Direitos não caem do céu, por Clara Lima

Não aceitaremos inertes mais mortes, não aceitaremos a naturalização do absurdo que é vidas relegadas à miséria, reduzidas ao ato de sobreviver.

Foto: Ésio Melo

Oi, gente.

Vamos falar um pouquinho sobre o ato do dia 29?

Eu sei que não é uma decisão fácil. O fato de estarmos convencidos da importância, nesse momento, de ir às ruas, não torna essa decisão menos difícil, menos delicada.

Dois meses atrás perdi meu avô para a covid. Foi cruel. Foi – e é – doloroso como foram as tantas perdas (quatrocentos e cinquenta mil pessoas!) que temos visto, sentido, vivido nessa terra arrasada chamada Brasil.

Pr’além da dor da perda em si, vem junto a inconformidade, a revolta, a indignação. Foram mortes que poderiam ter sido evitadas. Nossos amores poderiam e deveriam ter continuado suas vidas cá conosco.

Mas foram arrancados de nós.

Arrancados de nós por essa política de genocídio que, agora, utiliza-se, alinha-se ao vírus para instalar um estado permanente de morte nesse país.

Uma política de genocídio que mantém operações policiais em plena pandemia e mata gente pobre e preta dentro de suas casas, de seus trabalhos; na ida ao mercado, ao shopping, nas prisões… enfim. O alvo é sempre certo. Não esqueçamos Rayan e Bruno, a chacina do Jacarezinho, as chacinas de todos os dias não noticiadas na tevê. Os rastros de sangue estão aí, sabemos.

No meio de uma pandemia, pessoas sofrem despejos; a fome cresce numa curva ascendente por causa da política econômica do neoliberal Paulo Guedes. Não dá para aceitar, não dá para normalizar.

Diante de tudo isso, sei que ainda há quem pergunte: mas para quê ir às ruas? Para quê assumir o risco? Nada muda, nada vai mudar.

Queria citar umas palavrinhas escritas pelo querido Eduardo Suplicy: é muito mais dos campeões do impossível do que dos escravos do possível que a humanidade deve sua evolução.

Existe um trabalho ideológico, extremamente ardiloso, que nos faz naturalizar o sistema econômico, a ‘ordem’ social posta e todos os seus desdobramentos em nossas formas de ser, existir.

Daí se torna quase impossível imaginar, concretamente, um outro mundo, com outros contornos, outras formas de existência, de organização social. Então, somos engessados nesse afeto de impotência diante de algo posto quase como transcendente a nós, como se fosse obra do ‘divino’ ou da natureza: inalcançável, que foge de nosso campo de ação, por isso imutável. Pensamos, sentimos: não existe alternativa ao capitalismo, não existe alternativa ao modo de existir dentro desse sistema!

E olha só… eles contam com a introjeteção dessa ‘crença’ na impossibilidade de transformações, de mudanças. Eles contam com a nossa paralisia, desmobilização, desarticulação.

Mas, com a historicidade, desnaturalizamos os fenômenos, compreendemos que as coisas nem sempre foram como são e tudo é passível de ser transformado, sim – o movimento de mudança é, na verdade, a regra na história humana e não a exceção. Às vezes, sentimos como se a ordem social e econômica que está aí existisse desde que o mundo é mundo, desde que o homem é homem, de tão profundo que é o trabalho ideológico.

Mas descobrimos que o capitalismo, inclusive, é bastante recente em relação a história da humanidade. A dialética nos mostra que as coisas acontecem em um movimento constante de transformação na história. O capitalismo, ele mesmo, foi fruto de processos de ruptura – as revoluções burguesas – com a organização social anterior, o feudalismo.

Se nós, mulheres, temos direito ao voto, a ingressar no ensino superior, etc., devemos isso às mulheres que vieram antes de nós e bancaram a luta política, social, organizada.

Colhemos o fruto de suas conquistas – limitadas, mas ainda assim conquistas importantes.

As independências de países colonizados aconteceram graças a um povo que travou o bom combate contra potências colonialistas imensas.

Foram e são os campeões do impossível.

Direitos não caem do céu, gente.

Sei que é fácil perder essa perspectiva, mas é a luta que muda a vida, sim. Isso não é irreal, não é conversa fiada.

Ao contrário: é a apreensão mais rigorosa possível da história da humanidade. O tempo inteiro querem nos confundir e nos fazer acreditar nesse afeto – enganoso – da impotência. Querem nos tirar do sentimento (e da força!) de pertencimento a um todo, ao coletivo, e nos frustrar com a leitura de que somos um ‘indivíduo’ – indivisível, uno, completo em si -, à parte, só, que nada pode contra os poderosos e sua máquina de poder. Ou então querem nos impor o medo.

Mas nós arrancamos essas mentiras do caminho. Nossa resposta precisa ser a da coragem. Pertencemos uns aos outros, não estamos sós, partilhamos de sofrimentos, dores com raízes também em comum. Cada um é cada um, com suas significações e histórias singulares, sim, mas há o encontro do comum e é aí que está nossa força.

Ensinam-nos os movimentos sociais: a luta é a grande emergência desse encontro. É onde e quando dizemos: estamos juntos e enquanto um/a não for livre, nenhum/a será.

Vamos às ruas. Não é fácil, não é o ideal.

Mas não temos outra opção. Estamos nos esforçando absurdamente para garantir o máximo de segurança possível nos atos porque levamos a sério a pandemia. Estamos indo às ruas depois de quatrocentos e cinquenta mil mortes na conta do combo governo Bolsonaro + vírus porque gritamos de nossas casas – aqueles que têm casa! – e não fomos, não somos ouvidos. Queremos viver!

E levamos a sério a luta como única saída, a urgência da construção da revolução.

Acreditamos na luta social, política, nas nossas vozes e corpos somados, nossos afetos entrelaçados. Aí está nossa força.

Não aceitaremos inertes mais mortes, não aceitaremos a naturalização do absurdo que é vidas relegadas à miséria, reduzidas ao ato de sobreviver.

Basta.

Na América Latina, se respira luta. Somos um povo sin piernas, pero que camiña.

Queremos viver.

E devemos ser as campeãs do impossível de nossos tempos.

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