Notas sobre a conjuntura, por Ronald Freitas
Fatos arrolados denotam uma crise política que vai muito além da mera existência do governo Bolsonaro e suas idiossincrasias
Publicado 09/05/2021 17:11 | Editado 09/05/2021 17:12
O dia a dia da cena política nacional é de um dinamismo frenético. A cada dia que passa, novos eventos de importância e relevância inundam as páginas de jornais, as telas de TV e, com grande alarde, as chamadas “mídias sociais”. Ao militante, ao analista, ao dirigente político, o desafio de estar sintonizado com esse cenário em ebulição é muito grande. Ao mesmo tempo em que é necessário acompanhar a evolução dos fatos, é fundamental não se deixar prender na armadilha do imediato.
Analisar o cenário sociopolítico, as famosas “análises de conjuntura”, com o fito de se orientar na labuta política diária, exige que, além do acompanhamento da situação do dia a dia, estejamos munidos de um instrumental de análise que nos permita ver além do imediato, e nos permita fazer a adequada interligação dos acontecimentos em andamento com suas motivações de fundo e com suas raízes históricas. Isso é o que nos permitirá extrair, dessas “análises de conjuntura”, linhas de atuação prática que impulsionem no rumo certo a luta política que se trava.
Nesse sentido, procuro apresentar algumas opiniões sobre o nosso quadro político, econômico e social, não preso ao “último”, ou a todos os “últimos” acontecimentos ocorridos nessas esferas, mas procurando desnudar o que, a meu juízo, são as bases condicionantes dessa situação, e pretendendo apontar tendências de evolução para elas.
Instabilidade, o traço do momento político-econômico-social
Os primeiros quatro meses do ano foram plenos de acontecimentos sociopolíticos, que interferiram na evolução do quadro conjuntural. Nos últimos quinze dias de abril, foi intensa a movimentação nas esferas política, econômica, social, sanitária e jurídica. Vejamos alguns desses acontecimentos:
– A decisão do Supremo Tribunal Federal ( STF) de que o Senado da República instalasse uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), para apurar o papel do governo federal na condução do combate à pandemia do coronavírus, desencadeou forte reação do governo Bolsonaro, mostrando que este teme sofrer um forte desgaste político, com o que resultará dessa CPI. Nessa movimentação são destaques as tentativas do governo Bolsonaro de que: fossem ampliados os objetivos da CPI, para examinar o desempenho dos governos estaduais e municipais; e fossem escolhidos para presidente e relator, dessa comissão, aliados do planalto. No entanto a CPI foi instalada em 27 de abril de 2021, tendo como objetivo principal a investigação de como o governo federal enfrentou e está enfrentando a pandemia, e elegeu como presidente o Senador Omar Aziz e como Relator o Senador Renan Calheiros, nomes que o planalto tentou derrotar. As expectativas do governo Bolsonaro não se concretizaram, e o início do funcionamento da CPI redundou em uma importante derrota do governo.
– A decisão do STF, aprovada com expressiva maioria, de anulação das condenações de Lula nos processos contra ele movidos pela 13ª Vara da Justiça Federal de Curitiba, por incompetência do Juízo.
– A decisão do STF sobre a suspeição do juiz Sergio Moro, no processo por ele julgado, no qual condena Lula no caso do apartamento do Guarujá.
– As idas e vindas e o atraso para a aprovação do orçamento da União demonstram o grau de disfuncionalidade do Executivo federal, pois o país ficou sem um orçamento até fins de abril de 2021, causando com isso insegurança em vários setores da administração pública. Além disso, a aprovação, quando feita, além do atraso temporal, foi realizada sob os auspícios de acordos entre os poderes Legislativo e Executivo, que não são nada republicanos. Pois, ao fim e ao cabo, o governo federal, para aprovar sua proposta, cedeu aos parlamentares do Centrão, e liberou dinheiro para as emendas parlamentares, cujos valores ultrapassaram o chamado “teto de gastos”.
