Ex-escrava, Madalena vai usar indenização para buscar vida nova

Depois de ser mantida presa dentro de casa por 38 anos, mulher fecha acordo com os ex-‘patrões’

Depois de passar 38 anos em condições análogas à escravidão numa residência de Patos de Minas, no Alto Paranaíba, Madalena Gordiano, de 48 anos, decidiu: vai vender o apartamento avaliado em torno de R$ 500 mil que recebeu de seus antigos ‘patrões’, após um acordo fechado nesta semana. Será uma forma de esquecer tudo o que passou ao longo das últimas décadas.

Além do imóvel, ela recebeu um carro Hyundai IX35, ano 2014/2015, no valor de R$ 70 mil que pertenciam à família que é ré em processo do Ministério Público do Trabalho. O acordo prevê ainda mais R$ 20 mil para pagamento de impostos devidos dos bens.

Madalena disse à Agência Estado que pretende vender os bens para construir ou comprar uma casa. Ela pretende permanecer em Uberaba, no Triângulo Mineiro, onde reside atualmente com uma assistente social. “Vou vender o apartamento. Não vou morar lá não, porque tenho muita recordação ruim. Mas vou ter de entrar, olhar. Agora é meu, né?”, afirmou. “Eles me maltratavam muito, não me deixavam fazer nada. Eu queria ir à missa e não podia, ou tinha de voltar depressa. Me davam muita bronca”, recorda.

Hoje a vida da antiga ‘doméstica’ mudou completamente em relação a até o ano passado. Ela frequenta uma academia, mudou seu visual, mostrando uma aparência alegre e jovial, já foi à praia e entrou no mar. “Estou feliz demais”, resume. Trabalhar como empregada doméstica nunca mais. Ela voltou a estudar, principalmente Português e Matemática. “Eu quero é estudar, virar enfermeira, ajudar a atender as pessoas e passear. Depois de conhecer o mar de Paraty, sonha em conhecer o Rio de Janeiro.

Madalena logo após ser resgatada em 2020 – Reprodução

Madalena Gordiano foi resgatada pelo Ministério Público do Trabalho e Polícia Federal em Patos de Minas, no dia em 27 de novembro de 2020. A ‘doméstica’ morava na casa dos ‘patrões’ desde os 8 anos, apos ser adotada. Não tinha registro em carteira, nem salário mínimo garantido ou descanso semanal remunerado e era obrigada a cumprir jornadas longas e exageradas. Era mantida num quartinho sem janela, tinha poucos pertences e não se sentava à mesa com os demais moradores da casa.

Desde que foi libertada, Madalena só encontrou com os ‘ex-patrões’, o professor univeristário Dalton César Milagres Rigueira e sua muljher, Valdirene Rigueira, durante audiências na Justiça.

Madalena foi assistida de forma voluntária por uma equipe comandada pela advogada Márcia Leonora Santos Régis Orlandini, professora de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia e coordenadora da Clínica de Enfrentamento ao Trabalho Escravo da universidade. Segundo ela, também foi fechado um acordo com cinco bancos com os quais os acusados fizeram empréstimos consignados em nome de Madalena, no valor estimado de R$ 50 mil. Todos os empréstimos serão cancelados.

Pensão fraudada

Uma pensão fraudada de R$ 8.400 recebida por Madalena pagou o curso de Medicina de Vanessa Maria Milagres Rigueira, filha de Dalton César Milagres Rigueira. Conforme informações de auditores fiscais do caso, o dinheiro ainda financiou os gastos da família por 17 anos. O benefício foi concedido a Madalena por ela ter sido “esposa” de um ex-soldado da Segunda Guerra Mundial, mas jamais teve controle do dinheiro. O valor era administrado por Maria das Graças Milagres Rigueira e o filho dela, Dalton César Milagres Rigueira.

A ex-escrava foi “casada” em 2001 com Marino Lopes da Costa, e recebia duas pensões desde 2003, quando o “marido” morreu aos 80 anos. O “casamento” foi alvo de denúncia em 2008, porém, o processo foi encerrado em 2015 por falta de provas, apesar de “fortes indícios de ocultação do fato”.

Ciente da saúde debilitada de Marino por conta da idade, Maria das Graças teria organizado o casamento de Madalena para que o dinheiro da pensão pudesse pagar a faculdade da filha Vanessa Maria Milagres Rigueira. Ela se formou em 2007 pela Faculdade de Medicina de Petrópolis, RJ.

Quando Vanessa estava praticamente formada, Dalton passou a administrar o dinheiro de Madalena. Em depoimento prestado ao Ministério Público do Trabalho, ele disse ter uma renda de R$ 10 mil como professor universitário e mais R$ 1.300 do aluguel de dois imóveis.