O ataque ao Iphan e os ecos contra o patrimônio das cidades brasileira
O ‘passar a boiada’ avança também sobre os sítios históricos, arquitetônicos, artísticos e culturais. Ainda que sob perspectiva essencialmente econômica, é a vanguarda do atraso.
Publicado 21/12/2021 12:59
Pinhais, região metropolitana de Curitiba, tarde de domingo, 19 de dezembro de 2021. Manifestantes protestam contra a destruição do autódromo da cidade, de categoria internacional, que costuma receber grandes eventos esportivos. Já tinham pedido à Prefeitura que declare o equipamento como patrimônio público. O desmonte, em curso, é para implementação de empreendimento imobiliário privado.
Salvador, agosto de 2021. No dia 10, o prefeito Bruno Reis decreta o tombamento do casarão da Residência Universitária 1, do Corredor da Vitória, da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Três dias depois, o mesmo prefeito decreta o “destombamento”, para espanto da comunidade e de uma série de instituições envolvidas no processo.
Santos, noite de 20 de outubro de 2021. A Câmara Municipal realiza audiência pública para discutir o tombamento das instalações do Clube Atlético Santista, para o qual há parecer favorável do Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural de Santos (Condepasa). O terreno, a uma quadra de uma futura estação de VLT, é cobiçado pelo mercado imobiliário. A audiência é marcada por discursos de vereadores contrários ao tombamento com argumentos que afrontam princípios elementares da Constituição.
São Paulo, 15 de dezembro de 2021. Em jantar na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), o presidente da República revela com orgulho ter demitido, em 2019, gestores do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Motivo: estavam realizando seu trabalho, de defender o patrimônio, diante de vestígios encontrados em uma obra realizada pela loja de departamentos Havan, no Rio Grande do Sul. Ainda no encontro diz, sem nenhum constrangimento, que desconhecia o que é o Iphan.
São alguns episódios, entre tantos, que têm marcado o “passar a boiada” também quando o assunto é a preservação do patrimônio histórico, arquitetônico, artístico e cultural do Brasil. A ostentação da ignorância que ecoa a partir de certas autoridades da República é replicada em instâncias locais. Nesses e em todos outros casos, os interesses do poder econômico estão por trás (e à frente, e ao lado) dos movimentos contrários à conservação da nossa memória.
Camuflam-se no discurso da “geração de empregos”, do “progresso”, quando na verdade querem por tudo abaixo, passar por cima de tudo, para saciar a sede por lucro imediato. Expressam o egoísmo das elites brasileiras, adoradoras das construções milenares do outro lado do Atlântico mas que, aqui dentro, não querem nem saber das nossas raízes, da nossa identidade, da história que construímos.
O “passar a boiada” sobre o patrimônio é mais um dos retrocessos que enfrentamos. O fogo na floresta, a retirada de direitos trabalhistas, os cortes na ciência, as decisões antivacinas e contra medidas fitossanitárias, o arrocho fiscal, tudo isso atenta contra a vida. A demolição de sítios que expressam nossa trajetória destrói nossa essência também.
Mesmo sob uma perspectiva unicamente econômica, é uma postura devastadora. A preservação do passado, no presente, agrega valor, para o futuro. Estimula o turismo e a ampla cadeia produtiva da economia criativa. Impulsiona, pois, o mundo do trabalho e renda, localmente.
Sem falar na qualidade de vida. Quando monumentos, construções e espaços são preservados, os cidadãos se identificam com o lugar onde moram; reconhecem-se; reencontram-se cotidianamente com sua trajetória. Desperta-se o sentimento de pertencimento. E estar bem onde se vive é fundamental.
Wagner de Alcântara Aragão é jornalista e professor. Mestre em estudos de linguagens. Licenciado em geografia. Bacharel em comunicação. Mantém e edita a Rede Macuco
Do Brasil Debate