– As solenidades de comemoração do Dia do Exército e a transmissão de cargo do Comando do Exército ensejaram pronunciamentos que merecem ser registrados e analisados. O general Pujol – ainda no exercício do comando do Exército -, no dia 19 de abril, na solenidade de comemoração do dia do Exército, fez um discurso, no qual destacou o combate, pelo Exército, ao coronavírus, e também que a data renovava os compromissos “da instituição de Estado secular”, e, como noticiou o jornal O Globo, dessa mesma data, “destacando que o Exército manterá acesa a chama da lealdade ao Brasil a à Constituição.” Pronunciamento em linha com o proferido pelo recém-demitido ministro da Defesa, general Fernando Azevedo da Silva. E o general Braga Neto (sucessor de Azevedo Silva na pasta da Defesa), na passagem do cargo de Comandante do Exército, em 20 de abril de 2021, afirmou em pronunciamento que o momento é de união nacional: “Enganam-se aqueles que acreditam estarmos sobre um terreno fértil para iniciativas que possam colocar em risco a liberdade conquistada por nossa nação. É preciso respeitar o rito democrático e o projeto escolhido pela maioria dos brasileiros para conduzir os destinos do país. A sociedade, atenta a essas ações, tenha a certeza que suas Forças Armadas estão prontas a servir aos interesse nacionais.” Esses pronunciamentos – o primeiro, de um general demitido de suas funções como comandante do Exército, e o de outro, que acabara de assumir o Ministério da Defesa -, dando posse ao novo comandante do Exército, embora possam indicar alguma diferença de abordagem do papel da força, destacam principalmente que o pensamento prevalecente é o esposado pelo general Braga Neto, que é revelador da concepção hegemônica, hoje, de que as Forças Armadas (FFAA) são o poder incumbido de tutelar a Pátria e protegê-la de acordo com a visão conservadora e reacionária que esposam.
– A participação do Brasil na Cúpula do Clima, realizada em 22 de abril de 2021, por iniciativa e direção de Joe Biden, presidente dos EUA, além de revelar o aspecto grotesco da política ambiental de Bolsonaro, mostrou o isolamento e o desprestígio que vive nosso país na sua gestão.
– O agravamento das tensões militares na fronteira ucraniana, onde Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), EUA e Rússia se enfrentam por meio de rebeldes e governistas ucranianos.
Esse apanhado, no qual são elencados alguns dos fatos de destaque dessa quinzena, é ilustrativo do clima de instabilidade que, no Brasil e no Exterior, rege as relações políticas e sociais entre povos e nações.
Causas relevantes dessa instabilidade
Ao lado dos intensos acontecimentos da última quinzena, voltemos nosso olhar para alguns fatos relevantes que ocorreram neste primeiro quadrimestre do ano, que, embora bastante recentes, às vezes nos parecem distantes. Neles encontraremos as raízes próximas da situação dos dias atuais. Neste quadrimestre, a instabilidade foi o traço marcante da conjuntura sociopolítica do Brasil e do mundo. E essa instabilidade é multilateral e multifacetada. Manifesta-se na política, na economia, nas condições sanitárias das populações, na convivência entre as Nações etc.
No Brasil, no campo político, essa instabilidade se caracterizou pela existência de vários fatos, dos quais destaco:
– As eleições, para a presidência da Mesa da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, foram um dos mais importantes eventos políticos deste início de ano. A disputa para o cargo de presidente dessas casas do parlamento esteve no centro das atividades políticas nacionais, e polarizou as opiniões dos partidos e setores politicamente ativos da sociedade. Para ela convergiram a luta pela manutenção da independência do poder Legislativo frente ao Executivo, e a luta pela manutenção do Parlamento como um espaço de defesa da democracia, contrapondo-se aos anseios de Bolsonaro de ter, nessas duas casas, um suporte para a implementação de seus projetos políticos, de cunho autoritário, reacionário e conservador. A evolução da cena política e o papel que nela tem jogado o parlamento vêm confirmar que a eleição do Deputado Artur Lira, para a Câmara, e do Senador Rodrigo Pacheco, para o Senado, se não os tornou totalmente subservientes a Bolsonaro, como ele gostaria, lhe dá uma margem de manobra política que tem facilitado o seu governo e afetado a resistência democrática.
