O que está a acontecer na Colômbia

O que está a acontecer na Colômbia, no essencial, é o despertar da população, saturada de um prolongado cenário de fraude, crime e violência, de intoxicação neoliberal.

Manifestação em Bogotá, no passado dia 26 de Maio, durante mais um dia de greve nacional contra a política de direita do presidente Ivan Duque | Foto: Luis Eduardo Noriega A. / EPA

O que está a acontecer na Colômbia há mais de um mês, desde 28 de Abril, é uma insurreição, um levantamento popular contra os efeitos da agudização das políticas neoliberais combinadas (terrivelmente agravadas) com uma gestão catastrófica da pandemia, que castiga sobretudo as camadas mais desfavorecidas.

O que está a acontecer na Colômbia é uma resposta brutal do narco-Estado fascista contra a generalidade da população através de um aparelho repressivo montado ao longo de seis décadas e que tem nas forças armadas o principal suporte, articulando as polícias de segurança, as unidades móveis de assalto e a entranhada teia de grupos paramilitares ou esquadrões da morte.

O que está a acontecer na Colômbia é uma extensa mobilização política, social e cultural que cavalgou a inércia das oposições acomodadas, transitando vigorosamente dos campos onde se luta contra os latifundiários e os paramilitares para as ruas das principais cidades do país, do campesinato para os sectores urbanos submetidos a uma marginalidade e a uma crise social cada vez mais profundas – e agregando até sectores de uma classe média pressentindo que o regime não tem regeneração.

O que está a acontecer na Colômbia, depois de o governo ter destruído o acordo com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), é o reforço da guerra narco-fascista contra a população, num país onde a ação política da oposição consequente é criminalizada através da justiça oficial e do poder arbitrário de que dispõem as polícias e a tropa. Organizações de direitos humanos, sindicatos e movimentos sociais fazem parte do «inimigo interno» definido pelo governo; a chamada «segurança pública» exerce-se em formato de guerra. O general Eduardo Zapateiro, que comanda a brigada de combate instalada em Cali e que se tem revelado um dos mais ferozes repressores da revolta popular, escreveu no Twitter: «Somos os soldados do exército e não nos deixaremos vencer por mais víboras e perversos que queiram atacar-nos, assinalar-nos e debilitar-nos. Deus está connosco». O regime explicado em poucas palavras.

O que está a acontecer na Colômbia é uma luta popular de libertação de carácter anticolonial.

O que está a acontecer na Colômbia, como hábito instalado, é a repressão indiscriminada praticada pelo governo de um país que é o primeiro «parceiro» da NATO na América Latina, alberga sete bases militares norte-americanas e cujas forças armadas recebem milhares de milhões de dólares em todos os tipos de «assistências».

Imaginem, por absurdo, se o que está a acontecer na Colômbia se passasse na vizinha Venezuela.

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O detonador

O acontecimento detonador da revolta popular em curso desde 28 de Abril foi a tentativa governamental de impor uma reforma fiscal que trazia no bojo mais desigualdade num dos países mais desiguais da América Latina e que iria onerar os produtos de primeira necessidade, os rendimentos em geral e o consumo.

Foi a gota de água. Surgiram protestos espontâneos nas principais cidades do país, canalizados em seguida para uma greve generalizada e por tempo indeterminado que tem servido de cobertura para um desdobramento, através de todo o território, de actos e acções ao mesmo tempo de revolta e de afirmação de identidade política, social e cultural. Os gigantescos grafitti que surgem sem cessar nos espaços murais das principais cidades e têm uma capacidade de se renovar superior à velocidade censória das forças militares, são uma expressão vibrante que distingue esta poderosa luta colombiana.

O governo acabou por retirar o projecto de reforma fiscal, que custou também o lugar ao ministro das Finanças, mas a decisão não conteve o movimento popular – comprovando-se assim que o que está em causa é a violenta política neoliberal seguida há décadas em Bogotá e não apenas a situação que activou directamente os protestos.

A Colômbia seguiu assim as pisadas de outros países latino-americanos, como o Chile e o Equador, onde as populações manifestam o cansaço e o desespero com o capitalismo selvagem e o seu aparelho fascista desenvolvidos no subcontinente sobretudo a partir do golpe sangrento de 1973 do chileno Augusto Pinochet, organizado pela CIA.

