Slam, saraus e coletivos: poesia para resistir ao horror

Coletivos se apropriam da poesia como instrumento de denúncia e resistência cultural e política

O Slam da Guilhermina, fundado em 2012, acontece nas imediações da Estação Guilhermina-Esperança do Metrô, em São Paulo – Foto: Sergio Silva. Foto: Sérgio Silva.

Primeira estrofe. Sexta-feira, zona leste de São Paulo, Estação Guilhermina-Esperança do Metrô. Trabalhadores e estudantes desembarcam de vagões, entram em micro-ônibus, os passos rápidos da metrópole e as cores amarelas, alaranjadas e vermelhas da noite paulistana. Ao lado da estação, microfone plugado à caixa de som, aglomeração à espera de poesia. Em poucos minutos, rimas e contestação social farão a trilha sonora da periferia. Plaquetas com notas serão erguidas da plateia e algumas poetisas aclamadas. É o Slam da Guilhermina, desde 2012 fazendo do espaço público o palco da poesia.

Segunda estrofe. Um centro de acolhida para pessoas em situação de rua – mas poderia ser também uma ocupação de moradia. Aos poucos, música e poemas capturam a atenção de quem passa, de quem chega e de quem só está. Convite para que a palavra se democratize, para que a experiência das ruas ganhe rimas. Logo, comunicar se torna possibilidade e formas poéticas para razões e ações recebem plateia. Está se instaurando o Sarau Poesia é da Hora.

Dois exemplos, entre centenas multiplicados pelo País, de um movimento que enfrenta empecilhos e tradições conservadoras para tomar ruas, praças, centros de acolhida, ocupações de moradia e espaços periféricos. Seu motor é a palavra que inspira, instiga, emociona, denuncia e transforma. São slams, saraus e coletivos que não precisam dos cânones celebrados em livros didáticos e trajados com o fardão imortal para viver a poesia e fazê-la instrumento de resistência política e cultural.

Sarau Poesia é da Hora, no centro de acolhida São Mateus, em São Paulo, 2017 – Foto: Acervo pessoal

Slam da Guilhermina

O Slam da Guilhermina surgiu em 2012 e acontece mensalmente desde então. É uma disputa de poesia falada, na qual os participantes apresentam três poemas com até três minutos cada, que são avaliados por jurados da plateia. É o segundo slam do Brasil – o primeiro, Zap! Slam, serviu de inspiração direta para o poeta Emerson Alcalde levar o formato para a zona leste.

Alcalde participava de movimentos de cultura e reivindicação nos bairros de Cangaíba e Ermelino Matarazzo, também na zona leste, organizando manifestações e eventos culturais pautados pela questão do abandono do poder público. Também frequentava eventos literários na zona sul da cidade, como o Sarau da Cooperifa e o Sarau do Binho. Após algum tempo frequentando esses eventos, decidiu levar algo parecido para a zona leste.

Slam da Guilhermina: poesia no espaço público – Foto: Sergio Silva

A dificuldade em encontrar espaço para abrigar a ideia – os saraus da zona sul aconteciam em bares, o Zap! Slam em um teatro – levou Alcalde, literalmente, para a praça pública. A região em torno da Estação Guilhermina-Esperança foi escolhida pelo acesso fácil, sendo uma zona de transição e circulação potencializada pelo Metrô e as linhas de ônibus.

Em fevereiro de 2012, uma roda de 25 pessoas inaugurou o Slam da Guilhermina. Desde então o movimento só ganhou força. Nas noites mais efervescentes, cerca de 600 pessoas já circundaram as poetisas e os poetas que esperam a chance de pegar o microfone e mandar seu recado em versos.

Duas características tornam o slam atrativo, segundo Alcalde. “Primeiro, a questão da competição. Isso atrai principalmente jovens, que gostam disso. É o jogo. O jogo tem regras e as pessoas torcem, acaba prendendo a atenção.”

