Lula: “Tenho uma relação verdadeira com o povo”

Em entrevista à revista Argentina Pagina12, o ex-presidente Lula falou sobre a situação do Brasil e a disputa eleitoral em 2022, entre outros temas.

Foto: Ricardo Stuckert

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi entrevistado pela Página12, da Argentina, na sede do instituto que leva o seu nome. As relações internacionais, a necessidade de explicar ao mundo como serão superados os anos traumáticos do Brasil de Jair Bolsonaro, são um pilar da estratégia do ex-presidente reconhecido para a redução da pobreza. Seu local de trabalho no bairro do Ipiranga, em São Paulo, tornou-se destino de peregrinos da política, da academia e da arte, que o visitam diariamente. Após a entrevista, Lula viajou para Buenos Aires a fim de para participar do ato de massa que vai liderar Alberto Fernández e Cristina Fernández, que marca o Dia da Democracia na Argentina.

Bem informado sobre a situação do país irmão, Lula comentou a negociação do atual governo com o Fundo Monetário Internacional. A esse respeito, o ex-presidente disse: “ Esperamos que o Fundo não pressione e chegue a um acordo que permita à Argentina continuar crescendo, que permita aos pobres argentinos ter a chance de recuperar sua dignidade”.

Lula comentou ainda sobre a grave situação de crise vivida pelo Brasil sob o governo de Jair Bolsonaro . “O Brasil vive uma situação que achava que nunca mais viveria, com 19 milhões de pessoas passando fome”, afirmou o ex-presidente que se destacou justamente no combate à fome com políticas sociais que tinham como carro-chefe o Bolsa Família, recentemente extinto pelo atual presidente.

Leia abaixo a íntegra da entrevista:

Na Argentina, o macrismo deixou enormes prejuízos sociais com sua política econômica, no Brasil o mesmo acontece com a política neoliberal de Paulo Guedes. Que margem terá um futuro governo no Brasil para reverter essa herança?

O Partido dos Trabalhadores (PT) é capaz de mudar a situação do Brasil, precisa voltar ao governo porque sabe colocar em prática políticas de inclusão social, geração de empregos, para que os mais pobres participem do orçamento de das cidades e dos estados brasileiros. Não podemos aceitar que um país do tamanho do Brasil, que foi a sexta maior economia do mundo sob meu governo, seja hoje a décima terceira; não podemos aceitar que um país que acabou com a fome em 2012 e hoje vê que o flagelo é tão forte: são 19 milhões de pessoas que não têm o que comer. Tanto o Brasil quanto a Argentina, assim como a Bolívia e o Chile, precisam de governos progressistas que envolvam os pobres em uma participação ativa na economia, para que possam ser consumidores e comprar coisas e ter acesso à educação. Estou convencido de que a América Latina pode se recuperar. Infelizmente pessoas como Néstor Kirchner e Hugo Chávez morreram, outras pessoas foram perseguidas, como Rafael Correa e Dilma Rousseff, depois da violência da lei, contra mim; o golpe contra Fernando Lugo. Os governos conservadores destruíram tudo o que construímos para o bem-estar social de nossos povos. Sei o que está passando o camarada Alberto Fernández, o que significa a dívida que Macri deixou com o FMI e sua pressão, por isso, Alberto precisa trabalhar muito para que haja um acordo e que o povo argentino não seja vítima dos neoliberais. 

O que você espera da negociação da Argentina com o FMI?

É possível fazer um acordo. O FMI foi tão benevolente com os países ricos com a crise de 2008, por isso tem que ser muito generoso para lidar com a dívida da Argentina. O povo argentino não pode ser sacrificado.

Como você descreve sua relação com Cristina Fernández e Alberto Fernández?