– O lançamento do livro de memórias Conversa com o Comandante, do general Villas Boas, ex-comandante do exército, no qual, entre outras coisas, ao lado de teorizar sobre o papel do Exército, vangloriar-se de seus feitos, defender o governo Bolsonaro, e inclusive destacar a condução política e o desempenho do ministro do Meio Ambiente, fez revelações sobre um twitter de sua autoria, publicado às vésperas do julgamento de um habeas corpus impetrado a favor de Lula no STF, em abril de 2018; habeas corpus que tinha como objetivo impedir a prisão de Lula após ter sido condenado em segunda instância, e com isso garantir as condições para que Lula pudesse exercer plenamente seus direitos políticos. Nesse twitter, o general pressionou o Supremo Tribunal da Nação para não conceder o citado habeas corpus, o que veio a acontecer. E com isso a possibilidade de Lula concorrer às eleições presidenciais de 2018 foi inviabilizada. E mais grave, no livro afirmou que o citado twitter teve a anuência do alto comando do Exército. Essa revelação feita no livro gerou um comentário crítico do ministro Fachin, considerando “Intolerável e Inaceitável” qualquer forma de pressão ou modo de pressão sobre o Poder Judiciário. O general, em réplica, ironizou o ministro, destacando que este só falou sobre o assunto três anos depois e, diante disso, o ministro Gilmar Mendes fez uma dura e irônica tréplica ao general, afirmando: “Ditadura Nunca Mais”. Esse episódio gerou um choque entre a suprema corte e lideranças expressivas do exército, da ativa e da reserva.
– Em conexão com esses acontecimentos, ocorreu um ataque frontal do Deputado Federal Daniel Silveira (PSL/RJ) ao STF. O deputado – à guisa de defender o general Villas Boas de eventual ataque a ele desferido pelos ministros do STF, Fachin e Gilmar, pelas revelações que o general fez em seu livro – publicou em mídias sociais um vídeo com violentos ataques ao ministro Fachin e ao conjunto dos 11 ministros do Supremo, e, em decorrência disso, foi preso por ordem do ministro Alexandre de Moraes. Essa prisão desencadeou uma crise na Câmara dos Deputados, que foi chamada a se posicionar para saber se concordava com a prisão do deputado ou não; tendo aquiescido com a prisão do deputado, e objetivamente saindo com seus poderes arranhados.
– Com a evolução da pandemia e o crescente desgaste do governo, que paulatinamente é responsabilizado pela população pelo mau tratamento ao enfrentá-la, e diante de pressões mesmo de sua base de apoio no Congresso, Bolsonaro, depois de muito relutar, muda o ministro da Saúde, em um processo confuso e tumultuado que o desgastou junto ao parlamento e à sociedade.
– A decisão monocrática do ministro Lewandowski do STF, de novembro de 2020, referendada pela 2ª Turma desse tribunal em 9 de abril de 2021, de permitir à defesa do ex-presidente Lula acessar a íntegra das gravações feitas por um hacker, encontradas durante a Operação Spoofing, nas quais estão registrados fatos sobre a atuação do juiz Sergio Moro e dos membros do MPF, da força tarefa da chamada operação Lava Jato, revelando práticas jurídicas e políticas ilícitas por parte dessas autoridades públicas. As medidas administrativas tomadas pela Procuradoria – Geral da República (PGR), encerrando a força tarefa dessa operação em Curitiba, e reorganizando o conjunto das operações de forças tarefas equivalentes. A decisão surpreendente do ministro Fachin, anulando todas as condenações impostas a Lula pela 13ª Vara de Curitiba, que foi referendada pelo Pleno do Supremo, considerando Moro incompetente nessas ações. A formação de maioria no Pleno do Supremo, em torno da suspeição de Moro no julgamento que condenou Lula na ação sobre a compra de um apartamento no Guarujá. A decisão monocrática do ministro Barroso do STF, em determinar que o presidente do Senado instaurasse uma CPI para apurar a condução do governo federal durante a pandemia em curso, que foi questionada pela Advocacia Geral da União (AGU), mas confirmada pelo Pleno do tribunal. Tudo isso nos mostra um frenético suceder de acontecimentos de alto impacto político, derivados dessas ações do STF e da PGR, ainda em desdobramento.
– Fruto dessas decisões judiciais, Lula volta a ter seus direitos políticos garantidos, e pode disputar as eleições presidenciais de 2022; o que interfere de forma significativa no cenário político.
