Portugal: Proposta de orçamento não passa e país deve ter nova eleição

A proposta de Orçamento do Estado (OE) para o próximo ano foi derrotada nesta quarta-feira (27) no Parlamento português por todos os partidos, à exceção do Partido Socialista (situação), que votou a favor, e do Partido das Pessoas, dos Animais e da Natureza (PAN), que se absteve. É provável que o país tenha eleições antecipadas.

Ao centro o primeiro-ministro António Costa e membros do gabinete / Foto: João Relvas - Agência Lusa

O primeiro-ministro, António Costa (PS), já adiantou que não pede demissão e aceita governar no regime de duodécimo, ou seja, em janeiro de 2022 ele deve gastar exatamente o que gastou em janeiro de 2021 ou menos, e assim sucessivamente nos meses seguintes.

Porém, de acordo com as regras do parlamentarismo português, cabe ao presidente da República, o conservador Marcelo Rebelo de Sousa, determinar a continuidade do governo no regime de duodécimo ou dissolver a Assembleia da República (e em consequência dissolver o próprio governo) e convocar eleições antecipadas, o que, aliás, ele já havia adiantado que faria caso a proposta de orçamento para 2022 não fosse aprovada. Enquanto o presidente não oficializar a dissolução da AR, tanto o governo quanto o parlamento permanecem em função.

A reprovação não foi uma surpresa, seja pelos anúncios dos votos que se foram sucedendo, seja pelas críticas que o documento mereceu, designadamente por parte dos trabalhadores da Administração Pública, que recusaram o “aumento” de 0,9% proposto para o próximo ano, ou das pequenas e médias empresas.

Ao longo destes dois dias de debate da proposta de Orçamento no Parlamento, Governo e PS por diversas vezes reivindicaram as propostas que resultaram da intervenção do Partido Comunista Português (PCP), como a gratuidade das creches e o aumento dos pensionistas a partir de janeiro, ao mesmo tempo que foram agitando ameaças relativamente a um cenário de eleições antecipadas.

Enquanto isso, à esquerda do plenário os partidos invocaram as propostas que o Executivo não quis inscrever no documento para vencer os problemas que o País vive, e aos quais, dizia nesta segunda-feira Jerónimo de Sousa, secretário-geral do PCP, “há condições e meios” para responder.

Ao longo da discussão não ficamos fixados a reivindicar o tudo ou nada, o tudo já ou nunca mais. Fizemos até ao limite das nossas possibilidades um esforço sério para que se encontrassem as soluções necessárias”, afirmou João Oliveira, líder da bancada comunista, salientando que, em relação ao salário mínimo, ter admitido a possibilidade “de começar o ano de 2022 com um valor de 755, chegando aos 800 no final do ano”.

João Oliveira admitiu que a falta de resposta “revela a opção feita pelo Governo”, que o Partido da Esquerda Verde (PEV), pela voz da deputada Mariana Silva, criticou pelas “contas certas com a União Europeia para continuar a adiar as soluções necessárias” para o País.

Pela bancada do Bloco de Esquerda (BE), Catarina Martins admitiu que o investimento previsto para a saúde e previdência na proposta de OE é “anêmico” e “não trava a deterioração do Serviço Nacional de Saúde nem a perda de poder de compra para a generalidade dos salários e pensões”, sublinhando que se repetem para 2022 promessas de anos anteriores.

Na expectativa de ver o documento aprovado, Ana Catarina Mendes, líder parlamentar do PS, reivindicou que o PS “faz políticas à esquerda”, apesar da rejeição da revogação da caducidade das convenções coletivas de trabalho, da opção pela política de baixos salários, como se viu na recusa em ir além dos 705 euros de salário mínimo nacional no próximo ano ou nas alterações propostas no plano fiscal, que não atingiam a maioria dos trabalhadores, nem introduziam justiça social.

Ainda assim, a encerrar o debate, em que a direita ora atirou farpas, ora se regozijou pela “oportunidade” de um eventual cenário de eleições, o primeiro-ministro criticou os partidos pelo fato de se oporem ao que apelidou de “mais ambiciosa agenda sobre o trabalho”.

