A realidade, o conhecimento e a classe trabalhadora
Intelectual comprometida com a Pedagogia Histórico-Crítica, Marteana Ferreira de Lima, é professora do Curso de Pedagogia, da Universidade Regional do Cariri – URCA e contribui com o debate sobre a perspectiva pedagógica que serve aos interesses de emancipação da classe trabalhadora.
Publicado 29/05/2021 10:32
Por Marteana Ferreira de Lima*
Em entrevista concedida no final da década de 1960, o filósofo húngaro György Lukács afirmou que a ciência surgiu com a escolha da primeira pedra. Tal afirmação não significa a negação ou simplificação do longo processo de desenvolvimento, diferenciação e complexificação do conhecimento elaborado pela humanidade ao longo de milênios, desde aquela escolha até alcançar a cientificidade, inclusive esse processo é vastamente discutido pelo referido filósofo. Entre a escolha da primeira pedra e a capacidade humana de apreensão da realidade mediada por princípios científicos há um percurso nada desprezível. Todavia, não obstante todas as transformações que contém, esse percurso traz elementos de continuidade, entre os quais destaca-se a representação subjetiva do movimento da realidade objetiva. Mas, o que vem a ser isso? E por que é um traço presente ao longo da produção do conhecimento humano historicamente produzido?
O principal impulso para o ser humano conhecer a realidade é a necessidade de transformá-la para atender aos seus carecimentos vitais. E essa transformação teleologicamente orientada é realizada pelo trabalho, atividade vital que dá origem ao próprio emergir humano como ser social, distinguindo-o da esfera meramente biológica – embora não possa prescindir dessa base natural, mas apenas proceder a um contínuo afastamento das suas barreiras.
Para se efetivar o trabalho, o conhecimento acerca da parcela do real a ser transformada é imprescindível. A princípio, esse conhecer esteve imediatamente vinculado ao atendimento de carecimentos vitais. Todavia o trabalho possibilitou não apenas o salto para a constituição do ser social, mas sua complexificação e o surgimento de novas necessidades, cada vez mais sociais, mais complexas e mais mediadas por novas relações do ser humano com a realidade, num movimento crescente de produção da existência humana social e culturalmente orientada.
Os conhecimentos gerados no processo de transformação do real para o atendimento de necessidades humanas fixaram-se não apenas na forma de trabalho realizado nos objetos e instrumentos produzidos. Mas também passaram a ser imprescindíveis para trabalhos posteriores, fazendo com que sua conservação e transmissão constituíssem parte da própria continuidade do ser social. Os conhecimentos acumulados e conservados encontram sua principal via de transmissão e apropriação no ato de educar, o qual também surge para atender necessidades postas pelo trabalho e pela complexificação que este realiza no ser humano. Pois neste, por sua vez, o processo de trabalho inaugurou novos comportamentos e novas funções psíquicas, com a mediação da linguagem verbal e das relações intersubjetivas. E essas novas funções, que também experimentam processos de complexificação, como produto histórico-cultural precisam ser desenvolvidas em cada indivíduo singular por meio da apropriação do patrimônio cultural produzido pela humanidade.
Esse patrimônio se amplia e torna-se mais complexo em relação direta com a complexificação da sociedade e dos próprios seres humanos. Dessa forma, a representação subjetiva do movimento da realidade objetiva vai alcançando novos patamares, em um movimento de aproximações sucessivas, tendencialmente superiores em seu conjunto.
Se para atuar sobre uma determinada parcela do real um conhecimento limitado e impreciso poderia ser suficiente, o desenvolvimento das forças produtivas (aqui incluídos os seres humanos), o gradativo acúmulo de experiências, a conservação, a transformação e a reelaboração do conhecimento vão possibilitando uma compreensão da realidade muito mais próxima do real. Essa compreensão é sempre uma aproximação porque se trata, não esqueçamos, de uma representação subjetiva elaborada na consciência do sujeito que a apreende e não a própria realidade objetiva em seu movimento incessante. Todavia, os avanços efetivados pela humanidade neste campo criaram uma forma de apropriação da realidade fundada no conhecimento científico, dando origem a uma compreensão para além daquela percepção limitada e imprecisa inicial elaborada a partir da relação imediata com o meio circundante.
