Crônica de João Paulo DiCarvalho: Sentimento de Raiz

Por João Paulo DiCarvalho * Erivaldo Osmar e Patrícia Siqueira namoram há 4 anos. É difícil (para não usar impossível) […]

Por João Paulo DiCarvalho *

Erivaldo Osmar e Patrícia Siqueira namoram há 4 anos. É difícil (para não usar impossível) vê-los se beijando ou andando de mãos dadas. O casal é bem discreto. Até fotos do casal são difíceis de encontrar e nem no Facebook eles fazem questão de colocar que estão “em um relacionamento sério” (e pensar que essa não atualização de perfil é causa de tantas brigas entre casais que se beijam a vista de todos!).
– Cada um tem seus limites e é preciso respeitá-los. Ela não gosta de exposição, de aparecer. Para mim não faz diferença, é até melhor, afinal, não temos que dar satisfação a ninguém. – disse certa vez o Erivaldo quando perguntado o porquê do casal ser tão reservado.

Encontrei Erivaldo mês passado. Vinha trazendo uma sacolinha com uma coxinha de frango.

– É para a Patrícia!

Preciso informar que é algo bem comum encontrar o Erivaldo levando comida para a Patrícia ou ver, aos sábados, o casal jantando em um restaurante ou pizzaria. Erivaldo é bastante preocupado com a alimentação de sua amada.

Por sua vez, Patrícia cuida da imagem de seu amado. Quando conheci Erivaldo, ele tinha o estilo largado, desleixado de se vestir. Digamos que Patrícia deu um upgrade no visual dele, melhorando não só o seu guarda roupa, mas também a postura e o seu jeito, fazendo com que Erivaldo cuidasse mais de si. “Levanta a cabeça”, “corta essas unhas”, “tira essa barba” eram recomendações que ouvíamos com frequência.

– O Erivaldo só quer ser o Gonzaguinha! – sempre dizia Patrícia sobre o jeito de vestir do namorado.

Para quem não entendeu a comparação, resumirei com a explicação que a própria Patrícia usava.

Ela leu (Ah, e outra característica desse casal é que ambos leem muito!) no livro Gonzaguinha e Gonzagão: uma história brasileira, da jornalista Regina Echeverria, que o filho do Rei do Baião tinha o hábito de se vestir mal. A esposa do cantor não gostava muito disso e certa vez, quando a casa deles foi assaltada, ela aproveitou para dar sumiço nas roupas do marido usando o álibi do assalto e assim ter a desculpa de renovar o guarda roupa dele.

– Qualquer dia eu vou chamar esse ladrão para fazer um assalto lá na casa do Erivaldo. O Erivaldo só quer ser o Gonzaguinha. – brincava Patrícia.

Lembrei do casal um dia desses quando conversava com um amigo professor de filosofia. Dizia ele sobre o “sentimento de raiz”, sentimento que todos temos e sob o qual construímos nossas relações.

Como sou lento para entender questões filosóficas, pedi que ilustrasse sua explicação com exemplos e utilizasse o casal Erivaldo e a Patrícia, nossos amigos em comum.

– O Erivaldo pode brigar com a Patrícia, pode um dia ser grosseiro com ela, pode até tratá-la mal, mas isso tudo perderá forças porque há um sentimento enraizado dentro do Erivaldo. É o “sentimento de raiz” e as ações que nascem dele serão mais fortes, mais intensas e mais constantes. Qual é o “sentimento de raiz” daquele casal? O cuidado. O que há por trás das ações deles dois? Dele sempre preocupado com a alimentação dela? O cuidado com a saúde. Dela sempre preocupada com o jeito dele vestir? O cuidado com a imagem e o zelo por ele mesmo.

“É muito difícil negar e trair o “sentimento de raiz” porque, além de estar bem fundo em nós, ele é a força motriz da maior parte das nossas ações.”

– É o “sentimento de raiz” quem nos dá nossa identidade? – perguntei.

– Não, mas é ele quem nos diferencia.

– Pode esse “sentimento de raiz” morrer?

– “Tudo o que não alimentamos morre”, disse o poeta. Mas, tudo o que morre dentro de nós pode renascer, diz a psicanálise.

– É por isso que temos tantos relacionamentos relâmpagos? De tão superficiais que são as relações hoje, não há um “sentimento de raiz”?

– Não podemos generalizar, é preciso investigar cada caso, mas veja bem: o sentimento nem sempre é bom. Há casais que brigam muito. Se formos ver, talvez o “sentimento de raiz” desse casal seja o poder, o sentimento de posse, a desconfiança ou o ciúme. Há casos em que o “sentimento de raiz” da pessoa é apenas o desafio da conquista. Depois que ela conquista alguém, perde todo o interesse.

As palavras do meu amigo trouxeram reflexões. O amor sempre foi objeto de estudos, palestras, livros, filmes… mas muitos deles abordam a questão de modo superficial. Então temos a Filosofia, livro empoeirado e esquecido na estante, que nasce da pergunta “quem somos nós?”, sempre nos propondo o conhecimento de si.

E diante de tantas receitas, esquemas e soluções mágicas que hoje vemos sobre a questão dos relacionamentos, a Filosofia propõe com sua voz antiga e sábia “Conhece-te a ti mesmo”. Antes de saber o que é o amor ou quem é o nosso amor, mais importante e significativo é descobrir e conhecer o sentimento que trazemos enraizado e que por vezes nos governa, o nosso “sentimento raiz”.

“Preciso reler o Banquete, de Platão”. Penso enquanto espero minha namorada Luci. Vamos sair justamente para jantar com nossos amigos Erivaldo e Patrícia, um casal que não se revela aos outros, mas se revela a si.

Espero não tê-los exposto demais nessa crônica, já que eles são tão reservados, mas (acredite!) você que agora me lê precisa conhecê-los. Afinal, todos nós temos uma Patrícia SIQUEira (PSIQUÉ: “mente”, “alma”) que necessita enfrentar mil desafios para encontrar e ficar com o seu ERivaldo OSmar (EROS: “amor”).


*Professor da rede estadual de ensino do Ceará e escritor.