Os discursos na ONU e os ataques a normas jurídicas

Apesar de mais moderado que o discurso do 7 de setembro, a fala nas Nações Unidas tem o mesmo objetivo, buscando criar ambiente para demonizar as saídas coletivas, negociadas, baseadas em normas jurídicas e na ciência. O mandatário brasileiro demonstra que, se puder, fará o caminho do retrocesso e da violação a conquistas civilizatórias.

A Assembleia Geral da ONU esvaziada

Em 2001, o mundo ficou mais triste. Um crime cometido por terroristas covardes tirou a vida de milhares de pessoas, afetando o futuro das famílias das vítimas e de todo o mundo. O impacto sofrido pela maior potência do planeta podia ser sentido em todos os cantos da Terra. As vidas perdidas são irreparáveis.  As histórias que poderiam ter sido, a mãe que poderia abraçar seus filhos, a neta que poderia ir visitar os avós, o irmão que poderia ter aparecido de surpresa, os amores, as brigas, as conversas, tudo que poderia ter acontecido envolvendo as vítimas e não aconteceu, porque a tragédia se abateu sobre elas. O que aconteceu em 11 de setembro de 2001 foi uma violência, um ataque pensado por mentes que não se importaram com vidas, com histórias, com a humanidade.

A reação dos EUA era esperada e, assim, veio o ataque com invasão ao Afeganistão, amparada pelo direito internacional, porém, os passos seguintes nem sempre se preocuparam com as normas jurídicas. Comandando um arsenal que se alicerçava em bilhões de dólares, o governo americano passou do ponto, criou prisões ilegais, como é o caso de Guantánamo, permitiu tortura, como aconteceu em Abu Ghraib, alongou a sua presença e, mais recentemente, perdoou, entre outros, o primeiro-tenente Clint Lorance e o major Mathew Golsteyn, ambos condenados por cometimento de crimes contra civis no Afeganistão.

A guerra ao terror foi descrita, em 2008, por Steven T. Wax, como um cenário injusto para se lutar pela aplicação do direito nos EUA, batizando seu livro com o significativo título de “Kafka Comes to America” (Ed. Other Press, NY, 2008). Ao afastar o direito do centro de suas decisões e, portanto, de suas ações, os EUA entraram num labirinto sem fim que levou o Talibã de volta ao poder no Afeganistão em 2021, fortaleceu seus rivais internacionais e instalou no seu território um conjunto de ações de retrocesso de direitos para as mulheres, como a lei aprovada no Texas em agosto de 2021, que, assim como as ações de extremistas, ataca direitos de minorias conquistados depois de longo debate democrático, ao estabelecer a regra do “heart beat” e permitir a atuação de particulares nessa violação.

Discursos atraentes angariaram apoiadores que, inebriados pela suposta luta por mais segurança, no caso das ações internacionais, também foram iludidos pela proteção à família e a valores conservadores, no caso da atuação interna contra direitos historicamente conquistados por minorias. A fórmula para afastar as normas e regulações jurídicas parecia pronta, tendo como principal ingrediente um pretenso objetivo maior que poderia unir apoiadores.

Quem olhar para tais fatos, com distanciamento temporal, como costuma fazer um historiador, poderá perceber que a malfadada Guerra ao Terror é, na verdade, uma desculpa para afastar normas jurídicas, diminuir o espaço do direito e, como feito no ato patriota do governo Bush, permitir que tortura seja entendida como investigação, prisão sem acusação seja vista como possível e violação a direito seja tida como esperada, tudo para combater o terror. A partir desse ponto, muitas outras desculpas foram criadas para afastar o direito, nem sempre com um fato tão grave quanto o ataque às torres gêmeas. Por exemplo, o Brexit teve campanha contra o direito, especialmente o migratório, para supostamente se protegerem as tradições britânicas. Os acordos entre Berlusconi e Gaddafi, no final de 2008, foram tidos como possíveis afastando normas de direito internacional humanitário. A quebra do devido processo legal no Brasil foi tida como válida para se combater a corrupção. E, mais recentemente, tenta-se inserir preceitos religiosos à norma jurídica para impedir avanços de direitos de grupos minoritários que, segundo seus disseminadores, seriam responsáveis por ataques à tradição e à família.

