Mulheres demoram a perceber violência e assédio no trabalho

Naturalização da violência no trabalho contra a mulher é obstáculo no combate ao assédio. Maioria já sofreu algum tipo de violência ou assédio, mas demoram a perceber a situação

A palavra assédio, seja moral ou sexual, traz a ideia de que existe uma relação de poder do assediador sobre a vítima – Arte de Lívia Magalhães com ilustrações de Freepik

Dois casos de assédio chamaram a atenção no mundo do futebol nas últimas semanas. Rogério Caboclo, presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), foi acusado de assédio moral e sexual por uma funcionária da entidade. Dias depois, Caboclo foi afastado do cargo. Já o atacante Neymar, da Seleção Brasileira e do Paris Saint-Germain, da França, foi acusado de assédio sexual por uma funcionária de uma empresa de material esportivo, que patrocinava o jogador. O caso está sendo investigado. 

Os casos ganharam grande repercussão na mídia, mas são apenas a ponta do iceberg, já que a maior quantidade dos casos sequer é denunciada. Para se ter ideia, um levantamento feito pelo Instituto Patrícia Galvão, organização feminista de referência na defesa às mulheres no Brasil, revelou que 76% das mulheres já sofreram violência ou assédio no trabalho.

Acesse na íntegra o relatório da pesquisa Percepções sobre a violência e o assédio contra mulheres no trabalho (Locomotiva / Instituto Patrícia Galvão, dezembro 2020)

Violência no trabalho

A palavra assédio, seja moral ou sexual, traz a ideia de que existe uma relação de poder do assediador sobre a vítima. Mas é preciso entender cada caso e suas diferenças, como explica a terapeuta ocupacional Maria Paula Panúncio, professora e presidente da Comissão de Direitos Humanos (CDH) da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP.

Maria Paula Panúncio – Foto: Reprodução/Fapesp

O assédio moral se configura com gestos, palavras e comportamentos que expõem uma pessoa a circunstâncias humilhantes e constrangedoras, e que podem ser ofensivas à personalidade, dignidade e integridade física ou psíquica, com o objetivo de excluir a pessoa das suas funções, desqualificar ou prejudicar o trabalho. “Esses atos, para serem considerados como assédio, têm que ser frequentes, repetidos e intencionais”, destaca Maria Paula.

Já o assédio sexual se caracteriza por palavras ou atitudes que constrangem uma pessoa com a finalidade de conseguir vantagem ou favorecimento sexual. Conta a professora que esse tipo de assédio “pode ser caracterizado mesmo que praticado uma única vez e que a vítima se negue a realizar os atos sexuais”.

Apesar de o tema ser cada vez mais discutido, muitas pessoas ainda têm dificuldades em reconhecer uma situação de assédio. Segundo Maria Paula, a naturalização desse tipo de violência – já enraizada na sociedade – é um dos principais obstáculos. Brincadeiras e comentários sexistas ou de cunho sexual, assim como o tratamento rude ou grosseiro de um chefe, são exemplos de assédio moral e sexual, vistos com naturalidade no cotidiano.

Ações de conscientização

Para conscientizar e informar a comunidade sobre “algumas práticas que são naturalizadas e vistas como comuns nos ambientes de trabalho e acadêmico, mas que são práticas abusivas”, a Comissão de Direitos Humanos da Faculdade de Medicina da USP, em Ribeirão Preto, produziu a cartilha Violência interpessoal no trabalho: como identificar e combater o assédio moral e sexual.

O documento, disponível gratuitamente pela internet, deve reforçar a importância de colocar o assunto em pauta e estimular a realização de campanhas de conscientização que, segundo a professora, têm papel fundamental no combate ao assédio. Maria Paula alerta para o fato de que as pessoas que fizeram e fazem piadas de cunho sexual ou sexista, ou que tratam mal os funcionários, vão continuar repetindo suas atitudes se não forem orientadas e conscientizadas. “Essa conscientização é uma luta, e temos que praticar diariamente os mantras do respeito, dos direitos e das boas relações.”

Há consenso sobre a importância de ações de sensibilização e conscientização para que essas situações não ocorram, como distribuição de material informativo e palestras educativas para conscientizar funcionários/as.

Também há amplo apoio para ações de denúncia, acolhimento à vítima e punição ao agressor, como canais de denúncia anônima, apoio psicológico e a implementação de uma política efetiva de punição do agressor.

Já quando o assunto é violência doméstica, para grande parte dos/as trabalhadores/as, os arranjos para romper com a situação devem ser individuais, e não institucionais – muito embora 95% da população apoie que as empresas façam palestras sobre o tema para sensibilizar seus funcionários.

Naturalização das práticas de assédio e constrangimento no trabalho

No ambiente de trabalho, algumas práticas relacionadas a características físicas das trabalhadoras são, muitas vezes, naturalizadas. Para 57%, aparência física deve ser observada na contratação e, para 49%, não há nada errado em homens elogiarem a aparência de mulheres no trabalho, percepção que é maior entre homens (51%) do que entre as mulheres (45%).

Algumas opiniões que invisibilizam as desigualdades entre homens e mulheres também são, muitas vezes, naturalizadas: embora a maioria reconheça a sobrecarga das mulheres com as tarefas domésticas, para 85% o que acontece em casa não pode impactar o rendimento delas no trabalho.

Há a percepção geral de que o trabalho doméstico (em especial o cuidado com os filhos) prejudica mais as mulheres do que os homens no mercado de trabalho. Para a maioria, ter filhos diminui as oportunidades das mulheres no mercado de trabalho, impactando mais a carreira delas do que a dos homens.

Ao mesmo tempo em que é grande a percepção do impacto da maternidade no trabalho – 87% concordam que “uma mulher tem mais medo de contar que está grávida ao seu/sua superior do que um homem que será pai” –, a maioria discorda de que “em uma entrevista de emprego, é importante saber se uma candidata jovem pretende casar-se e ter filhos”. Mais mulheres (65%) do que homens (56%) manifestam essa discordância.

Edição de entrevista à Rádio USP

Autor