Forças Armadas não têm atribuição para moderar conflito entre poderes

Os integrantes das Forcas Armadas, em sua maioria compostas por estadistas e possuidores de alto preparo intelectual, bem sabem que é descabida e carente de fundamentação jurídica a interpretação que pretenda legitimar a sua intervenção para moderar conflitos entre os poderes.

A Constituição Federal não confere às Forças Armadas a atribuição de intervir nos conflitos entre os poderes em suposta defesa dos valores constitucionais. Ao contrário: demanda seu mais absoluto respeito à legalidade e ao texto constitucional, o que inequivocamente perpassa o princípio da separação dos poderes e a garantia do Estado democrático de Direito.

Não se interpreta a Constituição em tiras ou por pedaços, devendo sempre ser mantida a sua unidade. A hermenêutica constitucional encontra limites na sistematicidade do texto, levando-se em consideração os princípios e valores que elegeu, como a adoção de um Estado democrático de Direito, a separação dos poderes e a soberania popular. Não pode o intérprete chegar a um resultado que subverta ou perturbe o esquema organizatório-funcional estabelecido pelo constituinte originário.

Tem sido atribuída ao artigo 142 da Constituição interpretação equivocada, no sentido de que este conferiria às Forças Armadas um “papel moderador”, permitindo-lhes intervir em quaisquer dos poderes da República para a garantia da lei e da ordem. Contudo, tal interpretação, além de destituída de fundamentação jurídica, constitui grave ameaça à ordem constitucional e democrática.

A Constituição de 1988 estabeleceu um modelo institucional de subordinação do poder militar ao poder civil. O constituinte teve o cuidado de consignar a submissão das Forças Armadas à “autoridade suprema do Presidente da República” e de assentar sua configuração como “instituições nacionais permanentes e regulares”, de modo a se submeterem, em qualquer tempo, aos ditames do sistema constitucional, independentemente do governo, pois permanentes, e mesmo em contextos excepcionais, pois regulares.

Essa primeira consideração já afasta, de pronto, qualquer interpretação que pretenda conferir às Forças Armadas um papel de moderador, apto a agir de ofício para intervir em quaisquer dos poderes a pretexto de garantir os poderes constitucionais ou a lei e a ordem.

A sistemática constitucional não editou um quarto poder, detentor de competência para moderar os conflitos entre Judiciário, Executivo e Legislativo. Ao invés disso, estabeleceu uma série de mecanismos de freios e contrapesos, que estabelecem controles recíprocos entre os poderes, capazes de equilibrar e impor limites a eventuais abusos por quaisquer deles.

Em casos de ameaças mais graves à estabilidade institucional, a própria Constituição previu a utilização de instrumentos excepcionais, como é o caso do estado de sítio e da intervenção federal, por meio de procedimentos e regras de competências que também são claramente estabelecidas pelo próprio texto constitucional.

Em nenhum desses mecanismos é dado às Forças Armadas atuar como uma instância decisória suprema localizada acima dos demais poderes, ou seja, como uma espécie de poder moderador. Ao contrário, as Forças Armadas estão integradas e vinculadas ao comando do seu chefe supremo, o presidente da República, que, por sua vez, tem o dever de respeito às leis e à própria Constituição [1]. Essa cadeia de comando não abre nenhum espaço para se alçar as Forças Armadas de cumpridoras da lei à condição de intérpretes e fiadoras da própria legalidade.

Além disso, tem sido dada interpretação equivocada à parte final do dispositivo, segundo o qual as Forças Armadas destinam-se à garantia da lei e da ordem, por iniciativa de qualquer dos poderes constitucionais. Esse trecho tem sido interpretado como legitimador da intervenção das Forças Armadas, no caso de um poder se sentir “atropelado” por outro, para que estas ajam como poder moderador para repor, pontualmente, a lei e a ordem.

Nesse ponto, a Constituição flexibiliza o comando que atribui ao presidente autoridade suprema sobre as corporações militares, possibilitando sua convocação pelos demais poderes, para a garantia da lei e da ordem. Não cabe às Forças Armadas agir de ofício, sem serem convocadas para esse fim. E mais: sua convocação para garantia da lei e da ordem não se dá jamais contra um dos poderes, mas sempre no sentido de conter conflitos numa situação de violência e instabilidade generalizada, para garantir a segurança pública e a proteção da vida e do patrimônio dos cidadãos.

