José Carlos Ruy: Da abolição ao capitalismo – no Brasil e nos EUA

Se no Brasil esse sistema bárbaro foi dominante por quase quatro séculos, nos Estados Unidos o escravismo ocupou apenas parte do território – o Sul

Trabalho escravo em 1882, na colheita do café no Vale do Paraíba (Marc Ferrez, 1882)

O fim da escravidão, no Brasil, ocorreu quando a Lei Áurea proibiu, em 13 de maio de 1888, aquele regime iníquo e indicou a mudança entre dois modos de produção: o escravista, que chegava ao fim, e o capitalista, que estava nascendo no País.

No século 19, havia no mundo duas grandes economias nas quais o modo de produção escravista tinha papel central: Brasil e Estados Unidos da América. Havia entre elas, porém, grandes diferenças. Lá, como aqui, o escravismo era baseado na mesma crueldade que impõe a desumanização dos que trabalham, sua negação como seres humanos, a humilhação, a falta de liberdade. O trabalhador – o escravo – era reduzido a mero instrumento de trabalho, comparável aos animais usados na produção; eram não mais que res vocalis, “coisa que fala”, como diziam os romanos.

Se no Brasil esse sistema bárbaro foi dominante por quase quatro séculos, até 1888, em todo o território nacional, nos Estados Unidos o escravismo ocupou apenas parte do território – o Sul. Em 1820, foi firmado o chamado Compromisso do Missouri, que fixou as regras para a existência da escravidão nos novos territórios conquistados no Oeste. Aquele compromisso admitia a escravidão em metade dos novos territórios, mas a proibia na outra metade. Assim, a escravidão ficava restrita aos territórios abaixo do paralelo 36º.

Lá, como no Brasil, a abolição foi precedida por uma série de medidas legislativas. Aqui elas diziam respeito à pessoa do escravo. O tráfico foi proibido em 1831 e, em definitivo, em 1850. Com a Lei do Ventre Livre (1871), não nasciam mais escravos no Brasil. A Lei dos Sexagenários (1885) deu liberdade aos escravos com mais de 60 anos.

Os Estados Unidos constituíram uma federação, com grande autonomia para cada estado. Por isso, as medidas legislativas anteriores à abolição precisavam respeitar as decisões de cada um deles. Elas demarcavam as regiões em que a escravidão era permitida, levando em conta as bases de seu desenvolvimento – capitalista e sem escravos no Norte, escravista no Sul.

Fazia sentido: era no Norte que o capitalismo se desenvolvia e a industrialização se acelerava. No Sul, prevalecia a agricultura escravista e latifundiária dedicada principalmente à monocultura do tabaco e do algodão, produzidos para exportação. Era como no Brasil, que produzia matérias-primas e bens de consumo para o mercado europeu.

No território estadunidense, ao Norte, sob o capitalismo, a reprodução do sistema assumia a forma de crescimento do capital, aplicado na produção para gerar mais-valia. No Sul, a reprodução ocorria – como no Brasil escravista – pelo aumento do número de escravos e a incorporação de novas terras.

Ao Sul escravista, era fundamental agregar novos territórios para permitir que o sistema pudesse se reproduzir. Nesse sentido, a disputa entre o Norte e o Sul era acentuada, e os políticos sulistas defendiam o direito de cada novo território decidir se teriam ou não teriam escravos.

Em 1850, depois da conquista da Califórnia – um território não escravista –, outro acordo foi firmado, o chamado Compromisso Clay, pelo qual os estados podiam decidir sobre a questão escrava. Dez anos depois, a questão escrava foi um tema sensível na eleição presidencial, em 8 de novembro de 1860, quando venceu o republicano Abraham Lincoln (1809-1865).

Em reação às suas ideias que preconizavam alguma regulação do escravismo, ainda em 1860, antes mesmo de sua posse – quer ocorreu em 4 de março de 1861 –, a Carolina do Sul se declarou fora da União. Era o marco inaugural da formação dos Estados Confederados da América, que logo cresceu, unindo 11 estados do Sul escravista. Além da Carolina do Sul, aderiram Virgínia, Carolina do Norte, Geórgia, Flórida, Alabama, Mississippi, Louisiana, Arkansas, Texas e Tennessee.

A Guerra Civil (ou de Secessão) começou em 12 de abril de 1861, e o que estava em jogo – além da libertação dos escravos – era principalmente o direito de cada estado de decidir sobre esse tema que tinha importância fundamental. O conflito acelerou a Abolição.

Em 1º de janeiro de 1863, Lincoln promulgou a Emancipation Proclamation, declarando livres os escravos nos estados do Sul – pois no Norte já não havia escravidão desde o início do século 19. No momento da Proclamação de Emancipação, o Sul contava com cerca de 4 milhões de negros, dos quais 500 mil eram livres e os demais, escravizados. A população branca compreendia cerca de 8 milhões de pessoas.

A lei que aboliu a escravidão não “pegou” de imediato. Foi preciso esperar pelo final da Guerra Civil para que novas emendas à Constituição dessem caráter definitivo ao fim do escravismo. Em 1865, a 13ª Emenda – que proibia a escravidão – foi publicada em 8 de abril (poucos dias antes da rendição final das tropas sulistas) e aprovada no Congresso em 6 de dezembro. Seu teor foi reforçado, em 1866, pela 14ª Emenda (que dava a cidadania estadunidense a todas as pessoas nascidas no país) e, em 1870, pela 15ª Emenda (que estendia o direito de voto a todos os cidadãos do sexo masculino, independentemente da cor de pele).

