Mulheres negras querem um país que caiba em seus sonhos de igualdade

Desde 1992, o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha – 25 de julho –, foi decretado em um encontro na República Dominicana. Desde então, leva milhares de mulheres negras a marcharem pelas ruas da América Latina na luta por seus direitos, por vida digna e para serem respeitadas como devem.

Dia 25 de julho é celebrado o dia da Mulher negra, latina e caribenha

Os números, porém, são aterradores e na pandemia pioraram. Tanto que as mulheres negras ganham 44,4% a menos que os homens brancos nessa parte do continente americano, mesmo com mais escolaridade, como revela a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal).

No setor privado, as mulheres negras dificilmente ocupam algum cargo de maior relevância. Além disso, representam apenas 10,6% da força de trabalho nas 500 maiores empresas do Brasil, por exemplo. Somente 8,2% atuam como supervisoras, 1,6% como gerentes e 0,4% como executivas.

Já nas profissões de remuneração mais baixa, a presença das mulheres negras é de absoluta maioria. São cerca de 80% das trabalhadoras domésticas no país e atualmente têm grande presença nas ruas como vendedoras ambulantes, em trabalho absolutamente precário.

O racismo se estruturou para dominar a maioria da população e as mulheres negras permanecem na base da pirâmide social, carregando sobre os seus ombros toda uma sociedade racista, machista e patriarcal.

Na escravidão trabalhavam lado a lado com os homens também escravizados e produziam tanto quanto eles. Também eram as trabalhadoras domésticas, amas de leite, e todo o trabalho a ser realizado para manter as senhoras e os senhores de escravos no ócio.

E muitos tentam negar a história de mulheres como Luiza Mahin, Tereza de Benguela (também homenageada no 25 de julho no Brasil), Mariana Crioula, Xica da Silva, Chiquinha Gonzaga, Elza Soares, Clementina de Jesus, Carolina Maria de Jesus, Ruth de Souza, Leci Brandão, Marielle Franco, entre muitas outras, e dessa juventude que vem chegando para construir o novo, como diz Rozana Barroso, presidenta da União Brasileira de Estudantes Secundaristas (Ubes), “queremos um Brasil que caiba nos nossos sonhos”. Entendendo a educação como a possibilidade de transformação de uma sociedade.

Tarefa árdua num país em que a média salarial das mulheres negras, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2020, foi de R$ 1.573, enquanto dos homens brancos foi de R$ 3.467, uma diferença de 54,63%. Enquanto na taxa de desemprego, as mulheres negras representaram 18,25% e os homens brancos foram pouco mais da metade das mulheres negras sem emprego, 9,6%.

Para homenagear as mulheres negras da América Latina e do Caribe e empoderar a luta por uma sociedade igualitária, que não distinga ninguém a não ser pelo seu talento e pela sua individualidade, o Portal CTB ouviu as histórias e as vivências de algumas mulheres negras para mostrar a necessidade de todos os movimentos sociais se unirem para derrotar a extrema-direita, representada neste momento pelo presidente Jair Bolsonaro, e recuperar as políticas públicas em favor dos direitos de todas as pessoas viverem sem medo e com dignidade.

Mônica Custódio, secretária de Igualdade Racial da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB)

Para pagar os meus estudos, comecei a trabalhar numa indústria metalúrgica. E assim, não depender do meu pai que queria “definir” o que era o melhor para mim. Foi quando conheci Fátima Duda, uma metaleira militante e feminista que me perguntou um dia se eu queria a liberdade. Respondi que sim e ela me disse: “vá até ela”. Eu fui.

Trabalhei na Faet S/A, só pra começar. Depois entrei no colégio Elpídio Evaristo dos Santos, Colégio Metalúrgico. E depois, por conta dessa gente linda que me cercou, me formei licenciada em Geografia e me especializei em Administração e Políticas Públicas. Também sou mestranda em Geografia. Eu aprendi que a vida não pode parar.

Como mulheres negras, que escravizadas por quase quatro séculos, é importante acentuar que o nosso contexto histórico em África e na diáspora nunca nos fez diferentes de nossos irmãos homens. Então nossa condição de “responsabilidade” no trato da construção social e humana de nosso povo é nossa base até os dia atuais.

É o que se chama de cuidados de esteio ou chefe de família. E isso se constitui em meio a toda a uma estruturação de nação, que nos dias atuais em face a uma crise quase cíclica aprofundada por uma crise sanitária e um governo fascista, está nos levando ao ápice da luta pela sobrevivência física, psíquica e espiritual.

