Estudo da USP “pode atribuir responsabilidade” pela gestão da pandemia
USP atualiza estudo sobre como Bolsonaro espalhou a Covid de propósito. Nova versão da pesquisa foi entregue à CPI da Covid e comprova que Bolsonaro provocou mortes ao buscar a imunidade de rebanho sem vacina
Publicado 09/06/2021 22:32 | Editado 09/06/2021 22:45
Os senadores que integram a CPI da Covid receberam a versão atualizada de uma das mais importantes provas de que Jair Bolsonaro adotou, de propósito, uma estratégia de disseminação do novo coronavírus no Brasil. A pedido da Comissão Parlamentar de Inquérito, pesquisadores do Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário (Cepedisa), ligado à Universidade de São Paulo (USP), atualizaram a pesquisa Mapeamento e análise das normas jurídicas de resposta à Covid-19 no Brasil.
Uma versão preliminar havia sido publicada em janeiro de 2021. Na atualização, o período estudado vai até o fim de maio deste ano. Para chegar às conclusões, a equipe se debruçou tanto sobre manifestações públicas de Jair Bolsonaro e outras autoridades quanto sobre atos administrativos, como a publicação de normas federais. Ao fim, os especialistas são taxativos e dizem que o conjunto de evidências comprovam que Bolsonaro buscou a imunidade de rebanho dos brasileiros sem vacina, mesmo sabendo que a estratégia provocaria milhares de mortes que outras medidas poderiam evitar.
Em entrevista ao Vermelho, no final de abril, a pesquisadora Claudia Moreno antecipou o posicionamento técnico e unitário da Faculdade de Saúde Pública da USP, em torno dos resultados do estudo. Ela distinguiu o fato da imunidade de rebanho só poder ser obtida por vacinação, o que torna a estratégia inédita do governo uma busca por imunidade por contágio, que implica na aceitação do alto número de mortes desnecessárias.
Claudia disse que o estudo e a nota técnica emitida pela Escola tiveram enorme repercussão. “Como, de fato, um instrumento para mostrar tecnicamente quais foram os problemas que foram enfrentados de maneira equivocada durante a pandemia e os problemas que estamos vivendo. Acredito que são materiais que podem ser utilizados pela CPI, porque são embasados por dados que evidenciam uma estratégia do Governo Federal de imunidade por contágio”, declarou a pesquisadora, durante a entrevista.
“Esses dados evidenciam que, sim, é possível atribuir responsabilidades no que estamos vivendo pelas estratégicas adotadas pelo Governo Federal”, ressaltou a professora da USP.
Uma evidência simples dessa busca do espalhamento do vírus é o veto do governo ao uso de máscaras, aceito no mundo todo como uma forma de impedir o contágio. “Não querer que as pessoas usem máscara é uma forma de garantir que elas entrem em contato umas com as outras e se contagiem pelo vírus”, reafirmou, salientando que o recuo posterior não invalida que a primeira estratégia apontava para a lotação do sistema de saúde.
“O presente estudo permite concluir, com vasto respaldo documental, que a partir de abril de 2020, o governo federal passou a promover a ‘imunidade de rebanho’ por contágio como meio de resposta à pandemia. Ou seja, optou por favorecer a livre circulação do novo coronavírus, sob o pretexto de que a infecção naturalmente induziria à imunidade dos indivíduos, e a redução da atividade econômica causaria prejuízo maior do que as mortes e sequelas causadas pela doença”, escrevem os cientistas na conclusão.
A professora Claudia destaca que não se trata de uma iniciativa individual no governo, mas de todo um corpo ministerial, o presidente e o vice-presidente da República, por meio de farta documentação oficial. Ela também criticou o fato do governo não ter um corpo de sanitaristas com a visão de saúde pública que olha para condições de vida e trabalho, e não apenas o olhar médico, para o enfrentamento da pandemia. “Quando você pensa do ponto de vista sanitário, você pensa em como a pessoa vai comer, também. Em vez disso, os conselhos de enfrentamento à pandemia raramente incluem médicos, quanto menos sanitaristas”, lamenta ela, lembrando que, recentemente foi formado uma “coordenação nacional” com ministros, políticos e militares.