Ademais, o emprego das Forças Armadas nas operações de garantia da lei e da ordem observa rígidos pressupostos estabelecidos pela legislação. Nesse sentido, a Lei Complementar 97/1999 exige: 1) o esgotamento dos instrumentos normais de preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio (artigo 15, §2º); 2) a demonstração de que os instrumentos precipuamente incumbidos da segurança pública se mostram inexistentes, indisponíveis ou insuficientes ao desempenho regular de sua missão (artigo 15, §3º); 3) a delimitação temporal e territorial da operação, que deve se ater à finalidade prevista (artigo 15, §4º).

Cabe ainda ressaltar que a distorcida interpretação do artigo 142, que admite a intervenção militar constitucional em defesa da separação dos poderes, também ocasionaria um paradoxo insolúvel, pois estaria, ela própria, ferindo o princípio que pretende proteger.

Nesse contexto, compreender que as Forças Armadas, inseridas na estrutura do Poder Executivo sob o comando do presidente da República, poderiam intervir nos Poderes Legislativo e Judiciário para a preservação das competências constitucionais estaria em evidente incompatibilidade com o artigo 2º, da Constituição, que dispõe sobre a separação dos poderes. Afinal, com isso, estabelecer-se-ia uma hierarquia implícita entre o Poder Executivo e os demais poderes quando da existência de conflitos referentes a suas esferas de atribuições.

Igualmente descabida é a interpretação de que, caso o abuso ou usurpação partissem do Poder Executivo, caberia aos comandantes das Forças Armadas o exercício do poder moderador. Primeiro porque, repita-se, as Forças Armadas estão submetidas à “autoridade suprema do presidente da República”, não podendo, em hipótese alguma, agir de ofício para intervir em quaisquer dos poderes. Segundo porque, ainda que se dissesse que, excepcionalmente, estas poderiam ser convocadas pelos demais poderes (conforme parte final do artigo 142), da mesma forma, estar-se-ia instituindo uma hierarquia entre os poderes, o que foi expressamente rechaçado pelo texto constitucional em seu artigo 2º, que estabelece a independência e a harmonia entre eles.

Destaque-se, ainda, decisão proferida pelo ministro Luiz Fux [2] em ação que questionava a interpretação dada a determinadas normas de que o ordenamento permitiria uma “eventual intervenção militar”. O ministro pontuou que a prerrogativa do presidente da República de autorizar emprego das Forças Armadas não pode ser exercida contra os próprios poderes entre si.

A decisão registrou também que “o emprego das Forças Armadas para a ‘garantia da lei e da ordem’, embora não se limite às hipóteses de intervenção federal, de estados de defesa e de estado sítio, presta-se ao excepcional enfrentamento de grave e concreta violação à segurança pública interna, em caráter subsidiário, após o esgotamento dos mecanismos ordinários e preferenciais de preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, mediante a atuação colaborativa das instituições estatais e sujeita ao controle permanente dos demais Poderes, na forma da Constituição e da lei”.

As Forças Armadas são compostas por órgãos de Estado, e não de governo, e estão “indiferentes às disputas que normalmente se desenvolvem no processo político”. A liderança do chefe do Executivo sobre o Exército, ressaltou o ministro, está relacionada apenas às balizas de hierarquia e de disciplina que envolvem a conduta militar. “Por óbvio, não se sobrepõe à separação e à harmonia entre os Poderes, cujo funcionamento livre e independente fundamenta a democracia constitucional, no âmbito da qual nenhuma autoridade está acima das demais ou fora do alcance da Constituição”.

Os integrantes das Forcas Armadas, em sua maioria compostas por estadistas e possuidores de alto preparo intelectual, bem sabem que é descabida e carente de fundamentação jurídica a interpretação que pretenda legitimar a sua intervenção para moderar conflitos entre os poderes. Em um contexto de intensa polarização política e de emergência de radicalismos, tal como se vive no Brasil, discursos que pretendam conferir à Carta Maior interpretação que contraria a própria ordem por ela fundada, baseada no regime democrático e na separação dos poderes, são falsos remédios para crises que sempre existiram. Não solucionam, mas, antes, aprofundam problemas econômicos e sociais atávicos na história brasileira e que, certamente, não se resolvem com menos democracia e com ruptura institucional. Esses discursos representam uma armadilha perigosa, que ameaça as conquistas e avanços obtidos sob a Constituição de 1988.

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Fonte: Conjur

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