Minha relação com Cristina é mais antiga porque convivi com ela desde que Néstor Kirchner foi eleito presidente da Argentina, e depois com ela como presidente. Minha relação com Alberto teve um momento que me comoveu e foi quando ele me visitou quando eu estava preso em Curitiba. Foi um ato de generosidade e solidariedade de Alberto. Por isso, com muito orgulho, vou participar do grande ato de retomada da democracia na Argentina, são 38 anos que devem ser valorizados. A vitória de Alberto e Cristina mostra que o povo não pode desanimar, que é possível que o povo reconquiste a democracia na medida em que o povo pode participar ativamente das decisões. Tenho uma estima especial pela Argentina porque não concebo que o Brasil cresça sozinho; O Brasil tem que crescer, a Argentina tem que crescer, Uruguai igual, Paraguai, Bolívia porque juntos podemos ser mais fortes. Quando me tornei presidente em 2003, o intercâmbio comercial entre Brasil e Argentina mal chegava a 7 bilhões de dólares, quando deixei a presidência, eram US $ 39 bilhões, o que demonstra o potencial financeiro e de parceria. Para mim, a Argentina precisa do Brasil, e isso é mútuo; como precisamos do resto da América do Sul.

É significativo para você que o ex-juiz Sergio Moro, candidato independente, concorra com a base eleitoral do Bolsonaro? Você diria que são duas faces da extrema direita?

São dois personagens muito comprometidos com a extrema direita e, no caso do Moro, ele é um personagem perigoso: quando ele era juiz se atreveu a mentir em um processo para me condenar e me levar para a prisão e assim me impedir de ser eleito presidente em 2018. Ainda penso que seriedade esse homem pode ter para a sociedade brasileira. Quantas mentiras ele pode contar aos brasileiros? Então, eu diria que são dois extremistas, o Bolsonaro é um fascista e o Moro é um neofascista, os dois vão tentar mentir para a sociedade o tempo todo. Eles vão ter que lutar entre si para ver quem vai disputar comigo o o segundo turno.

As pesquisas indicam que você ganharia no segundo turno.

Tudo indica que temos boas chances de ganhar as eleições. Temos que agir com seriedade porque não há tempo para as eleições e, então, não podemos reivindicar a vitória antes do tempo. Temos um legado político e econômico extraordinário e de inclusão social no Brasil, vamos tentar dar à sociedade o que foi feito de bom no país. Vamos trabalhar para ganhar as eleições. Dos dois que competem comigo, o Bolsonaro, como presidente, conta com o uso da máquina governamental, e o próprio Moro, com a ajuda de setores da mídia que fazem o enorme sacrifício para aparecer no noticiário. Não sei se é percebido na Argentina, mas aqui sou o mais censurado do planeta terra. Qualquer candidato que não seja eu e que tem 1% nas pesquisas, ele aparece mais na televisão do que Lula, que tem 46 ou 47% da intenção de voto. Sendo quem venceria o primeiro ou o segundo turno, de acordo com todas as pesquisas, as empresas de mídia priorizam os candidatos que têm um ou dois por cento de intenção de voto. Não me preocupo porque tenho uma relação muito verdadeira com o povo e isso vai me permitir ganhar as eleições.

Aliás, que papel você acha que os sindicatos deveriam ter na mídia num contexto em que as corporações dominam a comunicação e o jornalismo?

Estou muito feliz com o papel do movimento sindical na comunicação argentina. Aqui no Brasil criamos uma televisão pública, mas ela não recebeu o investimento necessário e não é respeitada hoje pelo governo Bolsonaro. Temos um canal do sindicato dos metalúrgicos e dos bancários de São Paulo. Defendo que os meios de comunicação são efetivamente democráticos e que as universidades e os sindicatos podem ter canais de comunicação para dialogar com a sociedade, para informá-la, seja através do rádio, da televisão, do jornal ou da Internet. É essencial que as pessoas entendam que a mídia desempenhou um papel importante na região na derrubada de presidentes progressistas. A imprensa tem apoiado golpes no Brasil, vemos como a mídia ataca Cristina Fernández na Argentina. Sei do comportamento da imprensa contra Chávez e Correa. Eu sei como a imprensa me tratou no Brasil. As pessoas têm que lutar pela democratização dos meios de comunicação, o que significa garantir que todas as pessoas tenham a mesma oportunidade de falar, o direito de responder. É uma luta muito difícil.

