Tribunal vassalo inglês cede a Biden a extradição do jornalista Assange

Ataque hediondo ao direito à verdade e à liberdade de imprensa. “Como pode ser justo, como pode ser certo extraditar Julian para o mesmo país que tramou assassiná-lo?”, indignou-se sua companheira e mãe de seus dois filhos, Stella Moris. Advogados vão recorrer

Julian Assange - Foto: Reprodução Youtube

“Vamos lutar. Cada geração tem uma luta épica para lutar e esta é a nossa, porque Julian representa os fundamentos do que significa viver em uma sociedade livre, do que significa ter liberdade de imprensa. Do que significa para os jornalistas fazer seu trabalho sem ter medo de passar o resto de suas vidas na prisão”, reagiu Stella Moris, a companheira e mãe dos dois filhos do jornalista e fundador do WikiLeaks, Julian Assange, assim que uma corte de apelação britânica decidiu na sexta-feira (10) favoravelmente à extradição dele.

Assange, que publicou as provas dos crimes de guerra dos EUA no Iraque e Afeganistão – em que centenas de milhares morreram e milhões se tornaram refugiados – e é por isso perseguido há dez anos e se tornou o mais conhecido preso político do mundo, não recebeu permissão para estar na audiência.

A equipe de defesa já anunciou que irá recorrer do veredicto infame. Seus advogados também vão recorrer das questões de fundo, como a liberdade de imprensa e a motivação política do pedido de extradição dos EUA, que ainda não foram ouvidas por nenhum tribunal de apelação.

A decisão vil da alta corte anula o bloqueio à extradição determinado na instância inferior devido ao elevado risco de suicídio, reconhecido pela juíza Vanessa Baraitser, e a orienta a remeter o caso ao Secretário do Interior, para consumação.

Infâmia

“Como pode ser justo, como pode ser certo, como pode ser possível extraditar Julian para o mesmo país que tramou assassiná-lo?”, indignou-se Moris, referindo-se ao complô revelado pelo Yahoo!News em setembro, discutido pela CIA sob ordens do então diretor Mike Pompeo, e que foi exposto ao tribunal em outubro.

Ela também acusou o Reino Unido de aprisionar Assange “em nome de uma potência estrangeira que está levando um processo abusivo e vingativo contra um jornalista” e exortou “todos a se unirem e lutarem por Julian”.

Por sua vez, o atual editor-chefe do WikiLeaks , Kristinn Hrafnsson, disse que “a vida de Julian está mais uma vez sob grave ameaça, assim como o direito dos jornalistas de publicar material que governos e corporações considerem inconveniente”.

Mostrar a verdade é espionagem?

Assange está sendo processado pelo regime Biden sob a lei de espionagem, e um tribunal da CIA já tem tudo pronto para sentenciá-lo a até 175 anos de prisão, em regime de solitária em um calabouço supermax, para servir de exemplo.

Na prática, significa ‘legalizar’ a extraterritorialidade da perseguição a jornalistas pretendida por Washington, sob ‘lei’ norte-americana e, pior ainda, de “espionagem”, contra um cidadão de outro país e trabalhando fora do território norte-americano, como denunciou em outubro a Anistia Internacional.

“O que isso permite é que os EUA levem a julgamento jornalistas e editores quando publicam coisas que os EUA não querem em domínio público, às vezes material classificado, que é a força vital de jornalistas investigativos quando estão investigando coisas como crimes de guerra e crimes contra a Humanidade perpetrados por estados como os EUA”.

Repórteres sem fronteira

O secretário-geral dos Repórteres Sem Fronteiras (RSF), Christophe Deloire, repudiou a decisão da corte britânica, que chamou de “histórica por todos os motivos errados”. “Assange foi alvo de suas contribuições ao jornalismo e defendemos este caso por causa de suas implicações perigosas para o futuro do jornalismo e da liberdade de imprensa em todo o mundo. É hora de parar esta perseguição de mais de uma década de uma vez por todas. É hora de libertar Assange”.