Esses acontecimentos trouxeram mais elementos a configurar que, nos primeiros meses deste ano, a situação política do país foi de extrema instabilidade. A evolução desse quadro revela que Bolsonaro tem sofrido importantes derrotas, que o desenrolar dessas contradições tem lhe trazido um crescente isolamento no conjunto da sociedade, e desenvolvido contradições entre seus apoiadores.
Na arena internacional, os fatos mais relevantes são a confirmação da derrota de Trump e da posse de Joe Biden, na presidência dos EUA. Tais fatos vieram a expor a crise por que passa a maior potência mundial nos terrenos político e social; o que por si só é um fator de instabilidade na cena internacional. Mas Biden, empossado, iniciou um intenso processo político cujo fulcro é, na frente interna, injetar bilhões de dólares na recuperação da economia americana, buscando gerar empregos, amainar a crise social e facilitar a sua governabilidade e, na frente externa, recuperar o papel protagonista que os EUA tinham até recentemente, na Europa e em parte da Ásia, e ao mesmo tempo conter a ascensão da China como potência mundial.
Outro fato de importância equivalente, na cena internacional, é o protagonismo, em política externa, que a China está disposta a jogar, e vem jogando, sob a liderança de seu presidente, Xi Ji Pin. Tal protagonismo ficou destacado em seu pronunciamento no último Fórum Social de Davos, em 25de janeiro de 2021, no qual ele critica o “isolamento arrogante” de certos países, que pode levar a uma nova “guerra fria”, e assume a defesa do estabelecimento de relações internacionais baseadas na cooperação multilateral entre as nações. Defende a importância e o fortalecimento dos órgãos de governança internacional, como ONU, UNESCO, OMC, OMS etc., o livre comércio, a solidariedade entre as nações, enfim, o estabelecimento de uma Ordem Internacional, pacífica, solidária e harmoniosa. E conclui o pronunciamento, afirmando: “Só temos uma terra, um futuro compartilhado para a humanidade. Vamos dar as mãos.”
Merecem também registro as posições da Federação Russa que, embora não tenha a expressão econômica da China, tem um poderio militar que a coloca em posição de destaque nas preocupações dos EUA. E, nesse sentido, é também um alvo central da política externa de Biden, a fim de conter seu fortalecimento.
Também destaco alguns países europeus ocidentais, como a Alemanha, que têm se manifestado na mesma linha de defesa de relações internacionais baseadas na cooperação e não no isolacionismo entre as Nações. E inclusive têm advogado uma discussão sobre o papel da OTAN. Ângela Merkel, falando em Davos, no dia seguinte ao pronunciamento de Xi Ji Pin, também se manifestou em defesa de relações multilaterais e recíprocas.
Nesse cenário de capitalismo em crise, de antagonismo entre nações, de pandemia fora de controle, a contradição que rege as demais é a que explicita a lenta, porém real decadência dos EUA e a ascensão da China. O desenvolvimento dessa contradição, entre EUA e China, gera uma luta pela hegemonia no mundo, que é um fator estratégico de desequilíbrio das relações entre países, e manterá tensas e instáveis as relações internacionais.
Na seara econômica, o ano se iniciou sob o forte impacto do recrudescimento da pandemia do coronavírus, frustrando várias previsões de retomada do crescimento. Em uma publicação de fevereiro de 2021, intitulada Cenário Econômico 2021 , a Federação das Indústrias de SP (FIESP), essa emblemática entidade do empresariado paulista e brasileiro, afirma no seu ponto 1 que: “A atividade econômica deve perder força no 1º trimestre, devido à piora no contágio do vírus e a retirada do Auxílio Emergencial.”
Alguns dados nos mostram a precariedade da situação, dos quais cito alguns referentes ao desempenho da economia. Em 2020, a retração da economia foi de 4,1%; a inflação atingiu 4,56%; a retração do consumo das famílias foi da ordem de 5,2%; a Formação Bruta de Capital Fixo recuou em 2,9%; as exportações caíram 1,9%; e as importações recuaram 10,3% . Já o jornal Valor Econômico, em sua edição de 26 de fevereiro de 2021, divulga que: A taxa de desemprego, em Dezembro de 2020, foi de 13,9%, e em Janeiro de 2021, a Receita no Varejo caiu 5,3%, o volume de vendas caiu 6,1%, e no setor de serviços, a receita cresceu 0,7%, mas o volume caiu 0,2% .
