Petrobras, Fiat e Folha são investigadas por colaboração com ditadura

Projeto tem como objetivo detalhar a atuação dessas corporações nos anos do regime

Dezenas de pesquisadores de todo o País vão se debruçar sobre empresas como Petrobras, Fiat e Folha de S.Paulo – todas elas suspeitas de terem colaborado com a repressão durante a ditadura militar (1964-1985). O projeto “A Responsabilidade de Empresas por Violações de Direitos Durante a Ditadura” tem como objetivo detalhar a atuação dessas corporações nos anos do regime ao longo de um ano e meio.

São pelo menos 45 acadêmicos envolvidos. Os trabalhos tiveram início em novembro, mesmo mês em que se completaram dez anos da criação da Comissão Nacional da Verdade. Em 2014, o colegiado publicou um relatório com 4,3 mil páginas sobre os crimes cometidos na ditadura, como prisões arbitrárias, torturas e execuções. Esses dados foram o ponto de partida da pesquisa da Unifesp, além de documentos de acervos que ainda devem ser consultados.

O financiamento vem da indenização paga pela Volkswagen, no âmbito de um processo movido pelo Ministério Público Federal, em conjunto com o Ministério Público do Trabalho e o Ministério Público de São Paulo, que exigiram reparações após investigações mostrarem que a companhia foi cúmplice da repressão na ditadura. Após um acordo que se arrastou por anos, a Volks se comprometeu a pagar R$ 36,3 milhões para indenizações individuais e iniciativas ligadas a atos de reparação e de acesso à memória e verdade sobre a ditadura. Desse montante, R$ 2 milhões foram destinados à pesquisa da Unifesp.

Outra fatia da indenização da Volks, de R$ 2,5 milhões, vai financiar a construção do Laboratório de Identificação Humana, que dará sequência à análise das amostras de materiais esqueléticos recolhidas na Vala Clandestina de Perus, onde mais de mil ossadas foram ocultadas pela ditadura nos anos 70.

Segundo Edson Teles, professor no curso de Filosofia da Unifesp e coordenador-geral do projeto, o material avaliado até agora indica uma situação comum: a relação direta entre o sistema de segurança interno dessas companhias e o sistema de informações da repressão. “Parte dessas empresas são estatais, que foram obrigadas a montar assessorias de informação para caçar trabalhadores em situação de luta sindical. As empresas privadas não eram obrigadas, mas os indícios são fortes de que muitas delas tiveram”, diz ele em entrevista à CartaCapital.

A lista de dez companhias foi divulgada pela Universidade Federal de São Paulo, a Unifesp, em 24 de outubro. São elas:

  1. A petroleira Petrobras;
  2. A montadora italiana Fiat;
  3. O jornal Folha de S. Paulo;
  4. A produtora de cobre Paranapanema;
  5. A Companhia Docas de Santos, empresa que gerenciava o Porto de Santos, em São Paulo;
  6. A Companhia Siderúrgica Nacional, CSN;
  7. A Itaipu Binacional, que administra a Usina Hidrelétrica de Itaipu;
  8. A empresa alimentícia Josapar;
  9. A Companhia Brasileira de Material Ferroviária, Cobrasma, extinta em 1998;
  10. A empresa Aracruz Celulose.

Petrobras militarizada

No dia seguinte ao golpe de 64, a Petrobras já dispunha de uma estrutura militarizada de repressão aos trabalhadores nas refinarias. Em 8 de abril daquele ano, uma semana depois, a petrolífera havia formado a Comissão Geral de Investigação, a CGI, composta por três generais. Em seis meses, a CGI fez um levantamento de três mil “suspeitos” entre os 36 mil funcionários.

É o que indicam as pesquisas chefiadas pela socióloga Lucieneida Praun junto a mais quatro pesquisadores. Segundo a pesquisadora, a Petrobras abriu 1,5 mil processos internos, indiciou 712 trabalhadores e demitiu 516, só no primeiro semestre de operação da comissão.