A segunda caraterística envolve os assuntos abordados. “São temas atuais. Aconteceu um fato, já está no slam”, comenta o poeta. “As pessoas que estão passando no Metrô, se você fala algo muito abstrato ou difícil, elas vão embora. Agora, se alguém fala dos 28 mortos de Jacarezinho, isso entra na hora do slam. Os poetas são muito atualizados: a poesia é urgente.”

Finalistas do Slam da Guilhermina de 2019 – Foto: Sergio Silva

De acordo com Alcalde, a maioria dos participantes dos slams é formada por jovens, negros e periféricos, com o predomínio das mulheres na competição. Originalmente, em sua origem nos Estados Unidos e logo que chegou ao Brasil, o slam não estava tão associado a temas sociais e políticos, praticamente sua vocação hoje em dia. Apesar de o caráter competitivo já estar presente, a proposta era simplesmente democratizar a poesia.

Foi aos poucos que os temas foram ganhando conteúdos mais diretos e atuais. Em 2013, Alcalde já percebeu a politização no Slam da Guilhermina, mas, com o terremoto sociopolítico que pegou o Brasil desde as últimas eleições presidenciais, isso se tornou ainda mais marcante. “Depois de 2018 não teve como, o mundo ficou tão louco, o Brasil mais ainda, e os poetas passaram a responder à atualidade, ao mundo.” Apesar de homenagens às mães, temas amorosos e algum bom humor às vezes darem as caras, são o feminismo, a denúncia do machismo, as questões raciais e sociais e, atualmente, as críticas a Bolsonaro que compõem a pauta central do slam.

Sarau Poesia é da Hora

O Sarau Poesia é da Hora também começou em 2012, dentro de um centro de acolhida para pessoas em situação de rua localizado na Barra Funda, bairro da zona oeste de São Paulo. “Foi uma coisa totalmente nova para nós. Todo mundo saiu chocado depois do sarau, porque ali é um lugar que, muitas vezes, a poesia não adentra”, conta a poetisa Marah Mends, uma das integrantes do coletivo Poesia é da Hora, que organiza o sarau. “Foi um choque e ao mesmo tempo um desafio, tanto que, depois daquele dia, nós não paramos mais.”

Marah Mends, Henrique Ramos e Nicanor Jacinto, integrantes do coletivo Poesia é da Hora – Foto: Acervo pessoal

Desde 2012 os encontros acontecem uma vez por mês. Após um ano sendo realizado no espaço da Barra Funda, o sarau passou a circular por outros centros de acolhida e ocupações de moradia. Seu público é composto pelos frequentadores dos centros de acolhida, por moradores das ocupações e por poetas e músicos convidados pelo coletivo.

“Nós sabemos que essa galera é sofrida, que existem várias questões sociais como desigualdade e vulnerabilidade. Mas, naquele momento do sarau, que dura em torno de uma hora e meia, duas horas, a galera esquece um pouco”, comenta Marah. “Não esquece totalmente, porque é impossível, mas esquece um pouco de todas aquelas preocupações e tristezas e tenta se envolver, de alguma maneira.”

Ao longo de nove anos, além dos saraus, o coletivo Poesia é da Hora já organizou oficinas de escrita criativa com a população em situação de rua que frequenta os centros de acolhida. Esses trabalhos geraram quatro livros de coletâneas, produzidos de maneira artesanal, incluindo a encadernação, junto com os participantes.

Livro publicado pelo projeto Poesia é da Hora – Foto: acervo pessoal

Outra frente de atuação do coletivo é a participação na rádio comunitária Cantareira FM, situada no bairro da Brasilândia, zona norte de São Paulo. Lá, o grupo produz o boletim Poesia é da Hora, que vai ao ar semanalmente com dicas culturais e leitura de poemas. “Normalmente, são poesias da galera da quebrada, dos ativistas, de quem está na linha de frente, do povo de rua, da mulher preta e da mulher indígena”, comenta Marah.