Consumada a reprovação do OE, a decisão de dissolver ou não a Assembleia da República cabe agora a Marcelo Rebelo de Sousa.

A intervenção do PCP

Leia abaixo, na grafia original de Portugal, a intervenção do líder do Partido Comunista Português (PCP), João Oliveira, ao encaminhar o voto contrário do partido ao Orçamento. Se preferir, assista ao vídeo com a íntegra do discurso.

Senhor Presidente,

Senhoras e senhores Deputados,

Senhor Primeiro-Ministro e demais membros do Governo

Fizemos este debate do Orçamento da mesma forma e com os mesmos objectivos com que durante os últimos meses o discutimos com o Governo.

Conhecemos as dificuldades que o País atravessa, conhecemos as dificuldades do nosso povo e os problemas que enfrenta no dia-a-dia e sabemos que há soluções e possibilidades de as concretizar, houvesse vontade política para isso.

É pela resposta global aos problemas nacionais que nos batemos e foi em função das soluções para a alcançar que interviemos decididamente.

Recusámos e recusaremos substituir esse debate por um guião de passa culpas para ver quem é mais ou menos responsável pelo desfecho da votação deste Orçamento. Isso pode até render um bom guião para as disputas eleitorais em 2023 mas não é isso que resolve os problemas do povo e do País.

Na luta pelo aumento geral dos salários e pela revogação da caducidade da contratação colectiva, na luta pelo reforço e em defesa do SNS e de outros serviços públicos, na luta pelo aumento das pensões e pelas creches gratuitas, pelo direito à habitação, por mais justiça fiscal, pelo controlo público de empresas e sectores estratégicos, pela dinamização da nossa economia e pelo apoio às MPME e em tantas outras matérias, batemo-nos por essas soluções tão necessárias quanto possíveis e inadiáveis.

Sim, soluções necessárias, possíveis e inadiáveis.

Mesmo aqueles que duvidassem da sua possibilidade têm hoje clara a ideia de que, no momento em que tantos milhões são anunciados, o País dispõe de condições que lhe permitem concretizar as soluções de que necessita.

Ao longo da discussão não ficámos fixados a reivindicar o tudo ou nada, o tudo já ou nunca mais. Fizemos até ao limite das nossas possibilidades um esforço sério para que se encontrassem as soluções necessárias.

Partimos de uma proposta de aumento do Salário Mínimo Nacional para 850 euros no curto prazo mas admitimos a possibilidade de começar o ano de 2022 com um valor de 755, chegando aos 800 no final do ano.

Defendemos a revogação da caducidade da contratação colectiva mas admitimos que se avançasse, por agora, com a sua suspensão sem prazo.

Partimos de uma proposta de aumento geral das pensões em 1,8% com um mínimo de 10 euros e da gratuitidade das creches para todas as crianças em 2022 mas admitimos fazer a discussão considerando as propostas entretanto adiantadas pelo Governo para cada uma dessas matérias.

Em nenhuma matéria houve, da parte do PCP, intransigência, inflexibilidade ou recusa de discussão.

Mas não estava nas nossas mãos dar a resposta que só o Governo podia dar.

Esteve nas mãos do Governo, ainda nos últimos dias, dar a resposta que faltava para que se pudesse prosseguir a discussão sobre o conjunto das decisões a tomar. Ao longo do debate fizemos esse desafio repetidamente.

A falta dessa resposta revela a opção feita pelo Governo. Essa falta de resposta pesa obviamente no destino desta proposta de Orçamento mas fica sobretudo a pesar na reflexão que teremos de fazer sobre as condições que é preciso criar para que os problemas nacionais possam ser resolvidos. Porque com esta proposta de Orçamento ou sem ela, os problemas continuam cá para resolver e o País a necessitar da sua solução.

O exemplo das medidas dirigidas ao SNS é talvez aquele em que se torna mais difícil compreender a opção do Governo.

Quando tratamos do SNS estamos a tratar de medidas urgentes que salvem o serviço público do assalto que lhe estão a fazer os grupos económicos da doença que procuram, médico a médico, serviço a serviço, desmantelar o SNS e liquidar a sua capacidade de resposta.

Estamos a falar de medidas que evitem que este assalto tenha, a curto prazo, um tremendo impacto negativo que em alguns casos já se faz sentir.