Outros estudos já mostravam que a Petrobras possuia um sistema articulado de vigilância, segundo a coordenadora. Há relatos de uso de dependências da empresa para a tortura de trabalhadores, como no caso de Mário Lima, deputado federal e presidente do Sindicato dos Petroleiros da Bahia, que liderava os trabalhadores da histórica Refinaria Landulpho Alves e acabou preso logo depois do golpe. Praun acrescenta ainda o uso de carros da Petrobras para o transporte de trabalhadores capturados.

Ao fim das atividades da CGI, em outubro de 1964, a Petrobras ganhou um novo órgão para manter a sua estrutura de vigilância: a Divisão de Segurança e Informações, conhecida como Divin. O setor executou importante papel nos anos seguintes, especialmente em 1967 e 1968, quando ocorreu uma nova leva de demissões. Até empresas prestadoras de serviço e subsidiárias repassavam informações mensalmente para a Divin. Eram espécies de dossiês, chamados de “listas sujas”, que descreviam a movimentação de pessoal, admissões e demissões nessas companhias.

A pesquisadora diz obter registros de ação desse sistema acerca do ano de 1985. Segundo ela, com os estudos na Unifesp, será possível investigar até quando essa estrutura foi mantida, inclusive depois do fim da ditadura. “Essa operação se desdobra em situações individuais muito graves, como em prisões, torturas e privação de emprego”, afirma a socióloga. “A gente não só quer discutir essas questões, como quer observar também se esse processo de repressão está articulado a um projeto de governo com colaboração empresarial. Quem se beneficiou da perseguição aos trabalhadores?”, questiona.

Espionagem na Fiat

Gustavo Seferian, professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, coordena os estudos sobre a Fiat. Junto a outros dois pesquisadores, Seferian investigará as atividades da empresa na ditadura a partir de informações divulgadas pelo site The Intercept Brasil, sobre um programa de espionagem que repassava informações aos órgãos da ditadura.

De acordo com o Intercept, a Fiat já havia espionado funcionários na Itália e aplicou o método no Brasil. Um coronel militar de reserva, Joffre Mario Klein, era chefe desse aparelho interno de repressão e montou, por exemplo, um esquema de escuta e registro de conversas no único telefone público instalado no pátio da fábrica.

A empresa, fundada na Itália em 1899 e instalada no Brasil em 1976, chegava a infiltrar entre seus trabalhadores os agentes do Departamento de Ordem Política e Social, o Dops, responsável por torturas e mortes desde a década de 1950. Os oficiais monitoravam operários dentro e fora da fábrica. Ao Intercept, a empresa disse que não se manifestaria sobre o tema.

Segundo Seferian, as novas investigações pretendem levantar novas pistas, por meio de entrevistas com militantes sindicais da Fiat na cidade mineira de Betim. Os estudiosos também devem consultar repositórios documentais, como o acervo do centro de memória da Fiat em Turim, na Itália, os arquivos de sindicatos e os registros do Estado de Minas Gerais.

O professor cita ainda a divulgação de um relatório em 2017 pela Comissão da Verdade da Assembleia Legislativa de Minas, que apontou para o contexto das práticas de repressão contra o movimento sindical na região, com informações que podem subsidiar a pesquisa, como perseguições e assassinatos de funcionários da Fiat. Entre os casos relatados, está o do metalúrgico Guido Leão Santos, morto aos 23 anos em 27 de novembro de 1979. O trabalhador participava de uma greve por volta das 5 horas da manhã, quando teve que fugir de soldados a cavalo e acabou atropelado por um ônibus e levado ao hospital por uma ambulância da própria Fiat.

A Comissão Estadual, contudo, não provou se a Fiat foi responsável direta por operações que resultaram em morte, nem identificou quantos trabalhadores teriam sido afetados por conduta da empresa.

“Esses elementos trazem um indicativo forte, mas nossa investigação tende a trazer novos elementos”, diz Sferian. “Seguindo os passos de pesquisas já realizadas na Argentina e no Chile, que conseguiram trazer à luz uma série de elementos que aqui a gente ainda não pôde verificar, essa investigação em escala comparada será muito importante.” Procurada por CartaCapital, a Fiat declarou que “não identificou registros históricos sobre os fatos citados por The Intercept”.

