Publicidade durante a pandemia foi da solidariedade à perversidade

Comunicação das marcas foi analisada em pesquisa do Observatório da Pandemia, grupo com pesquisadores do Brasil, Chile, Argentina e Espanha analisando como a publicidade o caráter cidadão ou consumista dos indivíduos.

Bolsonaro numa live defende o uso da cloroquina (Foto: Reprodução)

Muitos estudos, em variadas áreas do conhecimento, têm sido produzidos com o objetivo de compreender por inteiro o cenário causado pela pandemia de covid-19. Uma dessas iniciativas foi a criação, em 2020, do grupo de pesquisa Observatório da Pandemia, formado por pesquisadores do Brasil, Chile, Argentina e Espanha. Na USP, a coordenação é dos professores Clotilde Perez, Eneus Trindade e Bruno Pompeu, do Departamento de Relações Públicas, Propaganda e Turismo (CRP) da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP.

Clotilde Perez – Foto: Arquivo pessoal

Após um ano de investigações, o grupo acaba de publicar o relatório Observatório da Pandemia: a publicidade e as marcas no contexto da covid-19, um estudo aprofundado sobre o posicionamento e o discurso utilizado por marcas publicitárias durante a crise sanitária vivida no Brasil.

Para os pesquisadores, há um tensionamento entre as possibilidades de alegria advindas do isolamento social e os sofrimentos causados por esse mesmo isolamento. Se por um lado as pessoas passaram a ficar mais tempo em casa – trabalhando em home office e convivendo mais com a família –, por outro lado essas mesmas atividades se provaram capazes de ocasionar sobrecarga física e mental.

Além da sobrecarga emocional, a sociedade brasileira como um todo precisou lidar com dificuldades no ensino remoto, acúmulo de funções, tensões familiares, desemprego e a atual crise econômica e política do país.

Nesse contexto, “em um mundo em que somos, antes de tudo, consumidores” e não cidadãos, entender como a pandemia afetou a comunicação das marcas e as práticas de consumo se torna ainda mais relevante. “Trata-se de algo que não simplesmente define uma parte da existência individual ou um aspecto limitado do cotidiano coletivo, mas, ao contrário, permeia atualmente todas as questões que possam se relacionar com a individualidade – identidade, dignidade, existência, pertencimento, etc. – e que serve de substrato à própria ideia de sociedade – integração, cidadania, dinamizações, hierarquizações, representações, etc.”, afirmam os autores no relatório.

O estudo classificou práticas sociais consideradas “eufóricas” ou positivas para definir como algumas marcas se comportaram. Por algum tempo, muito da sociabilidade do “consumidor” foi entendida como um longo período de férias. Ter trabalho home office, aulas online, educação remota emergencial, possibilidades concretas que ajudam a ter uma certa rotina. A mídia fazendo o que deve prioritariamente fazer, informar, também contribui positivamente para este estado de euforia. A rotina passou, nestes casos, a ser mais planejada e gerou uma gestão dos tempos com a família, trabalho, escola, casa e tempo individual. Interagir com amigos, familiares, colegas do trabalho, tudo via redes sociais digitais. Consumo midiático de lives sobre vários assuntos. Entretenimento totalmente mediado por dispositivos digitais. Alto consumo midiático no streaming. Os panelaços de manifestação #Forabolsonaro como catarse frente ao descaso do Governo Federal brasileiro. Esse acúmulo de tempo dentro do mesmo espaço – a casa – gera uma espécie de alienação involuntária, com rotinas instituídas e certa banalização das mortes, que busca atenuar o medo, pela fuga da realidade. As pessoas têm de trabalhar sem se deslocar ou pegar trânsito. A vida material passou a incorporar exercícios em casa, tomar sol na janela, varanda, laje ou jardim de casa, caminhadas nas ruas algumas vezes na semana e passeios com o cachorro como atividade para romper com o confinamento/isolamento. Cozinhar, ler, arrumar a casa, perceber a casa, fazer pão, preparar o cenário para a live a ser transmitida, pequenas reformas nas residências, etc. Muitas dessas ações aconteciam enquanto eram registradas e transmitidas nas redes sociais digitais, resultando em alta produção de memes e expressões de várias ordens de humor. O aumento do consumo não apenas do streaming, mas das lojas online, aplicativos e consumo delivery trouxe a possibilidade não só de abastecimento, como também da sensação de alguma “normalidade”, incluindo alguns ganhos, de tempo e até de dinheiro. Usar roupa de casa, ficar de pijama ou mesmo não calçar sapato completam o contexto eufórico.