Por outro lado, setores da mídia econômica ligada ao establishment, e certas associações de classe empresarial, divulgam estudos onde apontam uma visão bastante otimista para o desempenho econômico em 2021. O próprio estudo da FIESP, anteriormente citado, a partir do segundo ponto, passa a apresentar uma série de números com os quais procura provar que a retomada econômica em escala mundial e nacional é positiva. Esse segundo ponto intitula-se Crescimento global robusto, no qual se afirma que o PIB mundial crescerá 5,2%, o dos países desenvolvidos 3,9%, o dos EUA 3,1%, o das Economias emergentes e em desenvolvimento 6,00% o da China 8,2%, e o do Brasil terá um crescimento de 4,0% .
Mas, apesar desses setores do empresariado e da imprensa do establichment alardearem que durante o ano de 2021 haverá uma retomada econômica, e que será recuperado o vigor econômico de antes da eclosão da pandemia, os números não apontam nesse sentido.
De acordo com o jornal Valor Econômico, de trinta de março de 2021, em matéria em que analisa o desempenho da economia no primeiro trimestre do ano, a Diretoria de Macroeconomia do IPEA (Dimac/Ipea) informa que o PIB deste ano crescerá 3%, e no primeiro trimestre recuará 0,5%. Avaliam ainda os técnicos do IPEA que, no primeiro semestre de 2021, “ o impacto negativo sobre a atividade econômica tende a prevalecer”.
Pandemia. Um outro fator de instabilidade da situação é a continuidade e aceleramento da pandemia. As expectativas criadas, nos últimos meses de 2020, de que a pandemia estava entrando em refluxo e sob controle se desmoronaram logo em janeiro deste ano. A forte segunda onda da doença, o aparecimento de novas cepas, o recrudescimento de casos em vários países da Europa, Reino Unido, Portugal, Alemanha, Espanha, Itália, e em outras partes do mundo, combinado com a falta de número suficiente de vacinas para imunização das populações, fazem com que este início de ano tenha testemunhado uma pandemia que continua forte e ameaçadora. Isso traz reflexos nas atividades econômicas e nas governanças políticas dos vários países, e agrava de forma significativa o sofrimento de importantes parcelas da população do globo. E no Brasil, em função principalmente da incúria do governo federal, estamos vivendo um forte recrudescimento da pandemia, criando situações de calamidade pública, com falta de leitos, oxigênio e outros insumos essenciais para o tratamento da doença, como o ocorrido em Manaus/AM. E, segundo cientistas e autoridades sanitárias, o país pode colapsar se não forem tomadas medidas urgentes de distanciamento social e de intensificação expressiva do processo de vacinação.
Porém esse cenário político, econômico, social, sanitário, crítico que vivemos, neste início de ano, se tem no desenvolvimento da pandemia um forte catalizador, não é um mero desajuste passageiro que a pandemia agravou. Ele está inserido em uma crise estrutural do capitalismo que se prolata no tempo, e tem cada vez mais se agravado, em vez de se amainar.
Algumas consequências dessa situação
Na cena internacional, a posse de Biden, substituindo Trump, não tem o condão de fazer desaparecer os sérios problemas que existem nos EUA, tanto interna como externamente. O desejo de Biden, e de seu partido Democrata, de restabelecer a ordem mundial nos termos da “pax americana”, onde o Império exercia sua hegemonia no mundo de forma destacada, não mais existe. Seja porque a gestão Trump, com sua America First, fez soar o alerta, para seus aliados no geral e os da Europa Ocidental em particular, de que é necessário construir relações internacionais mais multilaterais, onde outros parceiros possam contrabalançar o excessivo poder que os americanos até agora têm tido. Seja pela emergência da China como um país que pretende jogar um papel mais assertivo na cena internacional, saindo de sua, até agora, discrição no trato dessas questões. O discurso de Xi JI Pin, em Davos em janeiro último, conforme registramos acima, é uma forte indicação desse novo papel.
Mas não deve ser subestimada a capacidade de reação dos EUA. Os planos recém- anunciados por Biden, de um novo New Deal, devem trazer alento interno para os EUA, com certo dinamismo econômico, aumento do emprego e consequente diminuição das tensões internas.
