O cineasta chileno Raoul Ruiz

Certamente, Raoul Ruiz, mesmo tendo sido obrigado a sair de sua terra, tem um lugar de destaque na História do cinema mundial.

Cena de "Klimt" (2006) - Reprodução/YouTube

Raoul Ruiz faleceu em 2011 e passou grande parte da vida fora do seu país por causa da ditadura sanguinária de Pinochet. Viveu na França e lá se tornou quase um cineasta nacional. O site Making Off está apresentando três filmes dele que estou vendo ou revendo e comentando. Na verdade, Raoul Ruiz foi mesmo um cineasta em que as coordenadas principais de sua criação foram de um cinema europeu e também influenciado pela forma universal de fazer um filme. E o que notamos mesmo é que nos seus principais filmes a linguagem não seria a mesma, se por acaso ele não tivesse saído do Chile. E ali tivesse feito os seus filmes chilenos.

Raoul Ruiz fez muitos filmes, inclusive séries para a televisão, como a “Mistérios de Lisboa”. Seus filmes fizeram sucesso de público e entre eles temos “As três coroas”, “O tempo redescoberto” que é uma adaptação da última parte do romance de Marcel Proust, “Em busca do tempo perdido”, e muitos outros. Certamente, Raoul Ruiz, mesmo tendo sido obrigado a sair de sua terra, tem um lugar de destaque na História do cinema mundial.

“Klimt” é um longa cuja principal atração talvez seja a presença do ator John Malkovich no papel central. Trata-se de uma obra onde as questões centrais da vida do pintor Gustave Klimt dão o assunto para a estória. Não é melodramático. É irônico, inclusive. Mas me parece muito pouco visual. Se você, espectador, não acompanhar os diálogos certamente não terá sentido a sua dramaticidade. Alguns momentos acompanham Klimt visitando a Exposição Internacional em Paris em 1900 e lá se apresenta Georges Meliès com seu cinema. Klimt se aproxima e faz amizade com Meliès e também com uma atriz. Muitas cenas são ligadas a essa estória sensual e romântica. Os diálogos são sensíveis, mas não deixam de comandar a linguagem do filme.

”Visions et Merveilles de la religion chrétienne” é um curta realizado em 1992 e também está sendo apresentado pelo Making Off. É um curta de 21 minutos, onde também a base de sustentação dramática vem dos diálogos. É uma estória irônica sobre a vida eterna e o Inferno. Foi inspirado no livro “Arcana Celestia”, do teólogo esotérico sueco do século XVIII Swedenborg.

“Ballet Aquatique” é um média-metragem com duração de 52 minutos, que foi realizado em 2011 – a sua última produção. Um belo filme. E na sua estrutura se observa como é um produto de alguém que não faz cinema como algo de comunicação, mas como um verdadeiro objeto artístico. Na verdade, é uma obra onde se mostra o balé que os peixes criam no mar. Ou até mesmo num simples jarro. Mas Ruiz busca e mostra um objeto de alta criação artística feito para homenagear o cineasta Jean Painlevé. Começa mostrando um filme de 12 minutos de Painlevé e nele as figuras mais estranhas do fundo do mar. Quando esse filme termina, então três personagens se apresentam numa sala repleta de livros e cada um num birô vai dizendo afirmações científicas sobre os peixes. E variando com cenas menos estranhas do que no filme de Painlevé, mas também tão violentas quanto elas. Os ‘atores’ são o próprio Raoul Ruiz, o ator Melvil Poupaud e o produtor François Margolin. Isso de certa forma mostra que o filme foi feito com um certo espírito de divertissement e não como profissão. Independentemente disso há extremo rigor técnico. E existe a vontade de mostrar que o mundo aquático é tão violento quanto o humano. O peixe maior engole o peixe menor como entre os humanos. Sem nenhum romantismo. Existe a pintura de um peixe feita por um desenhista profissional. E um estranho gato cinza começa a comer um grande peixe.

Olinda, 14.03.2021

WONDERBOY – DE SUOR E DE SANGUE

É um filme sobre boxe dirigido pelo cineasta francês Paul Vecchiali. Pouco conhecido, Vecchiali foi lançado pela Cinemateca Portuguesa com uma mostra especial e esse filme, “Wonder Boy – De sueur et de sang”, fez parte. Agora está em exibição no site Making Off. Sobre boxe existem muitos filmes. O mais famoso e mais genial deve ser mesmo o norte-americano “Punhos de Campeão – The Set Up”, lançado em 1949 e dirigido por Robert Wise, tendo como astro o ator Robert Ryan. Um dos grandes filmes que eu vi em minha vida e que me recordo bem até hoje.

Esse que vi agora tem produção francesa e alemã. E não vejo nele nada com maior força cinematográfica. É um bom filme médio. Tem uma beleza plástica de uma imagem quase preto e branco. Um belo ator negro, Sam Job, e uma também bela atriz, Fabienne Babe. O que me parece se destacar realmente nele é a parte fotográfica. A interpretação mistura muitos negros e muitos brancos e isso dá um tom. Porém não parece um filme francês.