Por outro lado, conforme a pandemia se prolongava foi preciso compreender que a sociabilidade ganhou um tom de desgaste e cansaço com a nova ordem da classe média consumidora. Convive-se com a tristeza e com os sofrimentos do confinamento/isolamento e as consequências amplas da pandemia, cujas práticas são sentidas como disfóricas. A saber: dificuldades e sobrecarga do trabalho em home office. Dificuldades no ensino remoto emergencial para as crianças, que vem se mostrando pouco eficiente. Tensões familiares com todos em casa. A complicação da rotina de trabalho devido ao fato de as crianças estarem em casa, demandando a atenção dos pais e sobretudo das mães. Os exaustivos cuidados de higiene/limpeza, instituindo uma prática quase hospitalar e asséptica na vida doméstica. A obrigatoriedade de se usar máscara e álcool gel 70% e de lavar as mãos constantemente. As casas não estavam adaptadas para todos estarem nelas ao mesmo tempo e conectados para realizar suas atividades. O aumento das buscas por terapia e psicanálise online continua a ser registrado e tematizado em diferentes contextos. Politicamente o Brasil vive um governo de descaso de extrema direita, que sustenta seu apoio na formação de opinião construída a partir de fake news e possui um chamado “gabinete do ódio”, o que favorece a crise e a instabilidade política. Há uma incerteza e iminência de golpe. O programa de renda mínima temporário foi cancelado e há altos índices de desemprego e miséria nas ruas das capitais e das demais cidades. O país vive um colapso econômico. Os desamparados, as pessoas vivendo nas ruas, favelas e comunidades empobrecidas, vivem a falta de condições sanitárias e não possuem voz. Estão esquecidos. Há o medo da morte, mas não se fala disso.

Mercado de antigripais e vitaminas cresce na pandemia, segundo a publicação especializada em publicidade Meio & Mensagem

Os diferentes tons no discurso

O tom da comunicação publicitária, o conteúdo das campanhas e a postura das marcas frente à pandemia – Foto: Observatório da Pandemia.

Os resultados obtidos pelo estudo classificam as posturas das marcas em três diferentes tons: tom educativo, sugerindo uma pausa no consumo e mantendo um alinhamento com a campanha “Fique em Casa”; tom informativo, procurando a manutenção do consumo em patamares normais; e tom promocional, procurando aumentar o consumo.

Ainda dentro desse esquema, os discursos se dividiram em: postura positiva da marca, conteúdos relativos à pandemia, práticas sugeridas, ações para a sociedade, adaptações práticas, ações para o consumidor, relevância do produto e postura negativa da marca (exemplificada pelo discurso do “novo normal”). A partir desses dados, os pesquisadores chegaram à classificação final, dividida em posicionamentos oportunistas, demagogos, solidários, ativistas e perversos.