Nesse cenário, rapidamente referido, a tendência é de agravamento das tensões entre nações, tendo a evolução das contradições entre os EUA e a China como vetor desse processo.
Na cena interna, além das repercussões dessa situação internacional, os fatos anteriormente arrolados denotam uma crise política que vai muito além da mera existência do governo Bolsonaro e suas idiossincrasias. O episódio referente à disputa das presidências do Senado e da Câmara revelou uma determinação de Bolsonaro de construir uma base de governabilidade que lhe permita levar à frente seu projeto de criar um Estado autoritário no Brasil, onde ele possa implementar seu programa altamente retrógrado, antidemocrático, autoritário e antinacional. Para isso não mediu esforço, seja buscando aliados no chamado Centrão, seja praticando a condição sine qua non para obter o apoio desses políticos, abrir os cofres do tesouro para que os deputados desses partidos tivessem verbas para usarem em suas bases eleitorais e outras finalidades, reposicionando-se, assim, frente ao que chama de “velha política”. Isso levou a disputas e divisões internas em vários partidos, do campo da Direita, as quais atingiram um grau muito elevado, ocasionando cisões e impactando no processo sucessório de 2022. Uma rápida olhada em como os partidos votaram na eleição para a presidência da Câmara é ilustrativa do grau de volatilidade das relações interpartidárias e dentro dos partidos hoje existentes. O caso do DEM é emblemático. Mas esse reposicionamento de Bolsonaro frente à “velha política”, aliando-se com o Centrão, não é um casamento pacífico e estável, mas sim uma relação conflituosa, prenhe de contradições, como ficou patente na votação do orçamento da União e na instalação da CPI da Pandemia, entre outros.
Esse rápido apanhado de como se desenvolveu a situação da conjuntura econômica, política, sanitária e social, interna e externamente, mostra uma tendência geral, a partir dos indicadores apontados, de que o desenrolar de 2021 será de agravamento dessa situação, criando um ambiente para as disputas das eleições gerais de 2022, onde as forças do campo democrático e progressista terão muitas dificuldades para enfrentar as forças conservadoras de direita, de extrema-direita que, além de ativas, estão no controle do governo e do aparato burocrático do Estado.
Deve ser acompanhado com atenção que alguns dos últimos acontecimentos políticos têm aumentado de forma significativa o isolamento do presidente, e podem criar um clima mais favorável para a disputa eleitoral de 2022, diferente das condições em que foram realizadas as de 2018 e 2020. As derrotas sofridas por Bolsonaro no STF, que permitiram a volta de Lula à disputa político-eleitoral, a instalação da CPI da Pandemia, o recrudescimento por parte do presidente de ameaças à democracia, com o chamamento à sua militância para “agir” e o apelo ao “meu exército” para garantir a “lei e a ordem” contra governadores e prefeitos, são exemplos disso.
Diante desse quadro de instabilidade, como estão e se comportam algumas das peças mais importantes desse jogo?
O governo Bolsonaro entrou em um processo de isolamento político crescente, tendo como causa central a sua postura frente à pandemia. O Brasil chegou à casa dos 400 mil mortos por causa do vírus. Esse número, por si só assustador, tem profundo impacto na sociedade. É raro, para não dizer inexistente, um brasileiro que não tenha um conhecido ou um parente que não tenha sido vítima do vírus. Simultaneamente a isso, suas políticas sobre o Meio Ambiente, Amazônia, Relações Internacionais e o funcionamento do Estado Democrático de Direito, o têm afastado de certos setores das elites que, em 2018, nele votaram com o fito de derrotar o PT e restabelecer um governo que, na expectativa desses setores, desse continuidade aos aspectos principais do governo Temer, e, como isso não está acontecendo, sentem-se frustrados. Mas o governo Bolsonaro não pode ser subestimado. Além de contar com o apoio de fato das FFAA, conta com uma base de apoio de cunho ideológico que o sustenta em qualquer situação. Essa base ideológica é motivada pela implantação no Brasil de um regime ditatorial de extrema-direita, com plenos poderes para implementar uma agenda retrógrada, conservadora, de extrema-direita enfim.
