Atlas mostra localização da dinâmica da criminalidade em São Paulo

Publicação do Núcleo de Estudos de Violência da USP se baseia em dados de boletins de ocorrências da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo e revela especificidades de assaltos e roubos.

Publicação mostra pluralidade das investigações sobre violência – Foto: Reprodução/NEV-USP

Os desafios para pesquisas quantitativas de criminalidade a partir do padrão espaço-temporal são temas de análise no Atlas da Dinâmica Criminal em São Paulo (SP): Roubos a Transeuntes e de Veículos, publicação no formato digital lançada pelo Núcleo de Estudos de Violência da USP (NEV) disponível neste link.

A cartografia da violência na capital paulista mostra como é possível aprimorar a inteligência policial e a gestão da segurança pública por meio de um minucioso levantamento da frequência de ocorrências dos crimes em determinadas regiões, seja pela mobilidade e perfil das vítimas, seja pela distribuição de equipamentos de segurança e linhas de transporte.

Atlas tem origem nos estudos sobre a qualidade do sistema Registro Digital de Ocorrências (RDO) da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo (SSP-SP), e o trabalho se baseia em dados de boletins de ocorrências provenientes deste sistema. O objetivo dos materiais é mostrar a pluralidade das investigações sobre violência, a heterogeneidade urbana, subnotificação dos casos, pesquisas de vitimização, a qualidade do endereçamento e o quadro desses tipo de ocorrências para o período de 2006 a 2017. A publicação também aborda a distribuição dos equipamentos de segurança, confiança e legitimidade em suas instituições e sistema penal brasileiro.

Beatriz Oliveira de Carvalho, organizadora da publicação – Foto: Divulgação/NEV-USP

O livro é resultado da pesquisa de iniciação científica de Beatriz Oliveira de Carvalho, estudante do quinto ano de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP que desenvolve estudos na área de Geografia da Violência, Criminalidade e Cartografia, com orientação do professor Sérgio França Adorno de Abreu e co-orientação de Marcelo Batista Nery, pesquisador do NEV, além de Rúbia Gomes Morato, professora de cartografia do Departamento de Geografia da FFLCH.

“Eu sinto que o trabalho do Atlas é uma contribuição fundamental não só para o desenvolvimento da pesquisa no campo da geografia e da sociologia urbana mas sobretudo para a formulação de políticas públicas mais consequentes, que sejam dotadas de eficiência, que possam contribuir para a redução de crimes, para reduzir a sensação de medo e insegurança, sem comprometer o Estado democrático de direito”, disse Sérgio Adorno, destacando a qualidade do estudo vindo de uma iniciação científica..

Exemplo de mapas disponíveis no Atlas da Dinâmica Criminal em São Paulo – Foto: Reprodução/NEV USP

Além de Beatriz, pesquisadores, professores, agentes e funcionários das áreas de segurança pública e cartografia também tecem comentários sobre a geografia da violência apresentada na publicação, que inclui ilustrações tão importantes para a compreensão dos temas quanto os textos analíticos.

Subnotificação, tecnologia, estereótipos e vitimização

Num estudo baseado em números estatísticos e documentos registrados, a questão da subnotificação também precisa ser analisada em detalhes. A socióloga Cristina Neme aponta alguns fatores a serem considerados. A partir da pesquisa de 2018, ela nota um aumento da notificação de crimes de roubo (à pessoa) para 46,3%, em comparação com as ondas anteriores, quando a notificação ficou em torno de 37%. No mesmo período, a notificação de roubo de veículos diminuiu cerca de 10%.

Neste caso, a baixa subnotificação de roubos de carros se deve à exigências das seguradoras, enquanto roubos a transeuntes envolvem um fator de desconfiança da eficácia policial para coibir ou apontar resultados satisfatórios para as vítimas.

O jornalista e sociólogo Bruno Paes Manso aponta como a inteligência policial precisa lidar de forma planejada a partir de estatísticas seguras, em vez de agir de forma reativa e ocasional.

“Nas últimas décadas, as autoridades tentaram lidar com o problema de forma atabalhoada, emocional e sem planejamento, como se travassem uma guerra contra o crime, apostando no policiamento ostensivo nos bairros pobres – tratados como territórios perigosos – e focando a ação em grupos considerados suspeitos – homens, jovens, negros e moradores desses locais”, observa Manso.