Olinda, 15.03.2021

NOSSA SENHORA DOS TURCOS

Carmelo Bene, o diretor do filme “Nostra Signora dei Turchi”, foi uma personalidade que buscava muitos caminhos dentro da arte e assim se expressou no teatro, no cinema, na literatura e na música. Esse filme foi lançado em 1968 e está à disposição agora no site Making Off. Carmelo Bene é o ator principal nessa espécie de ópera que fragmenta uma luta heroica dentro do campo da música e da História. Numa entrevista ao Cahiers du Cinéma, Carmelo Bene nega sua ligação com a cultura italiana e diz que se sente mais ligado ao escritor argentino Borges do que aos escritores italianos. Era um tipo pernóstico. Seu filme, porém, merece uma visão, pois o jogo dramático como se fosse uma ópera continua com significado. E sua interpretação como ator segue um caminho entre o teatro bufo às vezes e também trágico.

Olinda, 17.03.2021

UMA CLARA VISÃO DE GLAUBER

Vi mais uma vez o filme de Glauber Rocha, “Claro”, que ele realizou na Itália e que sem dúvida estimulou o cineasta Cesar Meneghetti a fazer seu filme “Glauber, Claro”, e também está presente em momentos do filme de Silvio Tendler, “Glauber – o Filme, Labirinto do Brasil”. Apesar de tê-lo revisto há não muito tempo, a impressão que tive agora foi de que estava vendo um filme novo. Um filme a que eu nunca tinha assistido. Antes de ver “Claro”,  hoje li um artigo de Luciana Corrêa de Araújo analisando de maneira bem aprofundada a obra e isso me ajudou a descobrir novos aspectos.

O que me tocou mais desta vez foi a interpretação da atriz francesa Juliet Berto, e principalmente pela forma espontânea como que Glauber a impulsionou a se comportar. Desde a primeira sequência do filme, a atriz se comporta como alguém que incorporou um novo espírito que deve conhecer a cultura latino-americana. Ela também contracena com o próprio diretor para romper com o estabelecido pelo formalismo da cidade de Roma. E essa espontaneidade da interpretação de Juliet Berto vai caminhando até a sequência final no apartamento em que eles moravam na Itália. Claro que Juliet Berto não é uma atriz excepcional, mas a sua interpretação se torna isso, excepcional. E claro que é pela pujança de que é possuído o diretor Glauber Rocha.

Já é conhecida a genialidade de Glauber, mas acredito que sempre vale a pena relembrar ou mostrar mais e sempre de que não existe um engano. “Claro” é um filme que se perde em muitos momentos e talvez em cenas um tanto evasivas. Mas não precisa ir para os clássicos de Glauber, porque aí em “Claro” já encontramos o cineasta que é artista incapaz de aceitar o esquema criado por Hollywood para estruturar um filme. Temos uma linguagem nova e especial, que expressa o trabalho criativo de alguém não só dono de um pensamento próprio acerca da estrutura do mundo social mas também da linguagem pessoal do cinema. É impossível ver “Claro” e não descobrir que estamos assistindo a uma criação de alguém com visão artística de genialidade. Autoria total. Certamente até Walter Benjamin, se assistisse a esse filme, não negaria que ele é uma obra de arte com aura.

Olinda,  22.03.2021

RELEMBRANDO GUSTAVO DAHL

Gustavo Dahl é um cineasta que teve muita presença no cinema brasileiro,  mas seu filme mais importante, “O Bravo Guerreiro”, é quase uma obra única e é mesmo especial. A obra faz parte de uma  segunda etapa do Cinema Novo, junto com “O desafio” e “Terra em transe”. Os três são filmes políticos e foram feitos após o golpe de 64 e com a ditadura ainda na sua maior dimensão.

“O bravo guerreiro” tem uma dimensão bastante diferente na produção cinematográfica brasileira, no sentido de que aborda diretamente o tema político. Os filmes do Cinema Novo foram todos claramente políticos, por sempre mostrarem uma visão densamente comprometida com o social e o antropológico, mas em geral não abordavam diretamente um tema político. “O bravo guerreiro” mostra um jovem político que é de oposição, e de repente sai do seu Partido para entrar no Partido do Governo. Sua perspectiva é a de que somente trabalhando dentro do Governo poderá influir no seu desenvolvimento. O filme deu a oportunidade para o ator Paulo César Pereio criar o seu primeiro grande personagem. Pereio está presente do início até as cenas finais e realmente faz um trabalho de dimensão densa e extremamente dramática. “O bravo guerreiro” contou com vários outros atores importantes como Paulo Gracindo, Hugo Carvana, Ítalo Rossi, Mário Lago, Milton Gonçalves, Isabella Cerqueira e Maria Lúcia Dahl.

Gustavo Dahl estava na França e voltou ao Brasil justamente em 64, fazendo o contrário do que fizeram muitos cineastas. Sua história pessoal é especial e mostra como ele ocupou vários cargos importantes no setor cinematográfico e mesmo assim tinha ligação com todo o pessoal do cinema. Nasceu na Argentina, mas sua mãe era brasileira. Morou no Uruguai e passou um tempo na Itália, onde estudou cinema, e em Paris, quando participou da implantação do cinema ‘verité’ de Jean Rouch. Seu outro longa mais conhecido é “Uirá – um índio em busca de Deus”. Foi montador com alguns trabalhos importantes e premiados. Foi crítico de cinema, inclusive escreveu no Cahiers du Cinéma e no Suplemento Cultural do Estadão, quando era dirigido por Paulo Emílio Salles Gomes. Ocupou muitos cargos importantes em organizações cinematográficas, inclusive como diretor do setor de comercialização da Embrafilme. Consta que nesse período o cinema brasileiro ocupou um terço do mercado, o que não mais aconteceu depois dele.

Olinda, 26.03.2021

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