O fato de o ex-presidente Lula ter condições de disputar eleições em 2022 é outro elemento-chave na evolução desse quadro. E isso por si só está provocando um rearranjo de forças políticas para a disputa presidencial do ano vindouro. Um dos eixos desse rearranjo é a busca, pela direita tradicional, de um candidato por ela dito de Centro, que seja uma alternativa à polarização entre o que ela considera extremos, Lula e Bolsonaro. A candidatura de Lula à presidência em 2022, se efetivada, será sem dúvida não a candidatura de extrema-esquerda que alardeiam, mas o polo aglutinador da resistência democrática e progressista do país.
O fator FFAA é sem dúvida a peça mais decisiva desse xadrez. Independente de avaliações sobre o seu papel histórico, de suas contribuições para a construção da Nação e mesmo de certos posicionamentos nacionalistas, é inegável que hoje elas estão hegemonizadas por um sistema de pensamento e um generalato que as transformou numa sólida corporação de viés conservador e direitista, sem um projeto de construção nacional de perfil democrático e progressista, centradas em projetos específicos de fortalecimento do poder de fogo de cada força, e que se arvoram como o árbitro dos rumos políticos da Nação, e, na atualidade, são o sustentáculo principal do governo Bolsonaro.
O complexo jurídico hoje existente é uma das peças-chave nas disputas e no exercício de poder na República. Composto de várias instituições e instâncias, adquiriu com a Constituição de 1988 um poder de ação que o coloca, em certo sentido, acima dos poderes clássicos do Estado Democrático de Direito (Executivo, Legislativo, Judiciário), com destaque para o papel que foi conferido ao Ministério Público Federal. Essa proeminência tem causas múltiplas. Uma de suas origens está na busca, pelo constituinte progressista de 1988, de construir mecanismos de controle sobre o exercício do poder pelos governantes. Dessa maneira a nossa Constituição consagrou, em seu texto, uma série de poderes aos vários ramos do complexo jurídico nacional, que os transformou, de fato, em um poder superior às esferas legislativa e executiva.
O Judiciário, com os poderes que lhe foram conferidos pela CF de 1988, e a vasta legislação infraconstitucional que lhe ampliou e consolidou tais poderes, é sem dúvida nos tempos atuais um dos poderes mais importantes da República.
Na atualidade, com os rumos políticos que o país vai tomando, o STF, além de vértice do Sistema Jurídico Nacional, é o mais importante polo de poder do Estado. Para ele convergem as mais variadas demandas políticas e, paulatinamente, ele foi assumindo o papel de legislador de fato e controlador de direito em última instância.
Dessa maneira, o comportamento das várias instituições e instâncias do complexo jurídico do país, com destaque para o STF, é um elemento importantíssimo no desenvolvimento da situação política em curso.
A CPI da Pandemia é um fator importante que poderá influir fortemente nos rumos dessa conjuntura, e merece ser acompanhada de perto. As disputas que ocorreram na sua instalação mostram quão complexa será sua realização. O fato é que a sua existência elevou em muito a agressividade do governo em sua autodefesa.
Qual o significado de tudo isso para o nosso futuro?
Ouso fazer uma prospecção sobre o que o cenário apresentado significa para o nosso futuro.
O Brasil, país de desenvolvimento médio, dependente economicamente das potências centrais do capitalismo, com elites colonizadas que não tem, e em certo sentido nunca tiveram, um projeto de construção nacional autônomo e independente, vive na atualidade uma situação de organização político-jurídica do Estado confusa e anárquica, que o imobiliza e nos ameaça como Nação.
O Estado Brasileiro é hoje um Estado disfuncional, contraditório em sua estrutura. Do ponto de vista formal, abriga elementos do Estado Liberal Burguês Clássico (tripartição dos poderes, liberdades formais etc.), e foi essa forma de organização a consagrada na Constituição Federal de 1988. Simultaneamente abriga fortes elementos de um Estado de Exceção, nos quais, além da existência do artigo 142 da CF – que permite interpretações de os militares têm base legal para eventuais aventuras intervencionistas-, existem, de forma crescente, poderes de corporações como MPF, PF, PRF, TCU, TSE/ASEPA. Poderes esses que tiveram suas origens nas boas intenções dos constituintes de 1988, mas que evoluíram para o fortalecimento dessas corporações, criando em certo sentido um Estado dentro do Estado. Abriga, também, importantes elementos de um Estado Democrático Social de Direito, que foi fruto da Constituição Federal de 1988, e que estão basicamente explicitados nos artigos 5º e 6º daquela Carta. Esse amálgama foi moldado, como já referimos, a partir da CF de 1988, e teve sequência nos vários governos que a seguiram, inclusive nos de Lula e Dilma.