Se você ganhar as eleições, acha que o Bolsonaro pode não reconhecê-lo no estilo Trump diante da vitória de Biden?

Não, não creio. O que vai acontecer no Brasil é uma retomada democrático: a grande maioria do povo brasileiro vai rejeitar o Bolsonaro e eleger um candidato progressista. Espero ser eu. O povo brasileiro lembra do nosso legado. Estou convencido de que vamos vencer.

No México, Andrés Manuel López Obrador governa, na Argentina, Alberto Fernández, na Bolívia, Luis Arce; Gabriel Boric pode vencer no Chile. Você considera esta a segunda onda de governos progressistas na região?

Espero que sim, porque o melhor momento econômico, político e social da América Latina foi justamente quando Chile, Argentina, Brasil, Bolívia, Uruguai e Paraguai foram governados por políticos progressistas, presidentes preocupados com a situação dos mais pobres. Foi um momento forte de inclusão social. Por isso estou incentivando os setores progressistas a se fortalecerem para governar países da América Latina. Acredito que os setores progressistas podem vencer no Chile, que temos muitas possibilidades no Brasil, que a vitória de Luis Arce foi uma vitória extraordinária da Bolívia, do Peru sob Castillo. As pessoas estão descobrindo que, mesmo com muitas dificuldades, setores progressistas governam com maior compromisso com os trabalhadores e os pobres. Acredito que a América Latina precisa de uma oportunidade para acabar com a pobreza. Somos ricos, temos matéria-prima, profissionais qualificados, temos muita terra e capacidade produtiva; a única coisa que explica isso é a incompetência de muitos líderes que não sabem governar para os pobres. Alberto Fernández recebeu a dívida da presidência de Macri e então o povo argentino terá que ser muito paciente. A pandemia fez o mesmo, mas acho que é possível que a economia argentina se recupere, que se criem empregos e melhores salários para que as pessoas sejam mais felizes. 

É claro que você buscará a integração regional. Quais são suas expectativas com o Grupo Puebla?

O Grupo Puebla tem um papel muito importante, mas acho que se os líderes progressistas voltarem a governar nossos países, eles terão a chance de recuperar o Mercosul, de fortalecê-lo, de fortalecer o Celac. Temos que entender que temos um potencial produtivo extraordinário, por isso precisamos construir parceiros para fazer bons acordos com a União Européia, com os EUA, com a China, porque precisamos recuperar o que foi perdido em tempos de pandemia. Vou tentar reconstruir o Mercosul e criar as condições para que se cheguem a acordos econômicos que beneficiem os pobres da região, merecemos recuperar no século XXI tudo o que foi minado no século XX.

O senhor vê a vitória de Xiomara Castro em Honduras como uma reivindicação histórica, depois da solidariedade de seu governo ao presidente destituído Manuel Zelaya?

Zelaya foi vítima de um golpe de Estado e dos interesses da elite; a escolha agora de Xiomara, sua esposa, é uma recuperação. Espero que ela tenha sorte, que ela seja forte. Espero que o Congresso esteja disposto a ajudá-la. Porque é muito difícil ter um congresso de oposição, que consegue a maioria para implementar as políticas sociais necessárias para fazer Honduras avançar. No Brasil, por outro lado, passamos por situações muito difíceis porque temos um genocídio que não cuidou da economia, negligenciou as pessoas na pandemia, não cuidou do crescimento econômico. O Brasil está passando por uma situação que nunca imaginou que voltaria a passar. O Brasil já era muito melhor, o povo brasileiro precisa ser feliz.

Fonte: Página 12