A morte se põe à nossa frente, diariamente, como um cenário, que parece filme. São vários os caminhos. Querem nos matar pela fome, pela violência e pela pandemia. Por isso, entrei no movimento sindical e fui ser dirigente do Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro. Em 1996, já estava na coordenação da Corrente Sindical Classista e na direção nacional da Central Única dos Trabalhadores, em 2000.

A CTB nasceu em 2007 e teve e tem um papel respeitável na construção de um novo caminho de formulações constritivas de unidade de ação pelo bem comum. Eu tenho muita alegria, orgulho e gratidão de fazer parte da fundação da CTB. Desse central que só cresce, de uma ponta a outra de forma harmoniosa e sem pressa, sem vacilo.

A direção chegou para mim em 2013, com a Secretaria de Igualdade Racial. Um presente, que leva à gratidão de toda a minha companheirada. Teremos um novo quadro a frente dessa secretaria essencial na luta por dias melhores, por vida melhor, por relações e condições de trabalho melhores.

Enquanto isso, nós população negra, nos posicionamos a ser esse instrumento transformador na luta política social, histórica e econômica do nosso país, por dias melhores e um novo governo.

Cartaz da Marcha das Mulheres Negras de São Paulo

Ana Paula Evangelista Neris, professora de educação infantil

Na infância e na adolescência acreditava que nada poderia ser pior do que tudo aquilo que vivia. Éramos em sete irmãos. Meu pai e minha mãe, ambos em trabalhos precários, viviam constantemente em situação de extrema vulnerabilidade. Sempre moramos no Itaim Paulista, extremo leste da cidade de São Paulo, onde ainda moro.

As dificuldades foram inúmeras, mas acredito que a dificuldade de acesso à escola foi uma das piores, pois eu não conhecia referências que pudessem me inspirar a ir além. Minha mãe trabalhava como auxiliar de limpeza em um hospital, meu pai era pedreiro e essa era a minha perspectiva de vida. Arrumar um trabalho e ajudar meus pais, nada além disso.

Durante a minha infância não se falava em racismo, mas sabíamos bem como era viver isso na pele. Os apelidos, a maneira como eu era olhada e até às distinções que faziam em determinados espaços. O olhar de nojo da professora da antiga quarta série, a não indicação para uma determinada vaga de trabalho. Ser dita como feia. Ocupar apenas vagas de trabalhos operacionais, mesmo tendo condições de uma vaga melhor. Tudo isso me fez ter baixa estima, a duvidar das minhas capacidades e a me sentir inferior às demais pessoas. Passei por um processo tão ruim na infância e na adolescência que em determinado momento cheguei a negar a minha negritude, afinal de contas, ser mulher e negra era um fardo muito pesado.

As coisas começaram a mudar quando soube de uma bolsa de estudos para entrar na universidade, eu sempre sonhei em estar lá, só não sabia como. Foi muito difícil, mas consegui e ao chegar lá me deparei com um turbilhão de possibilidades. Conheci muita gente, expandi meus horizontes, me reconectei com a minha ancestralidade e me achei, achei aquela “tribo” que tanto procurava.

Conheci quatro mulheres negras ativistas, elas eram bem jovens e eu sentia algo diferente quando estava perto delas. Queria sugar todo aquele conhecimento, queria recuperar o tempo perdido, pois foi a partir daqueles diálogos que passei a entender tudo o que vivi durante toda a minha vida.

A militância me salvou. O ativismo me ensinou tudo aquilo que eu deveria ter aprendido na escola, nos livros didáticos. Me foram apresentadas heroínas negras, cientistas negras, médicas e médicos negros e hoje eu posso dizer que sou melhor, uma professora muito melhor do que as que eu tive e, não por arrogância, mas por entender que somos diversos e respeitar isso. Por não expor “minhas” crianças ao ridículo, por não as classificar pela cor da pele e por respeitar suas subjetividades. Tenho certeza que as crianças que me têm como educadora, terão boas lembranças e não traumas.

Cláudia Rodrigues, presidenta União Brasileira de Mulheres (UBM) na cidade de São Paulo e do Conselho Municipal de Políticas para Mulheres

Nasci na periferia de Guarulhos, região metropolitana de São Paulo, em uma família humilde. Comecei a trabalhar como empregada doméstica aos 8 anos. Depois fui recepcionista, secretária e atendente em posto de gasolina.