Deloire acrescentou que os documentos publicados por Assange “expuseram crimes de guerra e abusos dos direitos humanos pelos quais ninguém jamais foi processado”.

Entre esses, o chamado vídeo “Assassinato Colateral”, que mostra a tripulação de um helicóptero Apache dos EUA, em Bagdá, massacrando civis iraquianos, inclusive jornalistas. Assassinato cometido como parte daquilo que a jurisprudência de Nuremberg definiu como “crime supremo”, a guerra de agressão.

O líder do RSF lembrou ainda que Assange seria “o primeiro editor processado sob a Lei de Espionagem dos EUA” da história, o que exclui a defesa do interesse público, e estabelece “um precedente perigoso que poderia ser aplicado a qualquer meio de comunicação que publicasse histórias com base nos documentos vazados, ou mesmo qualquer jornalista, editor ou fonte em qualquer lugar no mundo”.

A decisão da corte de apelação britânica foi um show de cinismo e vassalagem, lida em nove minutos. Lord Burnett disse que, graças às garantias de Washington, estava afastado o risco de suicídio – a única questão em que a juíza do caso, Vanessa Baraitser, favorecera Assange. “Compromissos solenes de um governo para outro”, mentiu.

Em janeiro, Baraitser decidiu que as “medidas administrativas especiais” nas quais Assange provavelmente seria mantido nos EUA teriam um impacto negativo severo em sua saúde mental e reconheceu que o jornalista “permaneceu severamente ou moderadamente deprimido clinicamente”, durante sua estada na prisão de Belmarsh em Londres e que era considerado “um risco de suicídio”.

Além de só terem sido apresentadas após a sentença de Baraitser, as garantias são ocas. No futuro, caso os EUA julgue que Assange fez algo de que não gostaram, as garantias de não confinamento solitário seriam canceladas, como é dito abertamente.

Na reiteração das garantias, inclusive Washington comete a indiscrição de prometer não prender Assange “pré-julgamento” numa instalação de segurança máxima ADX Florence, à qual os condenados só vão “pós-julgamento”. Em suma, uma fraude.

Garantias que qualquer um de bom senso sabe que não garantem nada. O sistema prisional de segurança máxima dos EUA, que praticamente ‘cancela’ o relacionamento do preso com qualquer outra pessoa, e eleva à enésima potência o abusivo uso do regime de solitária, é amplamente considerado o mais brutal do mundo. Chelsea Manning, a denunciante dos arquivos de guerra do Pentágono no Afeganistão e Iraque, tentou o suicídio mais de uma vez quando no cárcere.

Perseguição

Centenas de milhares de arquivos dos crimes de guerra do Pentágono, Departamento de Estado e CIA, como vazado pelo WikiLeaks, em conjunto com os principais jornais do mundo, abriu um novo caminho para a denúncia e foi merecedor de premiações jornalísticas importantes.

Mas também atraiu a ira de gente como a então secretária de Estado, Hillary Clinton, que chegou a sugerir mandar um drone acabar com ele. Sob Trump, Mike Pompeo, quando diretor da CIA, tramou assassiná-lo por meios mais ‘comuns’.

Durante uma década Assange foi submetido a uma operação de ‘assassinato de reputação’, com um processo forjado de assédio sexual montado pela promotoria sueca junto com a CIA e, depois, prosseguido junto com as autoridades inglesas, forçando Assange a pedir asilo na Embaixada do Equador em Londres.

Uma empresa espanhola que prestava segurança à embaixada foi cooptada pela CIA e passou a espionar Assange e seus advogados.

Graças a uma operação de suborno do novo presidente equatoriano, que inclusive rompeu com o presidente anterior que dera abrigo ao jornalista na embaixada, Assange pôde ser arrancado pela polícia inglesa da representação diplomática e desde então é mantido na ‘Guantánamo britânica’ em Belmarsh.

Após submeter Assange aos ‘Protocolos de Istambul’, o Relator Especial da ONU sobre Tortura, Nils Melzer, concluiu que o jornalista apresenta todos os sintomas de quem foi torturado por longo tempo.