Como a China superou a Europa e ampliou sua influência no Mercosul

Participação chinesa nas exportações totais do Mercosul se multiplicou por 11 (de 2% a 22,1%) entre 2000 a 2018

O acordo de livre comércio assinado em 2019 entre União Europeia (UE) e Mercosul parecia sinalizar um avanço da influência europeia sobre o bloco sul-americano. Porém, dois anos depois, é com a China que os países do Mercosul – Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai – negociam cada vez mais.

Enquanto o acordo tão festejado pelo governo Jair Bolsonaro ainda precisa do visto de alguns membros da UE (França, Áustria, Países Baixos, Bélgica e Irlanda), o Cone Sul americano, com seus 265 milhões de habitantes, multiplica o comércio de matérias-primas com o gigante asiático. E, mais importante, se abre ao imenso caudal investidor chinês.

Estudo recente elaborado pelo instituto alemão Ifo aponta para a “perda de importância da Europa como parceiro comercial dos países do Mercosul”, em detrimento da China. Quando o bloco sul-americano completa 30 anos, “as importações e exportações do Mercosul para e da Europa estão diminuindo em geral”, diz o texto do Ifo.

As vendas sul-americanas à UE caíram 25% desde 2015. Já a participação da China nas exportações totais do Mercosul se multiplicou por 11 (de 2% a 22,1%) entre 2000 e 2018. A segunda potência mundial – que já se aproxima da primeira, os Estados Unidos, em muitos indicadores de envergadura – é agora o mercado de vendas mais importante para o bloco. Com desvantagem, em grande medida, para a União Europeia, que em um dia não tão distante foi o mais importante parceiro comercial do Cone Sul americano.

O pacto com o Mercosul, o maior já feito pela Europa, significaria a redução gradual de 90% das barreiras alfandegárias num prazo de dez anos. Mas as resistências impedem sua ratificação no Parlamento Europeu e num número razoável de Estados membros. O texto ainda se encontra em processo de tradução para as 24 línguas da UE União e se choca contra uma frente liderada pela França, que alega questionamentos ambientais – mas também quer manter seu protecionismo agrícola.

A China teve campo aberto no Cone Sul americano nos últimos 20 anos – e aproveitou a oportunidade de se tornar forte num mercado com o qual, ao contrário do Velho Continente, não tem nenhum vínculo cultural e histórico. “O Mercosul se transformou na principal plataforma de produção de proteínas no mundo, à frente dos Estados Unidos e muito mais do que a União Europeia”, diz Jorge Castro, analista argentino e presidente do Instituto de Planejamento Estratégico.

“Por isso, a região tem um vínculo privilegiado, de caráter estrutural, com a China, que é o eixo da demanda global de agroalimentos”, agrega Castro. “Tudo isso acontece em um momento em que a China experimenta um boom de consumo de mais de US$ 7 trilhões (R$ 37 trilhões) em 2021, que deixa os EUA pela primeira vez na história do capitalismo em segundo lugar.”

À oferta de alimentos e outras matérias-primas do Mercosul, a China responde com uma demanda voraz. Em sentido contrário, o país asiático começa a verter seus excedentes financeiros numa região sedenta de investimentos em infraestrutura e financiamento. De 2008 a 2018, o Brasil foi o quinto maior destinatário do capital chinês, após os EUA, a Austrália, o Reino Unido e a Suíça. Pouco mais de US$ 1 de cada US$ 20 investidos por empresas chinesas no estrangeiro acabaram no gigante sul-americano, segundo os dados do American Enterprise Institute e a Fundação Heritage.

“A Europa perdeu peso ao não conseguiu aprovar o acordo preferencial. Isso freia não só o comércio como também os investimentos”, diz Ignacio Bartesaghi, diretor do Instituto de Negócios Internacionais da Universidade Católica do Uruguai e um dos maiores especialistas em comércio da América Latina. “Do outro lado, os investimentos da China nos dez últimos anos foram enormes, sobretudo ao Brasil e à Argentina”.

Carlos Malamud, pesquisador principal para a América Latina do Real Instituto Elcano, concorda: “O estoque – o volume acumulado – de investimento europeu continua sendo muito maior, mas o chinês foi se expandindo muito mais rápido nos últimos anos”. A relação China-Mercosul se expandiu para além dos setores mais comuns. A dependência tecnológica dos quatro integrantes do bloco começa a ser substancial e “já existe até uma base de satélites chinesa na Patagônia argentina”, diz Malamud.

O avanço chinês na China na região tensionou o debate ideológico nos países do Mercosul sobre a conveniência de mudar o tradicional eixo Atlântico (EUA-Europa) pelo de Pequim. Mas as necessidades, ao menos até agora, podem mais que a política.

“Quando a Argentina está em crise, sabe que conta com o financiamento da China. Quando precisa de investimentos, lá está a China. E isso permitiu ao gigante asiático entrar em setores estratégicos nesses países, nos quais antes não estava”, diz Bartesaghi. O último exemplo desta entrada com força da China no Cone Sul veio do lado das vacinas contra a Covid-19, auxiliando os países do Cone Sul com milhões de doses enquanto os governos do bloco lutam com os fornecedores ocidentais para que cumpram com seus acordos de entrega.

A relação Pequim-Mercosul está tão entrelaçada que, a esta altura, nem a ratificação do tratado entre a UE e o bloco vai frearar seu avanço e reequilibrar as forças. “É preciso abandonar a ideia de que a Europa substituirá a China na região. Independentemente do tratado, o que se vê é uma clara aposta dos países do Mercosul em comercializar com eles (os chineses)”, diz Malamud. Os tempos mudaram, o Mercosul e a China se beneficiam mutuamente e a Europa – com ou sem acordo – passou à retaguarda.

Com informações do El País Brasil