Todavia, o final da caminhada desacompanhada do direito tem se mostrado uma perda de tempo, além de ser ladeada por violações às normas jurídicas. Pode-se falar do já citado retorno do Talibã, porém, não fica por aí, a anulação de processos penais, o enfraquecimento de instituições e, principalmente, a disseminação da sensação de que se podem resolver problemas sem a utilização das formas legais de solução de controvérsias, o que resulta em dano social e em retrocesso. A construção de instituições para aplicação das normas jurídicas e para fortalecimento das saídas não violentas para conflitos é uma conquista da humanidade e não pode ser negligenciada.

Os discursos públicos do Presidente da República do Brasil, no dia 7 de setembro de 2021, seguem a saída não amparada no direito e nas instituições. Na tentativa de encontrar uma desculpa para amparar suas ações violadoras do direito, o mandatário brasileiro tenta criar a desculpa segundo a qual ele estaria lutando contra o sistema, contra os poderosos, contra as ideias não religiosas, e, por conta dessas desculpas todas, ele precisa afastar o direito, o Poder Judiciário e outros tantos que o atrapalhariam em sua cruzada. Nada mais errado e falacioso.

Os 20 últimos anos mostram claramente que a escolha de afastar o direito com base numa desculpa não é válida nem mesmo quando a desculpa é fundada em fato lamentável e, também, responsável por ferir as normas jurídicas. Esses anos indicam que a saída possível é por meio do direito. Sem o direito sabemos que não se avança e, a depender da desculpa, pode-se retroceder.

Em seu discurso na ONU, em 21 de setembro, o Presidente Bolsonaro repetiu inverdades trazidas em falas anteriores na organização. Apesar de mais moderado que o discurso do 7 de setembro, a fala nas Nações Unidas tem o mesmo objetivo, buscando criar ambiente para demonizar as saídas coletivas, negociadas, baseadas em normas jurídicas e na ciência. O mandatário brasileiro demonstra que, se puder, fará o caminho do retrocesso e da violação a conquistas civilizatórias.

Infelizmente, não é de se espantar que o mundo da atividade econômica tenha se dobrado para os mesmos argumentos. A malfadada lei da liberdade econômica (Lei 13.874/2019) faz o transplante dessas ideias ao mundo das atividades reguladas, especialmente ao tentar mudar a Constituição Federal por texto infraconstitucional (art. 1º, § 2º) e ao trazer a inusitada expressão “abuso do poder regulatório” (art. 4º). Tal lei indica que os retrocessos podem não se restringir ao direito das minorias, mas pode se espalhar por várias conquistas que a nossa república conquistou no período democrático, inaugurado pela Constituição de 1988. As revelações de contas em paraísos fiscais, que foram feitas por meio do chamado Pandora Papers, podem indicar o motivo pelo qual o direito e a transparência incomodam a determinados grupos. A violação sistemática ao direito e os ataques a instituições se mostram claramente um caminho para abertura de uma enorme caixa de pandora.

Que as consequências das ações pós 11 de setembro de 2001 nos ensinem a tomar melhores decisões para evitar discursos iguais a esse na Assembleia Geral e, especialmente para nós, nas falas presidenciais do dia 7 de setembro de 2021, que como país merecemos comemorar por muito tempo. Nossa Constituição, que comemorou 33 anos, em 5 de outubro de 2021, indica-nos o caminho, que pode ser árduo, mas é o melhor para evitarmos retrocessos e, acima de tudo, é fruto de uma ação negociada e coletiva, mas que não convive bem com paraísos, muito menos os fiscais.

Luís Renato Vedovato é professor da Unicamp. Pesquisador do Projeto de Pesquisa sobre Abordagem Consensual da Pobreza (Unicamp e Cardiff University), autor do livro “O Van Gogh Esquecido” (2020)

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Do Jornal da Unicamp