Essa classificação mais ampla também permite um desdobramento interno mais detalhado, agora levando em conta os conteúdos específicos das peças publicitárias analisadas. Se antes tínhamos um olhar para a postura das marcas em relação ao consumo frente à pandemia, agora miramos o que de fato elas trouxeram para seus discursos. Assim, temos:

  • Postura positiva da marca, com o anunciante destacando o próprio posicionamento frente à pandemia, em alinhamento com os discursos públicos institucionais, sem menção a produtos ou serviços. Ex.: estamos juntos, compreensão mútua, acolhimento, solidariedade;
  • Conteúdos relativos à pandemia, com dados e informações técnicas desvinculadas do produto normalmente oferecido pelo anunciante. Ex.: número de contaminados, mortos e curados, evolução da contaminação, prevenção, etc.;
  • Práticas sugeridas, indicando novos hábitos, novas formas de se comportar diante das restrições impostas pela pandemia. Ex.: lavar as mãos, usar máscara, limpar as compras, não abraçar ou beijar, ficar em casa, etc.;
  • Ações para a sociedade, destacando as realizações e as ações da empresa anunciante, participando ativamente do combate à pandemia. Ex.: doações, facilitação junto aos fornecedores e aos canais, compromisso de não demissão e não rompimento de contratos com fornecedores e distribuidores, etc.;
  • Adaptações práticas, pondo em evidência o que foi feito pela empresa anunciante no sentido de se manter o funcionamento ou a oferta em meio à pandemia. Ex.: treinamento de funcionários, políticas de distanciamento, sanitização, adaptação dos espaços físicos (marcações no chão, banners com alerta, acrílicos de separação), etc.;
  • Ações para o consumidor, como forma de manter os clientes atuais, destacando possíveis vantagens na manutenção do consumo. Ex.: programas de fidelidade, descontos, facilidades na entrega e no pagamento, extensão de prazos, etc.;
  • Relevância do produto, não apenas procurando manter os consumidores já efetivos, mas também buscando a conquista de mais e novos clientes. Ex.: cobertura de seguros e planos de saúde, ação bactericida de produtos de higiene e limpeza, analgésicos e
    anti-inflamatórios “recomendáveis”, etc.;
  • Postura negativa da marca, tratando também do seu posicionamento frente à pandemia, mas em relação de prepotência, autoritarismo, insensibilidade, etc. Ex.: aguentem firmes, novo normal, contra o vírus temos a nossa positividade, sugestão de cenário sem problemas, alienante, etc.

Solidariedade e perversidade

A partir dos sentidos eufóricos e disfóricos apresentados, o estudo percebeu marcas que navegam em seus discursos entre posicionamentos oportunistas vs. ativistas, ao mesmo tempo que também apresentam discursos em lógicas solidárias vs. lógicas perversas. Os cruzamentos dessas lógicas dialéticas geram sínteses que permitiram refinar essas subtensões e perceber que existem marcas demagogas dadas numa tensão entre o oportunismo e a solidariedade; marcas solidárias e ativistas que geram manifestações de lógicas colaborativas, buscando engajamento com o público, e se associam à causa pandêmica; marcas cínicas que assumem um hibridismo da perversão com o oportunismo; e marcas engajadas unicamente na lógica comercial dada por um ativismos capitalista, ao mesmo tempo perverso.

As marcas oportunistas são bastante condenáveis, pois objetivam tirar proveito da situação de medo e insegurança para vender mais, como um banco que divulga um seguro de saúde com descontos para médicos ou ainda uma marca de remédio contra a gripe que se aproveita do “discurso oficial” (é só uma gripezinha) para vender mais antigripais. No caso dos bancos, o que de fato querem dizer as mensagens revestidas de vantagens? Você, médico, que está com medo porque está na linha de frente do combate a pandemia – logo, com medo de morrer –, adquira um seguro e deixe a sua família “bem” na sua ausência… Exemplos assim marcam a característica do tipo: oferecer vantagem, independentemente do contexto; mostrar os apelos como oportunidade; criar uma adequação dos discursos das marcas para essa manipulação; procurar dissimular o medo disfarçado de racionalidade. Qualitativamente notámos a forte presença da cor vermelha (alarme/alerta).

