Pesquisa investiga como imagens formam a memória de Maria Quitéria

Dissertação desenvolvida no Instituto de Estudos Brasileiros da USP, explora como as representações disputam imaginário sobre a mulher que foi combatente em conflitos pela Independência na Bahia

Arte sobre fotos / Wikimedia Commons e Acervo MP USP

Maria Quitéria de Jesus foi uma mulher que atuou nas lutas pela independência do Brasil travadas na Bahia contra portugueses em 1822. Inicialmente disfarçada como homem, após o conflito ela foi reconhecida por seus superiores e por D. Pedro I, imperador do país recém-independente. O lugar que ela ocupa na memória nacional é motivo de disputa, aponta pesquisa desenvolvida por Nathan Yuri Gomes no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP.

Em O teatro da memória é como o teatro da guerra: Maria Quitéria de Jesus na formação do imaginário nacional (1823-1979), o pesquisador analisa como imagens sobre a combatente buscam dar a ela diferentes significados a partir de diferentes olhares, interesses e épocas. 

O pesquisador destaca que os conflitos em torno da formação de uma memória sobre Maria Quitéria se iniciaram em 1823, logo após o êxito do Brasil em disputas pela independência. Na ocasião, a combatente recebeu de D. Pedro I a condecoração da Imperial Ordem do Cruzeiro, criada um ano antes em razão da separação de Portugal.

A partir do reconhecimento, jornais oficiais do Império passaram a retratá-la como heroína. Ainda mais em registros nacionais, contudo, a trajetória da baiana ficou principalmente marcada nos relatos publicados em diários de viagem da escritora inglesa Maria Graham (1785-1842), que retratou seu olhar sobre o Brasil durante sua passagem pelo território entre os anos de 1821 e 1824.

Além de descrever o que Maria Quitéria teria lhe contado sobre a entrada na chamada Guerra de Independência, a autora encomendou uma gravura sobre a personagem, um retrato que deu embasamento para representações posteriores.

“É a primeira imagem da Maria Quitéria e se trata de uma imagem que ajuda muito nessa consolidação do mito dela como heroína”, afirma o pesquisador. A imagem também pode ajudar a esclarecer o debate que se criou a partir dos traços físicos descritos pela inglesa sobre Maria Quitéria.

O pesquisador afirma que as imagens da combatente sempre a retrataram como uma mulher branca, embora Graham tenha descrito Quitéria em seu diário como uma mulher com traços indígenas acentuados. 

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Nathan Yuri Gomes, pesquisador no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP – Foto: Arquivo pessoal

“Essa forma de descrever racialmente Maria Quitéria não é à toa. Ela evoca que a Maria Graham caiu em um vocabulário de uma pseudociência, que era a frenologia.” A teoria foi usada no século 19 para, a partir da forma do crânio, afirmar uma suposta superioridade intelectual de pessoas brancas em relação a negros e indígenas, por exemplo. A crença, sem embasamento científico, era racista e foi amplamente refutada. 

“Embora Maria Graham seja uma figura abolicionista, anti-escravagista, até porque ela deixa isso muito claro nos seus textos, ela não estava isenta de uma postura que fazia parte da geração em que estava inserida. Então, apesar de ela descrever uma pessoa que estava na frente dela, a representação passa por esses filtros”, diz Nathan Gomes.

Cerca de um século depois, o Museu da Independência recebeu outra representação de Maria Quitéria, produzida pelo pintor italiano Domenico Failutti. Nela, os traços femininos da baiana são ainda mais acentuados, numa tentativa de não deixar dúvidas de que se trata de uma mulher por baixo da farda, ressaltou o pesquisador.

Formação de um imaginário

A pesquisa indica que, além da identidade, iniciativas de diferentes grupos disputam a formação de um imaginário sobre Maria Quitéria de Jesus. Há, por exemplo, retratos dela em quartéis militares pelo País. A medida foi implantada durante o governo de Getúlio Vargas, em 1953, mesmo ano em que foi inaugurada uma estátua em homenagem à combatente na atual região de Santo André, São Paulo.

A imagem dela também serviu de símbolo para grupos como o Movimento Feminino Pela Anistia (MFPA), criado em 1975, no contexto de reabertura política do Brasil. “Elas [militantes do MFPA] não estavam interessadas na Maria Quitéria como uma pioneira dos militares do exército, mas como uma mulher que foi lutar pela liberdade. Então no século 20 foi se recuperando essa memória”, explicou Nathan Gomes. 

Para o pesquisador, “a construção da memória de Maria Quitéria não foi e não é, como pode parecer hoje, um processo linear”, afirmou.

Estátua em homenagem a Maria Quitéria de Jesus na Praça da Soledade, Bairro da Liberdade, Salvador, Bahia – Foto: Reprodução/Pinterest

O pesquisador e a pesquisa

Nathan Yuri Gomes é bacharel em História da Arte pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e mestrando do Programa de Pós-Graduação em Culturas e Identidades Brasileiras do IEB-USP.

Sua pesquisa de mestrado contou com bolsa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Além de analisar imagens, biografias sobre Maria Quitéria serviram de fontes subsidiárias, segundo o pesquisador, que fez um trabalho de campo na Bahia para entender mais sobre a personagem analisada. 

“Por um lado, foi bom ter que me forçar a descobrir uma base de dados on-line de documentação. Realmente achei muita coisa que talvez, sem a pandemia, eu não teria me esforçado tanto. Por outro lado, foi difícil avançar em alguns pontos porque boa parte dos documentos encontrados na Bahia, por exemplo, não está digitalizada”, disse sobre parte do processo de pesquisa feito durante a pandemia de covid-19.

Do Jornal da USP