Tanto nos saraus quanto nos slams, é esse intercâmbio e fluxo constante de pessoas pelos espaços que dão o tom. “A gente se frequenta, se conhece, se conecta, se conversa, a gente tem dilemas muito parecidos”, conta Marah. O que acaba gerando, em vez de ilhas de poesia separadas pelo asfalto da cidade, arquipélagos de cultura nos quais, além do Poesia é da Hora, encontram-se espaços como o Sarau Urbanista Concreto, o Sarau do Fê, o Sarau do Ernesto, o Sarau da Ponte Pra Cá e o Sarau Poetas do Tietê – apenas para citar os exemplos que Marah traz de cabeça.

Slam na escola

Até o agravamento da pandemia, existiam cerca de 200 slams acontecendo presencialmente pelo País. Além de ocupar teatros, bares e praças públicas, estavam presentes também nas escolas. O próprio Alcalde é um dos organizadores do Slam Interescolar, competição que reúne estudantes de várias instituições e que acontece tanto em nível estadual quanto nacional.

A inspiração veio quando o poeta esteve na França, em 2014, participando da Copa do Mundo de Slam e conheceu o trabalho dos franceses com os estudantes. “Quando voltei, trouxe a ideia para o coletivo e passamos a fazer slams nas escolas.” Com isso, os organizadores do Sarau da Guilhermina começaram a se apresentar nas escolas e realizar oficinas com os estudantes.

O primeiro slam nas escolas aconteceu em 2015. Hoje, 130 escolas já participam. Para dar conta desses números, dez jovens poetas oriundos do Slam da Guilhermina recebem oficinas de escrita, voz e corpo e cada um deles é designado para atuar em dez escolas, organizando oficinas e slams com os estudantes. A verba conseguida graças a editais municipais e estaduais – como o VAI e o Proac – garante a remuneração desses poetas formadores, além de garantir a premiação dos estudantes nos slams.

“Isso é revolucionário, ver a transformação das crianças”, diz Alcalde. “Começa com uma coisa tímida, entendendo poesia como algo parnasiano, e depois já estão falando de temas atuais e se empoderando.”

O Slam Interescolar nacional acontece com escolas do Rio de Janeiro, Minas Gerais, Espírito Santo e Mato Grosso do Sul, além de São Paulo. Em 2019, o evento foi presencial. Ganhou formato on-line em 2020, por conta da pandemia, como aconteceu também com o Slam da Guilhermina e o Sarau Poesia é da Hora.

Pandemia

Alcalde relata que as primeiras edições virtuais do Slam da Guilhermina foram difíceis e estressantes. Foi preciso elaborar uma dinâmica própria ao formato on-line e isso só começou a ganhar corpo a partir do terceiro mês. O Sarau Poesia é da Hora também teve de reinventar sua estrutura e passou a reunir contribuições em vídeo dos participantes. “É uma maneira de manter viva a chama, apesar dessa pandemia e de todas essas tristezas”, pontua Marah.

Por outro lado, um resultado partilhado por ambos foi o encontro com um grupo de colaboradores que extrapola o território de São Paulo e, até mesmo, do Brasil. Se é impossível esquecer o afastamento causado pela covid-19, ainda assim suas aproximações não deixam de ser sensíveis.

“O lado bom disso é que conseguimos chegar a outras pessoas”, explica Alcade. “Não em mais pessoas, porque na praça era muita gente e esse público nós perdemos, enquanto não voltarmos para a praça ele não volta. Mas chegamos a poetas de outros Estados como Acre, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Bahia e de outros países também, africanos que falam português, como Moçambique e Angola. Isso dá um pouquinho de esperança: tem algum sentido fazer slam.”

Poesias

“Eu comecei a gostar de poesia, comecei a olhar com olhos diferentes a poesia quando conheci justamente esse movimento de agora, esse movimento de saraus, essa coisa de a poesia estar muito presente no cotidiano. Esse tipo de literatura me atrai mais”, comenta Marah quando o assunto é a relação da poesia dos saraus e slams e a poesia celebrada pelos livros didáticos e a história oficial. “Essa coisa da literatura marginal brilha mais os meus olhos do que os clássicos, muito embora eu goste muito de Drummond e dos consagrados.”

