A cultura popular e o jornalismo perdem Gilmar de Carvalho

Vítima da covid-19, o jornalista e professor cearense Gilmar de Carvalho, um arguto e sensível pesquisador da cultura deixou vasto legado e inspirou estudos acadêmicos.

“A cultura brasileira perde um de seus mais dedicados colaboradores, e a cultura do Ceará o seu mais competente tradutor”. Dessa forma a pesquisadora cultural e curadora Dodora Guimarães destacou a importância do jornalista, pesquisador e professor Gilmar de Carvalho, que morreu na manhã deste domingo (18), em Fortaleza, vitimado pela da Covid-19. Dodora definiu Gilmar como “o escritor que trocou a ficção pelo magistério” e que sua morte “deixa o mundo órfão de sua inteligência rara”.

O governador cearense, Camilo Santana afirmou nas suas redes sociais: “Recebi com muito pesar a notícia da morte do professor Gilmar de Carvalho, vítima da Covid-19”, disse. “Gilmar era também um dos mais respeitados pesquisadores da cultura popular cearense”, acrescentou.

O secretário de Cultura do Ceará, Fabiano dos Santos Piúba também fez uma publicação em suas redes sociais (reproduzida pelo Portal Vermelho) onde afirma que “Gilmar não era só um pesquisador em busca de fontes para seu trabalho acadêmico. Ele se tornava um amigo terno e cuidadoso para a vida inteira de muitos mestres e mestras da cultura que encontrou ao longo de sua vida tão intensa e bonita. Assim ele foi com Patativa do Assaré: um amigo, um cúmplice, um parceiro, um editor, um irmão. Assim foi também com cada rabequeiro, cordelista, xilogravurista, violeiro, aboiador, louceira, artesão e brincante do reisado, do maracatu, do pastoril, do coco.”

Gilmar de Carvalho ao lado de Fabiano dos Santos Piúba secretário de Cultura do Ceará

O secretário-executivo da Secretária de Cultura de Fortaleza, Evaldo Lima lamentou a morte de Gilmar de Carvalho e considerou uma “perda irreparável para o cenário cultural do Ceará”. Para Evaldo “Gilmar foi mestre, conselheiro, autor , pesquisador profícuo e amigo muito querido. Tanto por fazer, ensinar , dizer. O domingo se veste de luto, o céu se veste de festa. Descanse em paz, Professor!

Para Gilvan Paiva, sociólogo e ex-secretário de Cultura de Fortaleza “Gilmar era um dos maiores e mais destacados interpretes da cultura cearense, especialmente daquela marginalizada pelo crescimento das cidades e pela poderosa indústria do entrenimento. O ex-secretário define Gilmar como um garimpeiro das influencias culturais mais profundas e que por suas mãos “viverão para sempre a vida de figuras, práticas e símbolos da cultura popular, criadas, com a universalidade dos que cantam seu próprio chão”. Paiva relata ainda que “a conversa com Gilmar era inteligente e ficará na memória como inspiração para continuar lutando com esperança por um mundo melhor e de mais valorização da cultura de nosso povo”.

O Curso de Jornalismo e o Programa de Pós-graduação em Comunicação, da Universidade Federal do Ceará, em comunicado sobre a morte do professor integrante de seus quadros afirma: “Uma das mentes mais prodigiosas e sagazes da cultura cearense. Gilmar soube, com argúcia, competência e sensibilidade, nos falar sobre aquilo que somos e que compartilhamos como cultura”. A nota afirma ainda: “Em qual dimensão estiver, que tenha armado um tempo “bonito pra chover” para lhe receber com todas as honras que merece! Toda nossa solidariedade a Francisco e família”.

A Associação Cearense de Imprensa (ACI) expressou profundo pesar pela perda de Gilmar de Carvalho, que foi sócio da entidade por mais de duas décadas. A entidade afirmou ainda que “sua dedicação à pesquisa da cultura popular, com vasta produção bibliográfica, e a atuação como professor de gerações de jornalistas são imensas. O legado de Gilmar de Carvalho permanece entre nós”.

Ele era necessário

Nas redes sociais, jornalistas, pesquisadores, artistas e amigos expressaram sentimentos e recordaram passagens da trajetória e do convívio com Gilmar de Carvalho.

O jornalista Demitri Túlio, afirmou que teve a sorte de ser aluno de Gilmar em três cadeiras no jornalismo da Universidade Federal do Ceará e a alegria de ser seu amigo e escutá-lo em almoços pela Cidade. “Diziam que Gilmar era ranzinza, nunca fomos um com o outro. Tinha um jeito muito particular, cortante na crítica, cirúrgico na observação do cotidiano e empolgado com a vida de repórter – que dizia ser uma lacuna em sua carreira gigantesca de pesquisador, escritor e intelectual. Ele foi repórter também. Reportou como ninguém o Sertão, a cultura popular, Patativa, os rabequeiros, os benditos, os penintentes, as festas, as bichas, o teatro, os parabeluns, os Juazeiros e muitos Cíceros…”, registrou Túlio.