As marcas demagogas buscam agradar e manipular os cidadãos, com argumentos apelativos e fortemente emocionais, mas também visando o proveito próprio com a situação de caos e incertezas. Normalmente, em tom nostálgico, buscam apelos ao convívio social (impossibilitado ou restrito) e, principalmente, à família reunida, no melhor caminho de agradar para manipular – olha como “eu” (marca) sou querida! Olha como os tempos eram bons comigo (marca)! As características do tipo são: uso de emoções; ludicidade nos temas, com uma estética infantilizada, nostalgia do contato pessoal presencial (encontro, toque…), apagamento dos fatos negativos a favor de situações sociais de descontração, uso sistêmico de signos sonoros reconhecíveis (músicas emocionais).

As marcas solidárias se mostram mais sensíveis e empáticas, informando sobre seus serviços e produtos, agora alterados diante das circunstâncias de isolamento e combate à expansão do vírus, e anunciam acesso facilitado, investimentos para adequação de infraestrutura física e tecnológica, alteração de jornada de trabalho, com benefícios diretos para os funcionários, entre outras medidas que demonstram o posicionamento de compreensão dos dramas sociais e ações concretas para minimizar a dificuldade que é de todos. Características deste tipo: assume um pragmatismo diante da pandemia e usa a racionalidade para pensar a redução de danos e minimizar sofrimentos. Assume uma postura de solidariedade (estar ao lado do público). Explicita uma atitude concreta (doação, acesso, entrega…). Demonstra empatia e humanidade. Indica o engajamento com o público consumidor, vivendo o drama como ele vive. Há um predomínio dos signos cromáticos azul (confiança e seriedade) e branco/transparência (credibilidade).

Já as marcas ativistas são raras, uma vez que estão implicadas em ações em todos os pontos de contato, quer nas relações intrínsecas ao próprio negócio, com funcionários e fornecedores, quer com consumidores, nas redes de relações e com os cidadãos, promovendo uma ecologia transformadora, onde todos importam. Têm uma postura que busca fazer a diferença, assumindo inclusive as incertezas de suas decisões. Implica fazer compromissos, como não demitir nenhum funcionário durante a epidemia, reverter parte de produtos ou serviços para auxiliar os serviços de saúde durante a pandemia, prorrogar boletos de pagamento de seus clientes, garantir a remuneração de sua força de vendas e o serviço psicológico aos funcionários, entre outros cuidados; ações concretas e necessárias, de interesse amplo porque beneficiarão toda uma rede de relações e a sociedade em geral em uma ecologia virtuosa que garantirá a segurança econômica, física e psíquica. As características deste tipo são: têm consciência do problema. O pragmatismo, a racionalidade e a solidariedade são amplas e são buscadas em todos os pontos de contato da organização/empresa/marca. Assumem um diálogo com os públicos com informação constante. Explicitam atitude concreta (doação, acesso, entrega…). O engajamento se converte em ação política da marca. Praticam valores na construção de uma verdade comungada com seu público, frente à crise vivida por todos.

Por fim, as marcas perversas são aquelas que exercitam desvios morais e éticos. Dizem uma coisa e fazem outra. Por exemplo: no discurso publicitário são solidárias, mas ao mesmo tempo demitem. É a típica dissociação entre discurso e prática. Encontramos de forma evidente os bancos como exemplos evidentes destas práticas. As principais características do tipo são: prepotência, autoritarismo, controle, resiliência (do outro…). Estímulo ao empreendedorismo (do outro…). Engajamento com o lucro permanente, busca pelas vendas, independentemente do contexto de crise. Mostram-se cínicas, não têm vergonha de seus propósitos lucrativos mesmo na condição pandêmica. Predomínio da cor vermelha (alarme, dinamicidade, ênfase…), mas também da monocromia, o que impõe pasteurização, horizontalidade, medo, tanatos.

A esquematização desses dados deverá servir como base para estudos ainda mais aprofundados no eixo de Cultura de Consumo e Marcas. Para os pesquisadores, “cada um desses recortes possíveis possibilitou uma classificação, que, sem o objetivo de ser definitiva, apresenta uma possibilidade de mapeamento e, principalmente, de compreensão dos valores sociais construídos e compartilhados no âmbito do consumo no contexto da pandemia da covid-19.”


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