Consegui com muito custo, me formar em Educação Física, em 2004, e desde então trabalho nessa área. Fui diretora de clube municipal na capital paulista e coordenadora do programa Bolsa Atleta do Ministério do Esporte. Atualmente trabalho no setor privado, no ramo de infraestrutura esportiva.

Quando estudante, presidi o grêmio da minha escola e também o Diretório Central de Estudantes da universidade onde me formei. Cheguei a ser presidenta da União da Juventude Socialista na capital paulista.

Desde 2015 sou presidenta da União Brasileira de Mulheres (UBM) na cidade de São Paulo, cujo trabalho é centrado em bairros da periferia paulistana. Quando começou a pandemia da covid-19, iniciei a campanha chamada “Isolamento Sem Fome”, uma rede de solidariedade em apoio às mulheres dessas comunidades da periferia, onde a entidade atua.

Em fevereiro de 2021, assumi a presidência do Conselho Municipal de Políticas para Mulheres (CMPM). Venho lutando pela construção da Casa da Mulher Brasileira na Zona Leste da cidade, a mais populosa de São Paul. Há poucos dias, a proposta foi escolhida como prioridade em votação popular organizada pela prefeitura para definição do orçamento municipal de 2022.

Generosa Maria Lima, formada em Orientação Comunitária e agente de prevenção Ists/AIDS projeto da Secretaria Municipal de Saúde

Ocupo São Paulo com meu corpo preto, ciente de que podemos estar em qualquer espaço. E assim o faço com o Ilú Obá De Min, grupo com mais de quatrocentas mulheres onde sou integrante há 10 anos. Do centro, Vale do Anhangabaú onde ensaiamos, às periferias, Casas de Cultura, Fábricas de Cultura,  Centros Educacionais Unificados, aos grandes palcos como os Sescs, Centro Cultural São Paulo, Teatro Municipal e muitos festivais. Apresentamos e engrandecemos a força da mulher preta e o Asè dos Xirês que ao som dos tambores reproduz de forma artística a representação das religiões de matriz africana.

Outra forma em que me encontro na cidade é literalmente ocupando meu espaço de moradia, há aproximadamente 10 anos moro no centro de São Paulo e há quase 5 anos moro na Ocupação 9 de Julho, num prédio que estava abandonado por volta de 20 anos, sem função social, e hoje abriga mais de 100 famílias com dignidade e formação política pelo Movimento Sem Teto do Centro, que nos ensina que direito não é privilégio e que moradia faz parte dos direitos determinados pela Constituição Federal, por isso ousamos estar onde desejamos estar, afrontamos o mundo capitalista que considera que trabalhadores de baixa renda deve viver à margem da cidade.

Mais uma vez ocupo a cidade, agora com a Marcha das Mulheres Negras de São Paulo, onde estou há 6 anos e me aquilombo, uma articulação autônoma e que atua em coletivos diversos. Nascemos do potente processo que nos levou a Brasília em 18 de novembro de 2015. A Marcha é um espaço de fortalecimento mútuo, aprendizado e resgate das nossas tradições ancestrais e do legado de luta e resistência das mulheres negras. Assim permaneço viva, irmanada  na luta contra o racismo, o machismo,  a violência e pelo bem viver.

Foto: Tânia Rego/Agência Brasil

Rosa Anacleto, presidenta da União de Negros e Negras pela Igualdade (Unegro) no estado de São Paulo,  diretora de Gênero da Federação dos Metrôs

Nesse 25 de julho, que foi cunhado pelas mulheres negras no 1º Encontro em São Domingos, República Dominicana, em 1992, fico sempre emotiva e emocionada porque no Brasil construímos o mês de julho para falarmos das nossas coisas de mulheres pretas e cunhamos o Julho das Pretas. Onde falamos e discutimos as  dificuldades de sermos mulheres negras,  nesses país que é machista, racista e muitas vezes misógino.

E o julho das Pretas também é  momento para falarmos da violência contra as mulheres negras, do feminicídio que recai de forma tão perversa sobre nós. É hora de falarmos de pertencimento, de amor, das lutas. É o momento também de falarmos de reconstrução, de tratarmos estratégias de superação de todas as opressões.

