“Há racismo no Brasil?”, por José Carlos Ruy

Nos marcos da celebração do Mês da Consciência Negra, o Vermelho está publicando em partes a obra póstuma de Ruy, que é inédita.

Leia a seguir o ensaio “Há racismo no Brasil?”, primeiro capítulo do livro homônimo do escritor e jornalista José Carlos Ruy (1950-2021). Nos marcos da celebração do Mês da Consciência Negra, o Vermelho divulga a obra póstuma de Ruy, que é inédita. Será publicado um capítulo do livro por dia entre 20 e 30 de novembro. Confira.

Cap 1 – Há racismo no Brasil?

Embora haja consenso sobre a gravidade da opressão sofrida por negros e outros segmentos não brancos da população brasileira, há quem a encare como resultado apenas do domínio de classe, da pobreza e da falta de preparo cultural e educacional – que impediriam o acesso dessa população a níveis mais elevados de renda e bem-estar – reduzindo ou negando a importância do racismo.

Muitas vezes essa avaliação resulta da comparação entre a situação brasileira e a de outros países onde existem conflitos raciais e étnicos explícitos. Mas é preciso analisar o assunto com mais cuidado, lembrando o alerta feito por Marx de que toda ciência seria desnecessária se houvesse coincidência entre essência e aparência.

O racismo, em todos os lugares onde ocorre sempre tem como base a crença de que alguns grupos humanos seriam superiores e destinados ao domínio, enquanto outros seriam inferiores e destinados a servir àqueles em consequência de características físicas (pele, cabelo, olhos, nariz, formato do crânio etc) ou culturais (religião, língua etc).

Contudo, embora esteja baseado neste fundamento comum, o racismo manifesta-se de maneira diferente de lugar para lugar, época para época, condicionado pelas circunstâncias históricas concretas da trajetória de cada povo ou país.

Em todos os lugares o racismo parte daquela base comum para legitimar ou justificar a desigualdade e a opressão. A valorização maior ou menor das diferenças étnicas, físicas ou culturais, e a construção de sistemas sociais onde elas têm papel fundamental e determinante na legitimação do domínio de um grupo de homens sobre a maioria não decorre somente da cultura ou da psicologia de um povo mas das condições concretas de sua evolução histórica e social que, elas sim, estão na base da formação das características nacionais e, no caso do racismo, de suas singularidades em cada lugar.

Só o exame concreto da questão racial no Brasil pode revelar as singularidades do racismo brasileiro, que é diferente do racismo norte-americano, por exemplo, ou do sul africano, ou o de qualquer outro lugar, cada um deles com suas singularidades.

Entre as características próprias do racismo brasileiro, pode-se destacar a afirmação de que, aqui, não há racismo porque o negro conhece o seu lugar – expressão que revela um traço fundamental dessa realidade cruel que é a discriminação racial.

No Brasil, o racismo, após a Abolição, nunca levou a um sistema legal de segregação racial, como ocorreu nos EUA ou na África do Sul, determinando pela lei, a negros e mestiços, lugares próprios em locais públicos ou proibindo seu acesso a escolas e outros locais frequentados por brancos etc.

No Brasil uma legislação segregacionista não foi necessária porque a ordem social segregadora está introjetada em cada pessoa, levando-a a aceitar como natural uma separação que indica a cada um o seu lugar e que, por isso, não precisa ser explicitada através da lei.

Naturalidade ainda não banida de todo e que reaparece toda vez que a presença de um ser humano de pele escura em um ambiente de brancos provoque estranheza e mesmo manifestações de hostilidade aberta.

Outro traço do racismo brasileiro é que ele é de marca, não de origem, expressões usadas para descrevê-lo pelo professor Oracy Nogueira. Isto é, se uma pessoa tiver a pele clara e outros traços físicos de branco, ela pode ser considerada branca, ao contrário do que ocorre, por exemplo, nos Estados Unidos onde o que conta é a origem: uma pessoa que tenha até um oitavo de sangue negro (isto é, um negro entre seus bisavôs) é considerada negra mesmo que apresente traços físicos de branco.

A forma brasileira de tratar a questão não é melhor nem pior, mas é igualmente racista. Ela resulta da experiência histórica do contato entre europeus (portugueses), indígenas e africanos em nosso país, e está na base da valorização do branqueamento, sonho explícito da classe dominante, muito fortalecido na passagem entre os séculos XIX e XX, e cujo racismo é ilustrado pela crença de que a eliminação do mascavo brasileiro ou do eclipse negro (expressões usadas por Afrânio Peixoto, na década de 1930, para designar negros e mestiços) seria necessária para criar um povo capaz de se civilizar, condição negada a negros e mestiços por aquelas teses racistas.

Além disso, o Brasil foi a única nação moderna de grande porte onde a escravidão ocupou todo o território, durante mais de três séculos, realidade que condicionou de forma mais ou menos uniforme o comportamento das classes dominantes e dos segmentos livres da população em relação à ameaça representada pela presença de enormes contingentes escravizados.

Finalmente, em nosso país, a história da luta pela liberdade é a crônica de revoluções inacabadas. As revoluções representadas pela Independência, pela Abolição da escravatura, República ou a revolução liberal de 1930 – apenas para citar alguns marcos históricos usuais – significaram rompimentos incompletos com o passado, e as velhas classes dominantes conseguiram manter-se no poder, mesmo com a incorporação de novos personagens ao cenário da luta política.

A Abolição, que significou o fim do estatuto que oprimia centenas de milhares de escravizados, resultou de um processo semelhante, controlado pelo alto pelos mesmos latifundiários e grandes comerciantes (entre os quais traficantes de escravos) que detinham o poder sob o escravismo.

A mudança representada pelo fim do trabalho escravo não resultou de uma revolução de caráter democrático burguês ao fim da qual emergiriam todos – negros e brancos – como cidadãos, com plena igualdade civil e política. E, apesar de sancionada pela constituição republicana de 1891, a igualdade foi uma lei que não pegou. O espírito “ancién regime”, aristocrático, permaneceu intocado e é um obstáculo societário à plena vigência do espírito democrático burguês sinalizado pela adoção da forma republicana de governo e ação pública. As mesmas velhas classes dominantes continuavam no comando. E foi mantida a mesma velha hierarquia social em que coincidiam as linhas de classe e cor, relegando os brasileiros de pele escura aos piores lugares, aos empregos mais humildes, desvalorizados e mal-remunerados, aos cortiços e favelas, à ausência da escola; abandonados à marginalidade, à miséria e à ignorância.

Era o seu lugar, o lugar do negro, sancionado pela classe dominante, pelos costumes e pela ultrapassada ciência social do início do século XX. Nina Rodrigues, pioneiro no estudo do negro no Brasil, escreveu, num estudo publicado em 1894 (“As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil”), que os negros eram incapazes civilmente e deviam ser equiparados, perante a lei, aos menores de idade.

Por isso é preciso repetir que há racismo no Brasil, e seu registro é renovado a cada divulgação de um novo censo ou novo levantamento de dados sobre a situação social do povo brasileiro, e que revelam invariavelmente a situação de opressão dos negros e mestiços, sempre nas piores situações de renda, emprego, educação, saúde, moradia etc. Racismo que não só existe, mas é tão cruel quanto o racismo em qualquer outra parte do mundo.

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