Uma visão diferente sobre a Covid na Antártica

No caso da estação belga, muitas coisas vêm da África do Sul, dessa forma nunca se está totalmente isolado.

Novo Coronavírus SARS-CoV-2 Micrografia eletrônica de varredura colorida de uma célula (vermelha) infectada com partículas do vírus SARS-CoV-2 (verde), isolada de uma amostra de paciente. Imagem capturada no NIAID Integrated Research Facility (IRF) em Fort Detrick, Maryland. Crédito: NIAID

Sou pesquisador do Programa Antártico Brasileiro há mais de oito anos, recentemente cheguei de uma exaustiva, mas produtiva temporada de três meses por lá, onde trabalhei pelo ProAntar na nossa nova e magnífica estação Antártica Comandante Ferraz. Quando cheguei de lá, em dezembro de 2021, amigos e conhecidos me procuraram preocupados, em função de notícias recentes (e alarmantes) sobre surto de covid-19 na estação belga Princesa Elisabeth. Meus colegas queriam saber se eu também havia sido contaminado pelo vírus e qual seria minha explicação para tão preocupante situação, – a infecção pelo vírus causador da covid-19 nos confins do mundo? Onde pessoas estão, por definição, isoladas e onde apenas vacinados podem ter acesso.


O leitor pode imaginar que não demorou muito para o tema se tornar também um debate político e ideológico sobre vacinas, chegando até a sugestão descabida de que a única explicação possível era que a própria vacina estaria causando covid-19 e que os pesquisadores belgas não deveriam nem ter se vacinado antes de embarcar para Antártica.


Diante de tanta confusão, resolvi que poderia dar alguma contribuição. Acredito que este debate se origina no pouquíssimo conhecimento que as pessoas têm das atividades antárticas, certamente muitas delas nunca estiveram por lá. Então peço a sua paciência para tratar do tema. O primeiro esclarecimento é que a Estação Antártica Comandante Ferraz fica muito longe da estação Belga, então, não, eu não estava lá e não me contaminei. Em Ferraz (como em outras estações), cuidados semelhantes aos dos Belgas foram tomadas e nenhum caso foi registrado até o momento.


Mas então o que ocorreu na Estação Belga? É fato que todos os ocupantes da base (cerca de 30) estavam vacinados com as duas doses (um deles já havia recebido inclusive a terceira dose) e passado por quarentenas e testes antes de chegar à Antártica. Aos 11 infectados foi dada a opção de voltar à civilização, porém oito decidiram ficar e enfrentaram uma quarentena na própria estação. Todos apresentaram apenas sintomas leves (provavelmente por estarem devidamente vacinados) por no máximo três dias e atualmente já estão todos de volta às atividades normais, ou seja, hoje não há mais nenhum caso de covid-19 na estação belga Princesa Elisabeth, os próprios belgas afirmaram que o caso não foi “grande coisa”.

O que as pessoas não sabem é que a estação belga, diferentemente de Ferraz, é acessada e suprida via África do Sul, ou seja, os ocupantes da base belga tiveram que passar primeiro por um país que conta com baixos índices de vacinação e onde primeiro foi detectada a variante do Sars-Cov-2 denominada Ômicron, conhecida por conseguir burlar as vacinas disponíveis. Ademais, a Antártica é, de fato, um dos lugares mais remotos do mundo, porém as pessoas não estão isoladas, e sim todas aglomeradas devido ao frio e às condições extremas, sempre foi assim. Outra coisa importante é que na Antártica tudo vem de fora, não existe comércio ou plantações, então periodicamente as estações são supridas de tudo, desde combustível, alimento até parafusos, tudo tem que vir de outros lugares. No caso da estação belga, muitas coisas vêm da África do Sul, dessa forma nunca se está totalmente isolado.

Em uma temporada normal de verão, existem cerca de 4.500 pessoas na Antártica em cerca de 30 estações. Devido às condições climáticas adversas, as estações são pequenas e confinadas, não existe “abrir janela” e todos respiram o mesmo ar. Destaco que o ambiente polar é único e que as condições de trabalho e hospedagem nas bases de pesquisa científica favorecem a contaminação das equipes, ou seja, as bases são isoladas umas das outras, mas no interior delas o convívio é intenso.

O mesmo vale para os navios e aviões de pesquisa e de logística que operam por lá, como também acontece nos navios de cruzeiro quando existe um surto de qualquer patógeno de rápida contaminação interpessoal, como também pode ser visto recentemente na imprensa.

Bem, não se sabe ainda como os belgas foram infectados. Também não sabemos detalhes da quarentena na África do Sul, e nem se os testes foram feitos a contento, lembrando que mesmo os testes mais precisos possuem margem de erro. Uma das hipóteses aventadas é que os belgas foram infectados pela variante Ômicron na África do Sul, e alguém testou falso negativo. Mas o fato é que todos estão de volta ao trabalho e vivos. Provavelmente, o fato de estarem vacinados explica porque os belgas tiveram apenas sintomas leves. Outrossim, fazer um link entre a vacinação e o caso belga releva apenas de paixões políticas, e não de pesquisa médica e científica, além do desconhecimento das condições de trabalho na Antártica.

Na minha opinião, veremos mais casos como este no futuro, com consequências cada vez menores como foi este caso e, um dia, isso não será mais notícia. No atual contexto de incertezas concernente à pandemia, é possível que novas variantes mais contagiosas e menos letais proliferem em 2022. Também novas vacinas que incluam as novas variantes e novos medicamentos terão importante papel.

No caso do Brasil, nosso deslocamento foi feito de navio desde a cidade do Rio de Janeiro até a Antártica, mais de 20 dias no mar, como não houve “escalas”, nem embarque ou desembarque em nenhum porto ao longo do caminho, chegamos sem intercorrências na nossa estação. Além disso, obviamente todos foram testados antes de embarcar e seguiu-se um período de quarentena antes da partida do navio e mais três testagens foram feitas ao longo da viagem.

Espero ter contribuído para que as pessoas conheçam um pouco mais do nosso trabalho no Continente Gelado, que garante ao Brasil assento privilegiado nos processos decisórios no âmbito do Tratado da Antártica, ajudando o Brasil a decidir o destino de quase 10% do Planeta.

Fonte: Portal da UnB