A Guerra Civil terminou em 9 de abril de 1865 (Lincoln foi assassinado a tiros menos de uma semana depois, em 15 de abril). O Sul foi derrotado. Calcula-se que morreram mais de 600 mil pessoas, um número gigantesco: em 1860, a população dos Estados Unidos era de 31 milhões de pessoas. Cerca de 2% dos moradores foram mortos na guerra.

Esta é a mais evidente diferença entre a forma como ocorreu a abolição nos Estados Unidos e no Brasil. Por aqui, há o hábito conservador de apontar as virtudes do caráter “pacífico” e não sanguinolento da abolição, enquanto lá ela resultou de uma guerra civil revolucionária que deixou mais de meio milhão de mortos. O argumento conservador que avalia os acontecimentos dessa maneira não leva em conta a natureza dos processos históricos vividos lá e aqui.

No Brasil, quem diz que o processo foi pacífico esquece as inúmeras mortes, sobretudo de negros escravizados, ocorridas durante a campanha abolicionista. O processo da abolição foi dirigido pela mesma classe dominante de latifundiários que se ergueu sob o escravismo e manteve o poder depois do 13 de maio, impondo ao país a manutenção de seus interesses, de natureza colonial.

Permaneceu em vigência – tal como no escravismo – a produção de gêneros para o mercado externo, sob condições semelhantes de subordinação e exploração do trabalhador (que agora era imigrante europeu, italianos sobretudo). No colonato, o trabalho livre e assalariado era uma ficção jurídica. O País continuou sob o domínio dessa oligarquia latifundiária, no marasmo que havia antes, com limitado crescimento econômico e as mesmas grandes dificuldades para o desenvolvimento – o que só foi destravado após a Revolução de 1930, que pôs um ponto final ao predomínio exclusivo da oligarquia.

Nos Estados Unidos, ao contrário, o caráter revolucionário da abolição foi assinalado por aquela guerra que opôs o Norte, industrial e capitalista, ao Sul agrário e escravista. E a burguesia industrial venceu – o domínio dos latifundiários do Sul foi esmagado –, numa realidade histórica expressa de forma artística no filme …E o Vento Levou, de 1939.

O resultado da Guerra Civil destravou as amarras coloniais e eliminou o predomínio do livre comércio que elas geravam, preconizados pelos latifundiários do Sul, facilitando o desenvolvimento da indústria. Este setor se beneficiou da proteção contra a concorrência externa, do mercado interno crescente e da incorporação da mão de obra livre e assalariada. De tal maneira que, poucas décadas depois do fim da Guerra Civil, os Estados Unidos se tornaram a maior potência industrial e a maior economia do mundo.

Lá, como aqui, a opressão contra o negro, ex-escravo, foi semelhante. A lei variava de estado para estado e impôs severas restrições à liberdade registrada nas mudanças constitucionais decorrentes da guerra civil. Nos estados do Sul surgiram os Black Codes (Códigos Negros), que burlavam a Constituição e proibiam aos negros o casamento interracial, o consumo de bebidas alcóolicas, o porte de armas e até a posse de terras, como no Mississipi. Também impediam o exercício do direito do voto com base em absurdas exigências de escolaridade e nível de renda.

Em 1875, surgiram as leis “Jim Crow”, criando a segregação que impedia os negros de frequentarem os mesmos lugares que brancos (como banheiros e bebedouros públicos) e de ocuparem os mesmos assentos no transporte coletivo. Nos ônibus, um negro era obrigado a ficar na parte de trás e a ceder o lugar aos brancos quando não houvesse onde pudessem se sentar).

Essa situação de segregação opressiva só foi superada, em parte, um século depois do fim da escravidão nos Estados Unidos. Foi nas décadas de 1950 e 1960 que ocorreu um verdadeiro levante em defesa dos direitos civis e da igualdade. E houve violência, tal qual um século antes. Martin Luther King, o líder da resistência pelos direitos civis, por exemplo, foi assassinado em 4 de abril de 1968.

No Brasil, da mesma maneira, o preconceito racial se manteve, em formas como a opressão do negro no pós-abolição de 1888. Não havia, no País, um sentimento de legalidade democrática que levasse, como nos Estados Unidos, ao registro da ideia de igualdade na Constituição. A ideia de inferioridade do negro e de supremacia daqueles que se consideram brancos é tão entranhada nos costumes brasileiros que o historiador Clóvis Moura, especialista na história da escravidão e do racismo, dizia que o inconsciente do brasileiro é racista.

Aqui não houve a necessidade de adoção de leis de segregação racial – uma situação retratada pelo dito popular segundo o qual “o negro conhece o seu lugar”. Após a Lei Áurea, os negros foram relegados à “liberdade”, sem assistência por parte do Estado, sem acesso à terra e à margem do sistema de trabalho no qual, antes do 13 de maio, ocupava posição central – a de escravo. O lugar do negro sancionado pela classe dominante foi o mais humilde na sociedade.

Classificado como “vagabundo” por membros da classe dominante, coube a ele os piores postos de trabalho com os piores salários. Seus locais de moradia são mais remotos e impróprios, a exemplo das periferias das grandes cidades, onde os negros respondem por 71,5% dos 318 mil jovens mortos a tiro entre 2005 e 2015. Eis o mais veemente desmentido do caráter pacífico das relações raciais no Brasil. Transcorridos 131 anos da abolição, as mazelas cotidianas da população negra são registradas pelas estatísticas e refletem nossa vergonha nacional.

Texto publicado originalmente no Vermelho em 13 de maio de 2019

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