A jornalista e também professora do curso de Jornalismo da UFC, Ana Rita Fonteles, declarou que Gilmar de Carvalho “era um incentivador constante. Por conta de suas cobranças e estímulos, muitos continuaram seus estudos, viajaram, tomaram gosto pela pesquisa, fizeram concurso, aprenderam, enfim, a acreditar mais em si mesmos. Eu fui uma dessas pessoas”. A professora universitária acrescentou que aprendeu com Gilmar “que pesquisa é coisa séria, que a universidade pode ser um lugar muito bom, desde que a gente esteja disposto a incentivar pessoas a ganhar o mundo. Eu, por aqui, vou tentando te repetir, querido. Vá em paz e obrigada. Por tudo!”

Rachel Chaves, jornalista da rádio Universitária FM e também ex-aluna de Gilmar, afirmou: “Ele era farto. De lucidez, de acidez, de conhecimento, de solidariedade. O que tinha lá dentro não se reservava a si. Ele era íntegro. Ele era sagaz. Ele era ético. Ele era orgulhoso. E me ensinou tanto”. Rachel disse ainda que “vinte e um anos atrás, me apontou os caminhos que me levaram à escritura de uma monografia da qual tanto me orgulho de ter parido. E estava lá na minha defesa, a me dizer palavras bonitas das quais nunca esqueci. Ele era necessário”.

Imagem do Instagram de Ana Mary C. Cavalcante

Numa postagem em seu perfil no Instagram, a jornalista Ana Mary C. Cavalcante, fez uma homenagem ao seu ex-professor. Diz ela: “Tenho um pequeno sertão, na minha janela. Dali eu avisto caminhos da escrita. eles passam pelo som das rabecas e das chuvas, pelas orações para São Francisco e Padre Cícero, pela navegação dos açudes e dos olhos das rezadeiras, pelas cores da terra e do céu; pela semeadura, colheita e replantio. Vez em quando, eu vou por aquela janela, encontrar quem virou palavra, caminho, sertão”.

Versos para Gilmar

Gilmar de Carvalho influenciou muitos estudos, pesquisas e trabalhos na cultura popular e no jornalismo. Seu legado é vasto e inspirador, como demonstram os versos do escritor e também pesquisador cultural Oswald Barroso.

Gilmar de Carvalho

Feito um carvalho plantado à beira do mar

Raízes fincadas no fundo da terra, sertão afora

Aos que ficam ou vão embora –

Feito o teu povo andejo –

Levando o sal da maresia

Para alimentar os bardos sertanejos.

Frágil, seguiste, como a brisa marinha,

Por sobre a caatinga deslindando

frases, poemas e cantigas,

desfiando o fio das profecias

feito um mágico de magias

doces como a flor da jurema

denso como a gema do piqui

semente brotando nos mais áridos

desertos de cactos e espinhos

imensos corações e carinhos.

Gilmar, teu sonho

abriu veredas e caminhos

na alma mutilada das multidões,

remoendo passados, refazendo eras mais antigas

De saaras, searas e siriarás,

A semear novas utopias

Para alegria dos que virão.

Gilmar, parceiro e amigo

Teu sonho segue comigo

roçado em mutirão!

Ilustração: Carlus Campos

O cordelista e cartunista Klévisson Viana, dedicou versos a Gilmar de Carvalho:

“A morte tão sorrateira

 Na Covid fez atalho

 A marreta do destino

Com desprezo desce o malho

E a Cultura perplexa

Perde Gilmar de Carvalho.


Calou-se a voz que falava

Com estilo e desenvoltura

Na vida mostrou que era

Sábio de grande estatura

Foi ele quem mais lutou

Em prol da nossa cultura.


Todo o Ceará lamenta

O Nordeste está de luto

Pela partida do mestre

Que pesquisou resoluto

Costumes e tradições

Do nosso povo matuto.

Mente prodigiosa

Mestre em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo e doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1998), Francisco Gilmar Cavalcante de Carvalho, nascido em Sobral, no ano de 1949,  ingressou na UFC em 1984, como professor do antigo Curso de Comunicação Social, que era composto pelas habilitações em Jornalismo e Publicidade e Propaganda.

Aposentou-se em 2010, mas permanecia em plena atividade, atuando como “uma das mentes mais prodigiosas e sagazes da cultura cearense”, conforme descreveram em nota os colegas do Curso de Jornalismo e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFC. Para este ano de 2021, preparava a publicação de uma nova obra, “A poética das vozes”, sobre o legado de grandes nomes da cantoria, do cordel, dos saraus e de outras linguagens artísticas.

Em 2009, Gilmar de Carvalho iniciou a doação de seu arquivo pessoal ao Acervo do Escritor Cearense (AEC), da Biblioteca de Ciências Humanas da UFC. São livros, documentos, fotografias, correspondências, reportagens e manuscritos referentes à memória de importantes nomes da cultura cearense.

No aniversário de

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