O neoliberalismo imposto na Colômbia vai muito além da guerra económica contra a generalidade da população. Mais de mil dirigentes sociais e opositores políticos do regime foram assassinados ou estão «desaparecidos» só desde 2016. Os grupos paramilitares ou esquadrões da morte, apesar de serem considerados «estruturas ilegais», integram a política de Estado e têm sido financiados por sucessivos governos. As forças de segurança, designadamente as polícias de índole cívica, foram agregadas ao aparelho repressivo que funciona sob a tutela do Ministério da Defesa. O regime «democrático» na Colômbia – assim é reconhecido nos Estados Unidos e na União Europeia – não passa de um sistema fascista militarizado para assegurar uma política desenfreada de exploração da esmagadora maioria da população, além disso sempre pronto para interferir além-fronteiras a rogo dos interesses imperiais e coloniais, como por exemplo na Venezuela. País este que é alvo de pesadíssimas sanções e esbulhos impostos a partir da América do Norte e da Europa comunitária, ao contrário do que acontece na «democrática» Colômbia, eleita para ser integrada no aparelho da NATO.

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Pobreza e trabalho informal

Na Colômbia, país com 50 milhões de habitantes, cerca de 21 milhões ou 42,5% vivem em situação de pobreza, de acordo com os dados oficiais do Departamento Nacional de Estatística com data de 29 de Abril deste ano. Trata-se de um aumento de 6,8% só num ano. E 7,5 milhões de pessoas são consideradas em pobreza extrema.

De acordo com a mesma fonte, metade da população sobrevive com trabalho informal; mas Milena Ochoa, do Instituto Nacional do Trabalho – Corporação para a Educação Popular e Investigação, afirma que essa situação abrange 70% da população.

A pandemia agravou brutalmente as carências, sobretudo porque o governo do presidente Iván Duque, um dos pilares da agressão contra a Venezuela e grande apoiante do «interino» e terrorista Guaidó, não conseguiu enfrentar a tragédia na perspectiva dos que vivem com maiores dificuldades. Dos mais de três milhões de contaminados e 85 mil mortos, cerca de 87,5% são oriundos dos três estratos mais desfavorecidos da população.

O reforço da repressão desde 28 de Abril demonstra que o regime apenas conhece a linguagem da força, apesar de até os Estados Unidos e a União Europeia terem anotado a actuação «desproporcionada» das organizações repressivas – ficando-se, aliás, por aí antes de se remeterem ao silêncio cúmplice. As forças do Esquadrão Móvel Anti-Motins (ESMAD) e a tropa não hesitam em utilizar munições reais contra os manifestantes, provocando mais de cem mortos desde 28 de Abril. São milhares os detidos arbitrariamente numa operação permanente de caça ao cidadão que não poupa jornalistas, socorristas e até colombianos que acompanharam a missão das Nações Unidas quando esteve em Cali. Há dezenas de pessoas atingidas com disparos nos olhos, situação registada igualmente no Chile, na Palestina e até já em Portugal, o que demonstra como as forças repressivas israelitas, peritas no método, têm espalhado o seu know-how em acções de formação através dos continentes.

Em 1999 consagrou-se institucionalmente a transformação da Colômbia em país satélite dos Estados Unidos e da NATO com o estabelecimento do chamado «Plano Colômbia» entre Bogotá e Washington, através dos presidentes Andrés Pastrana e William Clinton. Moldou-se desta maneira a Colômbia actual sob a capa da guerra contra o narcotráfico que, como é sabido, não produziu qualquer efeito e agudizou até a influência dos «narcos» sobre o Estado. Pago principalmente pelos Estados Unidos, o Plano Colômbia foi financiado ainda pela chamada «comunidade internacional» e pela União Europeia, podendo dizer-se, sem receio de errar, que todas estas entidades são cúmplices do comportamento criminoso do regime colombiano. Pastrana foi o antecessor imediato do fascista Álvaro Uribe, muito benquisto na União Europeia, de quem o presidente actual, Iván Duque, é apenas um fiel serviçal. O «uribismo» em vigor deu ênfase à vertente securitária do Plano Colômbia, transformando o país num gendarme regional e reforçando a militarização da política com a expansão das forças armadas, dos esquadrões da morte, além da plena inserção colombiana no Comando Sul dos Estados Unidos através do funcionamento de sete bases norte-americanas no território. Como se escreveu e escreve nas paredes do país a propósito do Plano Colômbia, «os gringos dão as armas, a Colômbia contribui com os mortos».

O regime assegurou-se, entretanto, com eleições fraudulentas em 2018 – com as quais os polícias globais da «democracia» não se incomodaram – e, segundo numerosas conjecturas, prepara-se para tentar adiar a consulta presidencial do próximo ano.

O que está a acontecer na Colômbia, no essencial, é o despertar da população, saturada deste prolongado cenário de fraude, crime e violência, de intoxicação neoliberal. Uma contestação multifacetada e criativa da criminosa burocracia da repressão e da exploração. Pessoas de todas as idades tomam as ruas sabendo os riscos que correm, associam-se em organizações de resistência que brotam espontaneamente, apoiam-se materialmente consoante as condições, montam cozinhas comunitárias, gritam ao mundo as suas razões em imponentes murais nas cidades do país; e protestam dançando ao som de salsa e joropo. É o princípio do fim da Colômbia colonial.

Fonte: Abril Abril