O matemático Luis Gustavo Nonato destaca a importância da segurança pública instrumentalizar-se para processar os dados ricos que as delegacias disponibilizam por meio de operações e boletins de ocorrência. “Entender a criminalidade e seus fatores é uma tarefa complexa, que demanda o uso de ferramentas capazes de processar grandes volumes de dados a fim de correlacionar informações e extrair padrões. Neste cenário, técnicas de visualização, ciência de dados e inteligência artificial têm trazido uma perspectiva inovadora para os pesquisadores e agentes encarregados da segurança pública, viabilizando novas formas de análise com base em evidências, as quais não eram possíveis até alguns anos atrás”.

Para Nonato, esse paradigma permite, por exemplo, a simulação de cenários e do impacto de possíveis intervenções antes mesmo que estas sejam implementadas na sociedade. “O emprego desse ferramental matemático e computacional tem dado subsídios para a confecção de políticas públicas de prevenção, permitindo que se evite um crime antes que ele aconteça”, avalia.

No mesmo sentido, a geógrafa Thais Bueno da Silva mostra como a inversão da estratégia de levantar perfis (preconceitos) de criminosos para perfis de vítimas, se mostrou relevante para a eficácia do combate às práticas criminosas.

Ela analisa como a prioridade de fomentar medidas que inibissem a ação de possíveis criminosos se mostrou ineficiente e acarretou no reforço de estereótipos sociais sobre pessoas e lugares. “Mais recentemente, uma outra abordagem do crime com foco nas vítimas passou a ser considerada. Nesses estudos de vitimização, o dia a dia dessas vítimas ganhou destaque na medida em que padrões nos seus cotidianos foram identificados e associados a padrões criminais”.

O sociólogo Tulio Kahn analisa os mapas considerando que os dados da Pesquisa Nacional de Vitimização (PNV) de 2012, com a faixa de renda da residência, dá um indicativo de que a sensação de insegurança varia conforme a renda: os mais ricos têm medo de serem sequestrados, terem seu veículo roubado ou ficarem em casa sozinhos, já os mais pobres, em comparação, têm medo de estar no meio de um tiroteio na vizinhança ou de sofrer violência por parte da polícia.

Ao observar os mapas, o geógrafo Wagner Batella, considera que a distribuição reitera o histórico de favorecimento de algumas populações, pois a maior presença de bens e serviços, nesse caso relacionados à segurança pública, tendem a se concentrar nas áreas centrais, geralmente marcadas por serem locais de residências das populações com maior renda.

A cartografia, no entanto, revela que regiões com alta concentração de transeuntes são mais atingidas por roubos, mesmo na periferia mais distante. São regiões consideradas centros comerciais das periferias, assim como áreas próximas a grandes fluxos de transporte coletivo. O mapa das linhas de trens e metrôs são reveladores do ambiente de maior circulação populacional, assim como de ocorrências de roubos.

A ocorrência de roubo de veículos, por outros lado, responde a uma dinâmica totalmente distinta. Sua frequência se dá nas bordas dos limites do município, onde vias expressas levam a municípios vizinhos. Este tipo de crime envolve também caminhões e suas cargas. As mesmas áreas de roubos a transeuntes mostram pouca ocorrência desses crimes contra motoristas.

Nota-se certo esvaziamento de equipamentos de segurança na Zona Sul e uma concentração menos densa na Zona Leste de São Paulo, regiões que padecem com problemas diversos de infraestrutura e vulnerabilidade.

O sociólogo Marcos César Alvarez conclui que muitas dimensões práticas e simbólicas parecem colaborar para a reprodução de uma sociedade com altos índices de violência, como a brasileira. Ele cita entre os fatores a brutal desigualdade econômica e de poder; as dinâmicas racistas profundamente arraigadas nas práticas e instituições; a violência de gênero apoiada em estereótipos machistas reproduzidos nos mais diversos estratos sociais; a construção política de discursos contrários aos direitos humanos e seus efeitos perversos nas percepções acerca dos conflitos sociais inerentes à vida democrática; e a resistência das instituições estatais a se submeterem ao controle da sociedade civil. “Estes são alguns dos fatores explicativos possíveis para se entender a permanência da violência na sociedade brasileira”, pontuou.

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