Entre o conhecimento prático, experiencial e o conhecimento científico há algumas diferenças importantes. E elas dizem respeito, especialmente, ao alcance de cada um na tarefa de aproximações sucessivas do objeto a ser conhecido. Isso se deve ao fato de a aparência imediata dos fenômenos ao mesmo tempo revelar e ocultar sua essência. E, como afirmava Marx, se aparência e essência coincidissem, toda ciência seria supérflua. A importância da ciência justifica-se pela sua capacidade de ir além da aparência e perscrutar a essência que se oculta no movimento do real apreendido pela consciência.
Numa sociedade complexa, dividida em classes sociais com interesses antagônicos, assentada na forma de produção capitalista sobre a base do trabalho explorado, a representação subjetiva do movimento do real ganha novos contornos e condicionantes. Não apenas os meios de produção e seu controle estão nas mãos dos grupos dominantes. Também os processos de formação humana, com todos os aspectos que estes encerram, são influenciados e, em certa medida, determinados pelo controle exercido pelos grupos dominantes.
O conhecimento acerca do real tem um papel importante nesse contexto. Não apenas é exigido como condição para a realização do trabalho – atividade vital que continua sendo imprescindível à existência humana – e para a própria humanização mas torna-se também condição para o reconhecimento dos determinantes históricos, econômicos, culturais, sociais, políticos, ideológicos, éticos, religiosos, estéticos que interferem na representação subjetiva do movimento da realidade objetiva que, por sua vez, orienta as decisões, as prévias-ideações e as ações realizadas pelos sujeitos. Níveis diferentes de conhecimento acerca da realidade passam a integrar a sociedade ocasionando um distanciamento entre o patamar alcançado pelo gênero humano em seu conjunto e os patamares alcançados pelos indivíduos singulares ou as classes sociais.
Isso porque a questão relativa a como possibilitar à classe trabalhadora o acesso ao conhecimento necessário para o exercício do trabalho produtivo e a consequente exploração, expropriação e acumulação daí derivadas sem correr o risco de instrumentalizá-la para o reconhecimento daquele conjunto de determinantes tem sido recorrentemente respondida pelos grupos dominantes e pelas parcelas da sociedade cooptadas por sua visão de mundo em diferentes momentos. As receitas foram muitas. Desde as famosas doses homeopáticas até a suposta valorização dos saberes emergentes há um vasto leque de teorias e subterfúgios que, via de regra, inviabilizam ou minimizam a apropriação do conhecimento elaborado e sistematizado pela classe trabalhadora.
O acesso a esse conhecimento, todavia, tem um papel fundamental para o desenvolvimento da capacidade de abstração, análise e síntese. E quanto mais desenvolvidas essas capacidades, maiores as possibilidades de elaboração de uma representação subjetiva do movimento da realidade objetiva que revele a essência oculta na aparência imediata do real.
Uma nova compreensão da realidade não vai automaticamente transformá-la, pois não é a consciência que determina a existência. Exatamente o contrário nos explica o legado marxiano: é a existência que determina a consciência. Mas, como mudar a existência sem conhece-la? O conhecimento da realidade objetiva na sua essência e com as suas contradições e movimentos dialéticos tem uma importância crucial para a organização e a mobilização da classe trabalhadora. Assim, refutar teorias que negam a possibilidade de conhecermos a realidade objetiva e que colocam todos os tipos de conhecimento sob a mesma rotulação de narrativas em disputa é urgente. Especialmente neste momento quando o país, devastado por tantas mortes e por todo o quadro gerado pela pandemia que nos assola há mais de um ano, revela de forma crua a capacidade de manipulação de concepções negacionistas.
*Doutora em Educação e professora do Curso de Pedagogia, da Universidade Regional do Cariri –URCA.