O PCP defendeu soluções para a contratação e fixação de profissionais, para a valorização, integração adequada e progressão nas carreiras de todos os profissionais de saúde, para a concretização de um regime de dedicação exclusiva, para a autonomia das unidades de saúde na contratação de trabalhadores e na realização de investimentos, para a melhoria do acesso dos utentes a consultas, tratamentos, exames e cirurgias, para o reforço do investimento em edifícios e equipamentos.

Nos objectivos que afirmava, o Governo dava a indicação de estar de acordo com o PCP, de partilhar essas preocupações e até de ter em consideração a solução de alguns dos problemas para os quais o PCP há anos vem alertando.

Faltando então verificar quais eram os compromissos concretos do Governo para que essas medidas pudessem começar a ser aplicadas a partir de 1 de janeiro, a resposta que tivemos foram formulações de promessas de regulamentação até Março de 2022. E todos sabemos o que significam as promessas de regulamentação futura, com o incumprimento dos prazos, os adiamentos, a limitação do alcance daquilo que é regulamentado.

Ao longo do debate, Governo e PS insistiram em repetir a lista de propostas e compromissos assumidos em resultado da intervenção do PCP.

Senhoras e senhores membros do Governo e senhoras e senhores Deputados do PS, nós sabemos bem o valor dessas propostas.

Foi por sabermos bem o valor de cada uma que nos batemos por elas. O que não pode nem deve ser feito é desvalorizar cada uma, considerando-a isoladamente e de forma desarticulada do conjunto de soluções para os problemas nacionais.

O resultado dessa desvalorização por consideração avulso é óbvio se olharmos exemplos concretos das suas consequências.

Alguns pensionistas teriam um aumento de 10 euros que até hoje nunca tiveram mas continuariam à mercê do aumento das rendas de casa ou dos custos com a saúde porque o Governo não quis considerar a resposta aos problemas da habitação ou do SNS.

As creches gratuitas poderiam ter novos elementos de avanço mas a falta de vagas continuaria a ser uma chaga na vida das famílias porque o Governo não quer avançar com a criação de uma rede pública de creches assumida como tal.

E os pais das crianças que ainda assim conseguissem uma vaga numa creche continuariam a ter de lidar com a precariedade laboral, a desregulação de horários de trabalho, as dificuldades no acesso à habitação porque também nessas matérias o Governo não quis assumir compromissos.

Quando o PCP defende uma resposta global aos problemas nacionais em que o Orçamento deve inserir-se é mesmo disso que estamos a falar. De uma resposta global que identifique os problemas e procure responder-lhes, numa visão de conjunto e não numa lista da qual possam ser destacadas algumas medidas isoladamente, sobretudo quando essa lógica de consideração avulso tem como consequência o sentimento das pessoas de que se está a dar com uma mão e a tirar com a outra.

Senhor Presidente,

Senhoras e senhores Deputados,

Senhor Primeiro-Ministro e demais membros do Governo

Os trabalhadores e o povo português têm na intervenção do PCP neste debate elementos que, em qualquer circunstância, com ou sem Orçamento aprovado, serviriam e servirão no futuro de referência para a construção da resposta aos problemas nacionais.

Há soluções e o PCP bate-se por elas. E era isso que devíamos ter alcançado no debate deste Orçamento.

Não tendo havido da parte do Governo resposta que desse garantias de haver essa resposta global defendida pelo PCP, não pode ser pedido ao PCP que abandone a sua luta e os trabalhadores e o povo à sua sorte.

Se a expressão concreta que a nossa intervenção assume é hoje mais exigente do que foi no passado é porque a situação do País é ela própria mais exigente, é porque muitos dos problemas se avolumaram em consequência da recusa pelo Governo de soluções que há muito poderiam estar concretizadas.

Continuaremos a colocar na primeira linha de prioridade a política alternativa que defendemos com as soluções concretas que a concretizam.

Continuaremos do lado certo da luta, ao lado dos trabalhadores e do povo porque é com eles e com a defesa dos seus direitos e interesses o nosso primeiro e principal compromisso.

Disse.

Com informações do site AbrilAbril, pcp.pt e agências