USP arquiva representação de Aras contra professor de direito

Parecer alerta para o risco “de que altas autoridades da República busquem valer-se das instâncias universitárias para contemplar interesses e demandas estranhos a estas”.

Foto: José Cruz/Agência Brasil

O procurador-geral da República, Augusto Aras, apresentou uma queixa-crime por calúnia, injúria e difamação contra Conrado Hübner Mendes, professor de Direito da USP. A Comissão de Ética da USP anunciou arquivamento da representação feita em maio. A Justiça Federal do Distrito Federal decidirá se abre ou não um processo criminal contra Hübner.

A defesa de Aras afirma que o professor cometeu crimes contra a honra do PGR em uma série de postagens no Twitter e um artigo no jornal Folha de S.Paulo, publicados em janeiro deste ano. Nos textos, Hübner acusa Aras de omissão diante de atos e falas do presidente Jair Bolsonaro com relação à pandemia da covid-19, entre outras críticas.

O professor chamou Aras de “servo do presidente” e “Poste Geral da República”, entre outros termos. “O Poste Geral da República é um grande fiador de tudo que está acontecendo. Sobretudo da neutralização do controle do MS [Ministério da Saúde] na pandemia. É gravíssima a omissão e desfaçatez de Aras”, escreveu Hübner, que leciona direito constitucional, no dia 15 de janeiro.

Segundo a defesa de Aras, os textos ultrapassaram o limite da liberdade de expressão. “E conquanto o agente público seja obrigado a conviver – e até mesmo a tolerar em maior demasia que o particular – com a crítica, mesmo que ácida, da imprensa e dos cidadãos em geral, ninguém está obrigado a admitir ser vítima impotente de injúria, calúnia e difamação, pois nesse ponto divisor a liberdade de informar se converte em abuso e o abuso não é direito, é ilícito”, afirma um trecho da queixa-crime.

Leia na íntegra a manifestação da Comissão de Ética da USP:

Histórico

A Comissão de Ética da Universidade de São Paulo recebeu no dia 10 de agosto de 2021, por correio eletrônico, a representação formulada pelo sr. Antônio Augusto Brandão Aras, Procurador Geral da República, contra o prof. dr. Conrado Hubner Mendes, da Faculdade de Direito da USP, enviada diretamente à Comissão pelos procuradores do referido professor, dra. Juliana Vieira dos Santos e dr. Belisário dos Santos Jr., para “conhecimento e providências”, assim como para a sua “pronta análise”. No dia 20 de agosto, também por e-mail, a mesma documentação chegou à Comissão de Ética, desta vez enviada pela Reitoria da Universidade de São Paulo.

O conteúdo da representação diz respeito à “apuração de violação ética” pelo professor em função de suas manifestações em artigos em sua coluna da Folha de S. Paulo e em sua conta no Twitter. Datado de 3 de maio de 2021, o documento foi assinado e encaminhado à Reitoria da USP e ao seu reitor, prof. dr. Vahan Agopyan, pelos advogados do representante, Airton Rocha Nóbrega e Roberta Reis Nóbrega, solicitando-se, ao final, a sua submissão à Comissão de Ética da Universidade para apuração dos fatos e eventuais providências. Observa-se que a representação não foi encaminhada na ocasião à Comissão de Ética, que só agora é solicitada a se manifestar a seu respeito, por iniciativa do Representado e da Reitoria da Universidade de São Paulo.

Parecer

Após analisados e discutidos os termos e o conteúdo da representação, a Comissão de Ética considera necessários os seguintes esclarecimentos. Em primeiro lugar, nunca é demais lembrar que toda figura pública está sujeita a escrutínio e críticas em função de suas posições e atividades. Em segundo, não compete à referida Comissão julgar crimes de prevaricação, de calúnia, injúria e difamação, nem aqueles relativos à ofensa da honra, expressamente mencionados na Representação. Em terceiro, e relacionado ao ponto anterior, cabe, isto sim, à Comissão, com base em seu Código de Ética aprovado em 2001, “nortear as relações humanas no interior de uma universidade”, orientada por documentos de consenso universal como a Declaração dos Direitos Humanos (1948) e pelos “princípios indissociáveis aprovados pela Associação Internacional de Universidades, convocada pela Unesco, em 1950 e 1998”. Quais sejam (e de acordo com os termos do código):

1) o direito de buscar conhecimento por si mesmo e de persegui-lo até onde a procura da verdade possa conduzir;
2) a tolerância em relação a opiniões divergentes e a liberdade em face de qualquer interferência política;
3) a obrigação, enquanto instituição social, de promover, mediante o ensino e a pesquisa, os princípios de liberdade e justiça, dignidade humana e solidariedade, e de desenvolver ajuda mútua, material e moral, em nível internacional.

Em terceiro lugar, há que assinalar que a Comissão e seu Código de Ética têm como diretriz maior a autonomia universitária, direito assegurado pela Constituição Federal de 1988, que garante às universidades poderem cumprir, de modo autônomo e independente, a sua finalidade e vocação primeiras, que incluem a liberdade cátedra e de pesquisa; a liberdade de expressão, de
pensamento, crítica e opinião.

A análise dos artigos e pronunciamentos do referido professor, citados na Representação, indica que a atuação do prof. dr. Conrado Hubner Mendes no debate público se coaduna às suas competências como pesquisador, especialista no âmbito do Direito Constitucional, das Teorias da Democracia e da Justiça, que incluem a análise e averiguação das decisões do Ministério Público contra o interesse público; todas estas são matérias de suas teses e publicações acadêmicas, que repercutem em suas atividades de extensão universitária, valorizadas e incentivadas pela universidade.

A Comissão de Ética, por oportuno, alerta o conjunto da comunidade universitária para o risco de que altas autoridades da República busquem valer-se das instâncias universitárias para contemplar interesses e demandas estranhos a estas, especialmente o de coibir críticas fundamentadas e legítimas que constituem tanto dever quanto direito de todo e qualquer cidadão, em especial de um professor universitário.

Pelo exposto, a Comissão de Ética considera estar diante de debates públicos que, como tais, garantem o direito à resposta pública e para os quais não se aplicam penalizações de natureza ética. Nesse sentido delibera pelo indeferimento da representação e pelo seu pronto arquivamento.

Parecer aprovado pela Comissão de Ética da USP, em reunião realizada em 30 de agosto de 2021.

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