Após 5 anos – lembranças de um golpe que foi o ovo da serpente

A última terça-feira de agosto de 2021 marcou os 5 anos de um evento traumático da história brasileira. O 31 de agosto de 2016 foi o dia do afastamento definitivo de Dilma Rousseff da presidência da República, com o voto de 61 dos 81 senadores.

Cada um de nós tem lembranças particulares deste processo. Do dia “D” guardo, em realidade, poucas recordações além da admiração pela coragem e dignidade com que a presidenta enfrentou este momento.

A recordação mais viva para mim vem do 17 de abril, quando a Câmara dos Deputados aprovou a instalação do processo de impeachment e o consequente afastamento prévio da presidenta eleita. Era um domingo e lembro que na parte da tarde eu passei pela Vila Madalena, um dos bairros preferidos da burguesia paulista, repleto de bares.

Pois neste dia os bares fervilhavam de pessoas com camisas amarelas da CBF, acompanhando a sessão do Congresso que decidiria sobre a instalação do processo. Os partidários do golpe, em esmagadora maioria, agiam como quem assistia a um jogo de futebol: vibrando com os votos “contra a corrupção” proferidos por notórios corruptos e com os votos “pela família”, proferidos por notórios depravados. Esta “torcida”, por outro lado, vaiava estrepitosamente as posições em favor da legalidade.

O consórcio midiático-empresarial-judicial, promotor do golpe, que contou com forte apoio também das Forças Armadas e do imperialismo, havia, assim, atingido o ápice de sua estratégica. Mentes e corações de milhões de brasileiros foram ganhos para um discurso reacionário contra o PT e a esquerda. E a verdade é que boa parte do proletariado também apoiou entusiasticamente o afastamento ilegal de uma presidenta honesta, eleita legitimamente, em um golpe que levaria o país ao caos.

Nas rádios, jornais e tvs não havia comedimento: o tom era, 24 horas por dia, de uma aberta pregação ao ódio e à intolerância, partindo inclusive de muitos que hoje se espantam quando são alvos do ódio e da intolerância que ajudaram a semear.

Todo este clima assumia ainda mais virulência pois o alvo principal era uma mulher e o machismo, incubado, vinha à tona com todo tipo de insultos misóginos, matreiramente escondidos pela mídia hegemônica, que, nos atos massivos a favor do golpe só tinha olhos para ver o suposto lado ordeiro das manifestações “espontâneas”, que contavam com convocação e cobertura em tempo real pelas principais emissoras de TV, dezenas de trios elétricos e, em algumas cidades, como São Paulo, transporte gratuito com metrô liberado para os manifestantes. No entanto, o lado sombrio das manifestações não era, de modo nenhum, oculto. Era aberto, para quem quisesse ver. Cartazes pedindo intervenção militar abundavam, ao lado de bonecos de Dilma e Lula enforcados em postes e viadutos. Nada faltava neste show de horrores. Um dos cartazes chega a ser irônico hoje. O manifestante de direita escreveu: “Chega de genocídio – Intervenção militar já”. Outra defende: “Feminicídio sim”, uma terceira não pode ser acusada de desonestidade: “Luto pelo fim da democracia” (fotos ao final do artigo). Qual é, portanto, a surpresa de que a eleição de Bolsonaro tenha sido fruto disso?

As vozes que tentavam protestar sofriam uma avalanche contrária. No trabalho, nas ruas, na família, entre amigos.  TUDO era culpa da Dilma, do PT e da esquerda. Recordo que, certa vez, voltando para São Paulo, vindo do Rio, com a camisa do Vasco, um motorista de táxi disse que o problema do cruzmaltino eram os comunistas. Detalhe: na época o Vasco era dirigido pelo falecido Eurico Miranda, notório militante da direita, filiado há anos ao PP, pelo qual desempenhou mandato de deputado federal ao lado de Jair Bolsonaro.

É claro, havia muita gente lúcida e que advertiu sobre o que viria. Dilma, nos momentos finais do processo, se agigantou e seu épico discurso depois de consumada a vilania é premonitório. No entanto, mesmo nas mais funestas previsões, ninguém chegou perto do grau de destruição que o golpe acarretaria. Tudo piorou em todos os aspectos. Destruição dos direitos sociais, da soberania e da nossa frágil e limitada democracia, que hoje respira por aparelhos. Os números da carestia e do desemprego, que expressam parte da tragédia nacional, ao lado do ressurgimento da fome endêmica, dos pedintes e moradores de rua em quantidades nunca vistas, somam-se aos mais de 580 mil mortos por covid-19 graças à incúria de um governo assassino, formando um quadro tétrico de um país em desalento. Uma triste ironia é que muitos dos pequeno-burgueses que ostentaram camisas da CBF nos atos pró-golpe, foram duramente atingidos por suas consequências.

No entanto, ressurge a consciência nacional. Aos poucos, um número cada vez maior de pessoas afasta-se do discurso que embalou o golpe. A realidade é didática, porém o aprendizado é lento e preconceitos demoram a morrer. Para acelerar este processo é preciso cada vez mais presença militante no cotidiano das massas, em um trabalho paciente e constante. O Brasil tem pressa. Cada dia com Bolsonaro na presidência representa uma destruição que custará muito para superar.

Ao lado de tudo isso, sem deixar que o passado seja o fio condutor das ações dos tempos atuais, que trazem sempre novas contradições, exigindo novas respostas, não podemos deixar cair no esquecimento o que foi o golpe de 2016 e de extrair as lições necessárias, para que este lamentável episódio seja relegado, no futuro, a objeto de estudo sobre um momento infeliz – e escabroso – da política nacional.

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