Quando o bairro prefere homenagear torturadores a torturados

O sonho de morar na vilinha de casas de uma rua fechada vira pesadelo, quando os moradores estão polarizados entre defensores da ditadura militar e democratas.

O sonho de morar na vilinha de casas de uma rua fechada vira pesadelo quando os moradores estão polarizados entre defensores da ditadura militar e democratas

Quando os vereadores paulistanos Orlando Silva (PCdoB) e Arselino Tatto (PT), e mais seis, propuseram um projeto de lei que alterasse os nomes de ruas que ainda homenageiam personagens sinistros da ditadura militar, não imaginavam que, nove anos depois, a polarização política chegaria ao ponto de vizinhos hastearem bandeiras de guerra por causa disso.

É o que vem ocorrendo em bairros paulistanos em que torturadores famosos tiveram seus nomes tirados das placas de ruas para serem substituídos por torturados ou líderes da resistência ao regime ditatorial. Parcelas dos moradores que faziam uma defesa envergonhada de seu conservadorismo, agora defendem aberta e orgulhosamente o direito de destruir adversários políticos pela via mais desumana e hedionda possível.

Moradores hasteiam bandeiras nacionais e tocam o “Ouviram do Ipiranga” no último volume, como sinal de defesa do regime de exceção e repúdio à resistência de esquerda ao regime. Tudo isso tornou insalubre morar na Rua Sérgio Fleury, na Vila Leopoldina, zona oeste da capital paulista, conforme o encontro entre vizinhos nas calçadas vem acompanhado de bate-boca e ameaças. Foi o que observou a reportagem do TAB Uol, depois que a via mudou de nome para Rua Frei Tito um dos torturados por Fleury.

A placa foi trocada no final de novembro, mas a desavença entre vizinhos só acirrou, até com crianças que não podem brincar juntas. Até as redes sociais que integravam os moradores da pacata rua tiveram que ser silenciadas devido à agressividade preocupante. Moradores mais exaltados foram “cancelados”.

Há quem defenda alguma nomeação neutra para a rua, em vez da homenagem ao frade que lutou em desvantagem contra os militares. É o caso do Jardim Japão (zona norte paulistana), em que a praça General Milton Tavares de Souza, militar que presidiu o órgão de repressão DOI-CODI, foi rebatizada com o nome de Paulo Sella Neto, skatista que frequentava o local e morreu em um acidente.

Apesar das reclamações de quem é contra a mudança de nome, uma averbação de escritura do imóvel sai por volta de R$ 30. Os sistemas de GPS e mapas digitais atualizam os nomes rapidamente, criando transtorno com correspondência e entregas só nos primeiros dias.

Trajetórias opostas

Em 1982, então prefeito paulistano Salim Curiati decretou que a rua da Passagem B passaria a se chamar “Dr. Sérgio Fleury”, em referência ao delegado que morrera três anos antes em um afogamento em Ilhabela que nunca foi esclarecido porque não houve necropsia – uns falam em acidente, outros em “queima de arquivo”.

A dificuldade com a mudança já vinha de 2014, quando os moradores foram esclarecidos sobre o perfil dos homenageados. Foram 18 dos 30 moradores contrários à mudança, mesmo sabendo que Fleury era um dos comandantes dos esquadrões da morte que atuavam na periferia paulistana nos anos 1960 e que, com o guinada autoritária, passou a perseguir, torturar e matar opositores ao regime. Não convenceu o fato do Frei Tito ter sido preso por participar do congresso da UNE (União Nacional dos Estudantes) em Ibiúna em 1968, torturado e depois exilado na França, onde cometeu suicídio pelo abalo psicológico, após violentas aulas de interrogatório que a equipe de Fleury aplicava.

Esta história é contada no filme Batismo de Sangue, de Helvécio Ratton:

Na época, o então prefeito paulistano Fernando Haddad (PT) levou à frente o projeto “Ruas da Memória”, que visava rebatizar logradouros em homenagem a personagens da ditadura. A troca mais simbólica foi o Elevado Costa e Silva, conhecido como Minhocão, que do presidente que decretou o AI-5, foi mudado para Elevado Presidente João Goulart, aquele que foi deposto pelos militares em 1964.

O projeto é particularmente importante pelo fato da maioria das pessoas não terem noção de quem são os nomes que repetem cotidianamente ao citar seu endereço.

No Rio Pequeno, por exemplo, é difícil encontrar alguém que saiba que Octávio Gonçalves Moreira Júnior foi delegado do Dops, fundador do CCC (Comando de Caça aos Comunistas), acusado de torturar e matar opositores. Ele acabou morrendo em 1973, alvejado por guerrilheiros. Mas dá pra encontrar quem defenda que “é contra julgar o passado pelo presente” e prefira manter a homenagem.

Assim como a denominação de Henning Boilensen para uma rua no Jaguaré não incomoda seus moradores, que acreditam que ele é apenas o “administrador de empresas 1916-1971”, como diz a placa. O executivo dinamarquês presidiu o grupo Ultragaz e, além de financiar a repressão estatal, acabou reconhecido por matar, participando, sadicamente, de sessões de tortura. Foi morto por guerrilheiros em abril de 1971 na alameda Casa Branca, região dos Jardins. 

Essa história foi contada pelo documentário “Cidadão Boilensen”, do diretor Chaim Litewski:

Cartografia do autoritarismo

Uma iniciativa que estimula este revisionismo histórico é o site colaborativo Ditamapa, que aponta lugares da memória da ditadura espalhadas pela paisagem brasileira.

Castelo Branco, primeiro presidente do regime militar, batiza 56 logradouros em 18 Estados do Brasil. Considerado o mais repressor do período, Emílio Médici tem homenagem em 33 lugares, incluindo uma cidade de Medicilândia, no Pará.

Rua de Taboão da Serra (SP) homenageia a figura nefasta que serviu a duas ditaduras no Brasil, Felinto Muller. O militar dá nome a 17 lugares no Brasil. Muller comandou a polícia do Estado Novo, responsável por torturar e matar opositores de Getúlio Vargas – incluindo a deportação de Olga Benário, mulher do líder comunista Luís Carlos Prestes, para os campos de concentração da Alemanha nazista. Depois, ele foi senador e líder da Arena, partido de sustentação da ditadura militar.

Em São Carlos, interior de São Paulo, uma rua chamada Sérgio Fleury foi renomeada em 2009 como Dom Hélder Câmara, bispo defensor dos Direitos Humanos durante a ditadura. Como a rua era perto do campus da universidade federal UFSCar e tinha duas repúblicas de estudantes nos seus 200 metros de extensão não houve polêmica. 

Do TAB Uol

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