Claudia também observa que o Sistema Único de Saúde (SUS) teria condições de ser muito melhor aproveitado no início da pandemia, por meio de vigilância epidemiológica e atendimento domiciliar antes do contágio, além de campanhas de comunicação. O escalonamento de horários de trabalho feito na Itália, por exemplo, evitou que trabalhadores de setores essenciais se aglomerassem no transporte público. “Em vez disso, a subutilização gerou a sobrecarga do sistema criando a falsa impressão de que o SUS é ruim”.
Ainda segundo o estudo, o estímulo para que o maior número de brasileiros pegasse o vírus ocorreu por meio de dois pilares: “a disseminação da falsa crença de que existe um tratamento precoce para a doença e o constante estímulo ao desrespeito massivo de medidas sanitárias básicas, como o distanciamento físico e o uso de máscaras”. Essas duas estratégias eram ainda apoiadas pela “recorrente banalização do sofrimento e da morte, além da desqualificação dos indivíduos que, com razão, temem a doença”.
As táticas utilizadas para o espalhamento do vírus se resumem em medidas que garantam que as pessoas continuem levando suas vidas normais sem seguir nenhum protocolo de proteção para evitar o contágio. Mas elas foram traduzidas em ações governamentais muito claras como ataques deliberados à ciência e cientistas, desestímulo aos profissionais de saúde, ausência de campanhas de comunicação na mídia, desinteresse e desestímulo pelas vacinas, realização de grandes eventos de aglomeração, criou-se um ambiente de desinformação, ações judiciais contra medidas locais de lockdown, recomendação de medicamentos inadequados, sabotagem do auxílio emergencial, descuido com insumos hospitalares, entre tantas outras.
“A própria falta de uma coordenação nacional gerou um desespero de gestores locais que acentuou as desigualdades e assimetrias entre recursos de estados e municípios, assim como de medidas diferentes, considerando que os municípios são vizinhos”, ressaltou.
O veto à covid como doença laboral é outra forma de desproteger a população trabalhadora da saúde, por exemplo. O trabalhador de saúde não teve mecanismos compensatórios conforme ficava doente no ambiente de trabalho. “O SUS também não recebeu nenhum recurso extra durante a pandemia, quando os equipamentos já vinham sofrendo com a falta de investimentos. Vamos conviver, agora, com um SUS que foi muito maltratado e sobrecarregado.”
Genocídio nunca mais
Embora tenha sido o primeiro a chamar a atenção para o fato de que centenas de milhares de mortes foram causadas de propósito por Bolsonaro e seus cúmplices (que começam a ser revelados a partir da descoberta do Gabinete Paralelo), o estudo da USP não é o único.
Outra pesquisa, realizada em parceria pela Fundação Getulio Vargas (FGV) e Universidade de Michigan, nos EUA, concluiu que Bolsonaro usou sua autoridade para estimular a imunidade de rebanho. “Bolsonaro interferiu no Ministério da Saúde como nunca antes visto no período democrático. Ele interveio em protocolos de tratamento e até no modo de divulgação dos dados da pandemia”, declarou ao Estado de S. Paulo a professora da FGV Elize Massard, uma das autoras. Além disso, um terceiro estudo, este da Universidade de Harvard, concluiu que a falta de uma coordenação nacional na gestão da pandemia facilitou a propagação do coronavírus no Brasil.
Além de apontar para o cometimento de crime contra a humanidade praticado por Jair Bolsonaro e aqueles que o apoiaram na empreitada, estudos como esse ajudarão o Brasil a não viver novamente um capítulo tão tenebroso de sua história quanto o atual. Como afirmam os pesquisadores da USP no levantamento atualizado para a CPI, o trabalho da CPI da Covid “será decisivo para que, em futuras emergências, jamais a imunidade de rebanho por contágio volte a ser promovida em nosso país, e as políticas públicas de saúde voltem a ser orientadas, independentemente da natural alternância de poder, por evidências científicas, no estrito cumprimento do dever constitucional de proteção e defesa da saúde pública”.