Esse processo de construção de um Estado Disfuncional foi o resultado do complexo e longo processo de controle das rédeas do Estado Nacional, pela direita conservadora clássica, que o controla desde o Império, e sempre consegue retomar suas rédeas, quando algum movimento político que contesta a ordem vigente consegue estremecer suas bases de poder. Assim foi na República, depois do governo de Floriano: as elites latifundiárias reassumiram o controle do aparato do Estado, e por longo tempo conduziram o país no que é chamado de “República Velha”. Com o esgotamento dessa “República”, a crise que se estabeleceu levou à Revolução de 1930, no curso do qual essas elites da direita conservadora, paulatinamente, se assenhorearam das rédeas do Estado.
Com a queda de Getúlio em 1945, resultante dos ventos democráticos que sopravam no mundo e no Brasil, em decorrência do fim da Segunda Grande Guerra, viveu-se um período de instabilidade e crises. Getúlio volta ao governo, em eleições consagradoras, em 1952, e o rumo que ele aponta nessa nova gestão contraria em muito os interesses dessas elites e inicia-se um novo período de crise. O suicídio de Getúlio em 1954, a eleição de Juscelino em 1955, os levantes de Aragarças e Jacareacanga, ambos em 1956 contra sua posse, a eleição e renúncia de Jânio em 1961, a tumultuada posse de Jango no mesmo ano e o golpe que o depôs em 1964, durante todo esse período a direita tradicional perdeu, em maior ou menor grau, o controle de governos e do aparato do Estado que detinham. E, durante a ditadura militar, voltava a se sentir contemplada com os governos militares.
Com a redemocratização de 1985 e a Constituição de 1988, perdem poder com o ascenso democrático que o país passa a viver. E, hábeis no exercício do jogo político parlamentar e institucional, paulatinamente retomam o processo de controle do governo e do Estado, o que vêm fazendo com êxito. A eleição de Bolsonaro foi um momentum desse processo, que teve o objetivo de afastar as forças democráticas e progressistas que governavam o país, e dessa maneira abrir caminho para a volta plena dessas elites tradicionais ao governo, e, repito, ao controle do Estado. Porém o desenrolar do governo Bolsonaro, com as características, atitudes e desprezo pela vida, que de forma repetida apresentamos neste texto, deixou-as frustradas e, hoje, procuram uma alternativa “civilizada” para dar continuidade a seu domínio.
Esse é, a meu juízo, o pano de fundo da luta política que se desenvolve hoje em nosso país, e que, se não for vencida pelas forças democráticas, progressistas e de esquerda, pode ameaçar a nossa existência como Nação Soberana.
Do ponto de vista imediato, estamos desafiados a garantir que a luta contra o governo genocida de Bolsonaro seja vitoriosa. Devemos derrotá-lo, para impedir que continue com sua trajetória de não enfrentamento da pandemia, de entrega das riquezas nacionais ao capital privado local e estrangeiro, de suas políticas de agressão ao meio ambiente, de desmonte da ciência, tecnologia e cultura. Devemos derrotá-lo principalmente para evitar que seu objetivo maior, de implantar no Brasil um Estado autoritário de natureza fascista, seja vitorioso.
Para isso a nossa participação, em todas as frentes de lutas que existem na sociedade, é um imperativo revolucionário. Desde a busca de elaborar análises teóricas e propostas políticas que estejam em sintonia com as profundas necessidades da construção de um Brasil soberano, autônomo e socialmente justo. Como criar, desenvolver e aprofundar vínculos orgânicos com a população trabalhadora e sofrida de nosso país.
Destaca-se, na conjunção desses desafios, a imperiosa necessidade de formar a mais ampla frente política de defesa da democracia e de combate à pandemia e seus efeitos.
É necessário e imperativo confluir todas essas iniciativas para garantir que, nas eleições gerais de 2022, o esquema político hoje dominante seja derrotado. O governo Bolsonaro e a extrema-direita precisam ser derrotados e afastados.