A violência do Estado se abate sobre a periferia e deixa corpos negros jovens sem vida em nome do racismo que estrutura suas ações. Outras ações do Estado são as abordagens policiais onde essas ações causam traumas e até a morte e que também despertam a necessidade de lutar para mudar essa realidade de exclusão e racismo.

Cada 25 de julho renova a confiança nos dias que virão com a superação do racismo,  do machismo e misoginia e com muita luta   contra esse estado coisas e por políticas públicas em favor da vida, da justiça e da igualdade de direitos.

Cada 25 de julho renova a esperança na luta por trabalho decente, com salário igual para trabalho igual, independente do gênero. A cada 25 de julho acontece a ocupação de espaço de poder no Legislativo, no Executivo e no Judiciário.

Defender a  democracia e lutar para avançar as pautas dos movimentos sociais, em especial o movimento negro e de mulheres negras.  Porque somente num ambiente  democrático podemos avançar para o mundo justo com o qual sonhamos.

Mulheres Negras, de Yzalú

Rozana Barroso, presidenta da Ubes

Eu conheci o movimento estudantil por causa de minha mãe, mulher negra, empregada doméstica e ainda estudante do ensino de jovens adultos. Comecei a questionar do porquê ela sofria tanto e não podia estudar.

Foi aí que descobri uma luta pelas mulheres negras. Descobri que éramos, e somos, capazes de transformar as nossas vidas, através da educação e assim contribuir para o avanço do Brasil, apesar de todo o sofrimento pelo qual passamos neste país.

Tive uma infância e adolescência muito difíceis. Não só pelo racismo, machismo, LGBTfobia, mas principalmente pela desigualdade como um fator importante para nos colocar para trás. E neste momento, o Bolsonaro tenta trazer de volta esse sentimento para a juventude brasileira. Esse sentimento de que nós não pertencemos à educação, que o ensino superior não nos pertence, que nós não podemos ser os primeiros da família a entrar na universidade. Como eu sonho em ser a primeira da minha família na universidade.

Toda essa trajetória histórica de minha mãe, minha avó e das mulheres negras da minha família, me dá forças para lutar junto com os estudantes para deixar claro a Bolsonaro que nós não aceitaremos esse caminho traçado de desprezo e desrespeito às mulheres negras brasileiras.

Principalmente as mulheres jovens. Não aceitaremos o subemprego, a fome, a falta de acesso à educação, a violência sexual, a violência doméstica. Nós não aceitaremos morrer de fome, morrer de tiro, morrer de covid. Nós queremos viver e amar como todas as pessoas desejam e têm o direito humano a isso. Nós queremos um Brasil onde possamos de fato seguir com os nossos sonhos. Um Brasil que caiba nos nossos sonhos.

Foi muito difícil enfrentar tudo isso na minha vida. Mas tudo também me transformou na mulher que sou, de pensar no coletivo. Na menina, na jovem que sou e de pensar sempre no coletivo. Porque nunca é sobre a Rozana. É sobre várias outras mulheres e meninas negras pelo Brasil inteiro, que também têm os mesmos sonhos como eu. E que também lutam para transformar as suas vidas.

Há pouco tocamos uma campanha na Ubes “Menos Um Sufoco”, que pagou o boleto de inscrição para o Enem para quase 600 estudantes. Campanhas como essa, reforçam para as meninas que elas são capazes. Nós lutamos no Congresso para garantir internet de graça para 18 milhões de estudantes da educação básica, do Brasil inteiro. Bolsonaro entrou na justiça para impedir esse acesso porque o projeto dele é para que as meninas negras não tenham acesso à educação, não tenham esse meio de transformação na vida. Ele quer nos desenhar um único caminho. Mas eu tenho a certeza de que as meninas secundaristas, as meninas negras vão desenhar com suas próprias mãos o caminho da vida, pão, vacina e educação.

Nós realizaremos esse sonho de sermos as primeiras da família na universidade, de sermos essas pessoas, que através da educação, vão transformar a realidade. Tenho a certeza de que vamos derrotar o Bolsonaro.

Foi muito difícil sim e é sempre. Porque o racismo está presente no nosso país e isso me motiva a lutar muito mais por um Brasil livre do racismo, do machismo, da LGBTfobia, principalmente nestes tempos de Bolsonaro. Nós verdadeiros patriotas, verdadeiras patriotas com certeza o derrotaremos nas ruas, nas redes e nas urnas.

Da CTB

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