Alcalde vê uma distância entre esses dois tipos de poesia, apesar de os números do slam não serem em nada irrelevantes. “Não dá para ignorar mais o slam, é um fenômeno muito grande, está no Brasil todo, há mais de 200 slams”, afirma. Contudo, o poeta diz que a relação entre os poetas periféricos e a alta poesia é distante. “Ambos sabem que existem mas não se conversam tanto. Um acha que o outro é muito burguês, o outro acha que aquele é muito periférico e não está preocupado com a linguagem. Na verdade são primos, são estilos diferentes.”

Isso não impede, entretanto, que os poetas do século 21, fazendo seus nomes nas praças públicas, sonhem com reconhecimento institucional. “Estar na margem não é opção. Eles estão na margem socialmente, estão na margem jogados e querem destaque”, continua Alcalde. “É lógico que existe uma legitimidade de falar ‘nós é rua, estamos aí na rua’, mas queremos um dia não estar. Estar sim, mas sendo valorizado, tendo renda.”

Muitas poetisas e poetas do slam, explica Alcalde, são moradores de comunidades e ocupações, com trajetórias marcadas pela miséria. Publicam seus poemas de maneira independente, fazendo-os circular nos próprios espaços dos slams. “Eu percebo que eles querem estar em outro espaço, não estão porque não conseguem, porque não sabem como fazer isso, chegar nessas pessoas que fazem a seleção, a curadoria das grandes editoras.” Enquanto isso não acontece, os vencedores do Slam da Guilhermina podem contar com o registro de sua poesia nas coletâneas lançadas pelo próprio slam – até hoje foram oito edições, com a nona prevista ainda para este ano.

Tema de artigos e teses

Nas universidades, o interesse para compreender essa poesia contemporânea vem ganhando corpo praticamente desde seu início. O próprio Slam da Guilhermina já foi matéria para artigos científicos e teses ao longo dos anos. Um desses artigos, publicado por Marcello Stella, doutorando em Sociologia na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, aponta essa relação tensa entre a poesia dos slams e a poesia estabelecida.

“Na medida em que o movimento de cultura literário marginal periférico vai se diversificando, ganhando legitimidade e criando seus próprios circuitos e meios de circulação, além de gerar seus próprios critérios de avaliação estética, ele entra em conflito (intencionalmente ou não) com o campo literário brasileiro mais amplo e estabelecido”, escreve Stella. Diante desse conflito, legitimar essas novas vozes, sem considerá-las exóticas ou esteticamente inferiores, é uma das tarefas que Stella ressalta para a democratização do acesso à voz literária no País.

Isso não quer dizer que os coletivos, saraus, slams e seus poetas estejam simplesmente esperando para entrar em livros didáticos ou se tornar conteúdos de grades curriculares de cursos universitários. Para alguns, como é o caso de Marah, o senso de importância dessa poesia já está eletrizado no ar.

“Essa revolução, se é que eu posso dizer assim, do século 21 na poesia, esse movimento todo é a nossa Semana de Arte Moderna de 22. Esse movimento que está acontecendo agora. E é esse movimento que está atraindo a molecada, está fazendo a molecada gostar de pegar um livro de poesia para ler”, finaliza Marah.

Slam como corpo poético e políticoUm dos trabalhos mais recentes produzidos na Universidade de São Paulo sobre o tema é a tese de doutorado de Ana Lúcia Santos da Silva, defendida em 2020 na Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP. Intitulada Novos Coletivos de Resistência em Produção: O Que Pode um Corpo Político-Poético?, a pesquisa é uma autoetnografia a partir do convívio de Ana Lúcia com o coletivo Slam Dandaras do Norte, de Belém (PA).“Nos slams, e em particular no Slam Dandaras do Norte, realidade que eu conheço mais de perto”, escreve a autora na tese, “quem habita esses corpos são as mulheres negras, as manas pretas, que fazem da subalternização, periferização e pobreza identidades de lutas e poesia falada, afirmação do que lhes foi negado, e assim forjando a própria identidade, a própria história”. A tese pode ser acessada aqui.

Do Jornal da USP

Autor