é o crescimento da extrema-direita e do militarismo, seja dentro da Argentina ou nos outros países da região. A caracterização feita no primeiro parágrafo desse texto de que a recuperação das forças populares é apenas relativa não é por acaso. Os golpes, a violência paramilitar e a entrada em cena do Partido Fardado, como se pode ver em publicações como a Opera, não refluíram no continente nos últimos anos, e podem pôr a perder os avanços eventualmente conquistados pelas forças populares. Uma força política “democrática” como o peronismo contemporâneo – no sentido de que prioriza a atuação na legalidade burguesa, dando atenção secundária, por exemplo, à questão militar – pode ter dificuldades de enfrentar uma ofensiva político-militar da direita latino-americana. No segundo semestre de 2020, a polícia da capital Buenos Aires se amotinou, com resposta débil do governo. A tendência das direitas da América Latina (e das classes dominantes que representam) nos últimos anos parece ser de uma orientação cada vez menos democrática e cada vez mais golpista. Em comparação com a firmeza da resistência de Cuba e Venezuela, os ganhos de uma integração latino-americana liderada pela Argentina podem ser mais vulneráveis.

Pintando esse esboço, entende-se um pouco melhor a política externa da Argentina em relação à América Latina sob Alberto Fernández e o protagonismo continental que o país já tem hoje e pode vir a ampliar, com os méritos e limites que as diversas condições apresentadas aqui determinam. É pena, para os brasileiros, que um dos fatores que facilitou essa ascensão de uma nova proposta de integração latino-americana tenha sido o sequestro do Itamaraty por gente disposta a baixar a cabeça para os Estados Unidos em tudo, patrocinar retrocessos na região e renunciar a qualquer papel do Brasil na construção da unidade dos povos da América Latina.

De certa forma, como os processos históricos dos países do continente estão conectados, se a Argentina for tomada como um “caso paradigmático” desse novo momento das forças populares, será possível também observar diversas identidades entre as características associadas a Fernández e às de outras novas lideranças, como o boliviano Arce, o equatoriano Arauz, e em menor medida o cubano Díaz-Canel: a postura “pragmática”, o menor apelo carismático, a qualificação técnica, entre outros fatores. Como foi dito, a perspectiva de integração latino-americana de Fernández tem insuficiências, mas pode ser que esteja no ponto certo para garantir a unidade das alas mais consequentes com as alas mais moderadas do campo popular da América Latina para atravessar a complexa conjuntura regional dos próximos anos.

Fonte: Carta Maior

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