Os carros da Folha

Registros testemunhais fortalecem os indícios de que a Folha foi cúmplice do aparato repressivo da ditadura, ultrapassando o simples alinhamento ideológico com o regime. É o que aponta Ana Paula Goulart, professora da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro e coordenadora da investigação sobre o jornal paulista.

Ela comanda uma equipe com mais quatro pesquisadores e algumas entidades colaboradoras. A peculiaridade desses estudos recai sobre o fato de que o veículo é o único representante da imprensa no projeto, embora a maioria das empresas jornalísticas tenham apoiado o golpe naquele período, frisa a professora.

O objetivo agora é se aprofundar nos testemunhos já existentes. Os relatos predominantes dão conta do uso de carros da Folha para o transporte de vítimas da repressão. Entre os exemplos citados por Ana Paula Goulart, está o depoimento de Claudio Guerra, ex-delegado do Departamento de Ordem Política e Social, o Dops, sobre a cessão de veículos para as operações.

Segundo o relatório apresentado em 2017 pela Comissão da Verdade, Memória e Justiça do Sindicato dos Jornalistas Profissionais de São Paulo, Guerra citou o envolvimento da Folha no fornecimento de carros para o regime. “Usávamos os carros para fazer o levantamento e colocar grampos, porque o carro da imprensa não chamava atenção”, disse Guerra. “Naquela época não tinha a facilidade de hoje (…) e o carro era ótimo para isso.”

Ela detalhou o caso da emboscada da Rua João Moura, no bairro do Sumarezinho, em 23 de setembro de 1971, quando os militares realizaram uma cilada para capturar opositores à ditadura. Um grupo de quatro militantes havia visto um jipe do Exército aparentemente estragado, com um soldado que não se movia. Segundo Suzana Lisboa, os militantes resolveram atacar o jipe, para extrair armas, mas acabaram sendo cercados por agentes do regime, que saíram de um carro da Folha.

“O grosso dos agentes saía de um carro baú, ali estacionado, da Folha de S.Paulo. Esse é um dos momentos em que há participação direta da empresa Folha de S.Paulo no assassinato de militantes da ALN”, afirmou Suzana Lisboa, com base em um relato da única sobrevivente, a militante Ana Maria Nacinovic Corrêa.

Suzana acrescentou: “Essa informação foi dada pela Ana Maria à direção da ALN e eu na época convivia aqui em São Paulo, vivia aqui e ouvia essa informação dos dirigentes da ALN, não da Ana Maria. Mas não há a mínima dúvida de que foi de dentro do carro baú da Folha de S. Paulo que os agentes saíram para matar os três militantes da ALN”.

Ana Paula Goulart afirma que outro caminho de investigação será verificar indícios de perseguição de funcionários por posições políticas, praticada, por exemplo, pelo não cumprimento de normas trabalhistas. Há também a tarefa de elucidar o período em que essa colaboração com a ditadura pode ter ocorrido. Especialmente no que diz respeito à utilização dos carros na Operação Bandeirantes, ela garante que não foram “casos isolados”, mas, sim, uma prática “sistemática”.

A pesquisadora sublinha, porém, que a grande questão é que a Folha alega que, se essa conduta foi verdadeira, a direção do jornal não tinha conhecimento. Em publicação de 25 de abril de 2013, por exemplo, a Folha negou que tenha colaborado com a repressão política e rechaçou o relato de que o seu publisher, Octavio Frias, teria mantido relações com o delegado Sérgio Paranhos Fleury, do Dops, conforme o ex-delegado Claudio Guerra havia acusado.

“A gente quer especificar até onde isso era uma atuação direcionada da empresa. Certamente, em algum nível da hierarquia, essa informação chegava. Não é possível que, durante tanto tempo, de uma forma tão sistemática, os carros da Folha fossem utilizados como aparato repressivo e nenhum nível de direção da empresa tivesse conhecimento”, afirma a estudiosa. “É muito pouco provável, mas é uma fonte de investigação.”

Com informações da CartaCapital