José Luís Fiori: os quatro desafios da China a mundo eurocêntrico
Para economista, Estados Unidos, China e Rússia já formam “o novo núcleo central da geopolítica mundial do século 21”
Publicado 05/11/2021 12:12 | Editado 05/11/2021 16:17
O economista e professor José Luís Fiori acredita que a Europa perdeu sua “posição de grande potência”, de modo que Estados Unidos, China e Rússia já formam “o novo núcleo central da geopolítica mundial do século 21”. Em entrevista à Margem Esquerda, Fiori destaca especialmente o papel da China nessa nova ordem mundial.
“Não há dúvida de que a grande incógnita que desafia hoje a imaginação dos analistas é que relação se estabelecerá entre China e EUA, ou mais amplamente, entre a China e as grandes potências ocidentais”, afirma. Segundo ele, mais do que “dois grandes Estados nacionais e duas grandes economias”, trata-se de “dois grandes universos civilizatórios”.
“A China não tem hoje a capacidade, nem o objetivo de substituir os EUA como grande império militar global. No entanto, a China já é hoje uma potência econômica global e é um parceiro comercial e financeiro indispensável para todos os países do mundo”, analisa. “Ao mesmo tempo, os EUA não têm mais como excluí-los da economia capitalista e, por isso, terão que conviver e competir com a China segundo as mesmas regras que utilizaram até hoje para impor sua própria supremacia econômica mundial.”
Fiori lembra que os investimentos chineses em infraestrutura, via Belt Road, devem beneficiar 65 países. “E isto é talvez o que mais assusta os anglo-americanos que dominaram o mundo nos últimos 300 anos: a rapidez e eficiência com que a China vem reproduzindo seus velhos caminhos, mas utilizando-se de uma diplomacia inteiramente diferente”, diz ele.
E o país asiático ainda exibe um trunfo: “os chineses não têm nenhum tipo de bandeira religiosa, nem demonstram nenhum tipo de interesse de converter o mundo ocidental aos seus ideais confucianos. Pelo contrário, professam um profundo desprezo pela incapacidade ocidental de compreender sua civilização”. Por isso, agrega Fiori, o sucesso da China lança quatro “questões ou desafios quase incompreensíveis para a arrogância ocidental e para o fundamentalismo judaico-cristão”:
- “Do ponto de vista chinês, o Estado não está a serviço do desenvolvimento capitalista; pelo contrário, é o desenvolvimento capitalista e o próprio Estado chinês que estão a serviço de uma civilização milenar que já se considera o pináculo da história humana.”
- “Para os chineses, a democracia ocidental é apenas um fenômeno datado e circunscrito do ponto de vista temporal e territorial. E, portanto, não só não é inevitável, como pode entrar em crise e ser superada ou abandonada muito antes que os ocidentais possam acreditar.”
- “A China não parece estar se propondo como um modelo alternativo, mas não há dúvida de que seu sucesso econômico, tecnológico e militar, quando comparado ao dos demais países, transforma-a, inevitavelmente, numa referência para a periferia atrasada do resto do mundo.”
- “Por fim, o ingresso do ‘Estado-civilização’ chinês no sistema interestatal capitalista deixa uma pergunta sem resposta no horizonte deste século 21: a China se submeterá inteiramente ao sistema de Westfália, ou será Westfália que terá que se adaptar ao sistema “hierárquico-tributário” milenar do mundo sinocêntrico?”
Fiori conclui: “Não seria um total absurdo imaginar um futuro em que o mundo eurocêntrico acabasse abandonando aos poucos suas convicções “westfalianas”, aceitando cada vez mais o modelo “hierárquico-tributário” chinês – e, neste caso, que o sistema mundial acabasse adotando no futuro a forma de dois ou três grandes ‘impérios do meio’, com algumas réplicas inferiores”.