Idealizador do Fome Zero critica Bolsonaro por avanço da fome no País

Para Walter Belik, “não dá para atribuir a fome só à Covid. Se tivéssemos uma rede de proteção social em funcionamento, não teríamos um quadro tão complicado.”

Em 2014, graças a projetos lançados no governo Lula – como o Fome Zero e seu sucessor, o Bolsa Família –, o Brasil saiu oficialmente do chamado Mapa da Fome da FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura). Mas a destruição de polícias públicas de segurança alimentar e combate à fome, sob o governo Jair Bolsonaro, conduziu o País a um “retrocesso inédito” no mundo.

É o que aponta o pesquisador e professor aposentado da Unicamp Walter Belik, um dos idealizadores do Fome Zero Com pós-doutorado no University College de Londres e na University of California, em Berkeley, Estados Unidos, Belik coordenou a Iniciativa América Latina e Caribe Sem Fome da FAO até 2008.

Em entrevista à Folha de S.Paulo publicada nesta segunda-feira (24), ele diz que, desde 2015, com problemas como a escalada inflacionária e a ausência de recomposição do valor de benefícios sociais, a insegurança alimentar voltou a crescer no Brasil. Tanto que o País voltou ao Mapa da Fome em 2018 e registrou 55,2% da população convivendo com a insegurança alimentar já em 2020, conforme a Rede Penssan.

“A ONU associa a insuficiência alimentar grave e moderada a um quadro de fome”, explica. “Chegamos a um quadro de aproximadamente 25% da população em situação vulnerável. É um quadro complicadíssimo – um quarto da população está passando fome no Brasil.”

O pesquisador aponta a existência do “custo social da fome” entre os brasileiros. “Esse custo deve ser gerenciado pelas políticas públicas. Ele impacta no sistema de segurança social, no Orçamento, na saúde, na educação – com atraso de aprendizagem das crianças –, e no mercado de trabalho, com redução da mão de obra e da produtividade.”

Segundo Belik, cenas observadas em 2021, como pessoas buscando ossos e carcaças para se alimentar e os diversos protestos contra a fome, não podem ser creditadas só à crise provocada pela pandemia. “Não dá para atribuir a fome só à Covid”, afirma. “Se tivéssemos uma rede de proteção social em funcionamento, não teríamos um quadro tão complicado quanto o que estamos vivendo.”

Um exemplo dos problemas nessa área é o fim do programa de estoques de regulação da Conab (Companhia Nacional de Abastecimento). “Boa parte da crise de desabastecimento e alta de preços em 2020 tem a ver com a ideia de que o Brasil não precisa de estoques reguladores de alimentos, o que é absurdo não só do ponto de vista de segurança alimentar, mas nacional. O País depender de importações e da variação de preços internacionais é absurdo, diante do quadro de abundância que temos no Brasil.”

Mas o governo Bolsonaro é responsável por outras medidas que levaram ao agravamento da fome. “O Bolsa Família, desidratado, passou de um programa de transferência de renda com condicionalidades para um de doação. Com o Auxílio Brasil, a ideia de proteção e assistência social dessas famílias foi escanteada”, critica. “O Pronaf [Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar] foi desidratado e os valores cortados em 35%. O programa de reforma agrária, a Secretaria de Agricultura Familiar, o programa de estoques de regulação da Conab e o programa de cisternas – todos foram descontinuados.”

Outro projeto que acabou, de acordo com Belik, foi o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos). Era uma iniciativa que “priorizava a compra de alimentos de agricultura familiar para doações ou alimentação escolar e chegou a comprar quase R$ 1 bilhão, garantindo renda para os pequenos produtores”.

Mas há mais exemplos. “O programa de banco de alimentos virou o ‘Comida no Prato’, assistencialista e criado pelo governo para faturar em cima do trabalho feito há duas décadas pelos bancos de alimentos do Brasil, organizados pela sociedade civil, basicamente. O programa de restaurantes populares foi descontinuado, e hoje vivemos um congestionamento nos restaurantes populares de R$ 1, graças à perda de renda da população. O programa de cozinhas comunitárias acabou.”

Para o pesquisador, o tema terá força nas eleições 2022. “Se em campanhas anteriores os temas eram corrupção e segurança pública, este ano vai ser saúde, em primeiro lugar, e alimentação”, avalia. “Estamos numa situação de retrocesso que é única no mundo. Não há sequer um caso na história documentado pela FAO de um país que saiu do Mapa e voltou. Nenhum. Esse é o tamanho da tragédia que estamos vivendo.”

A seu ver, o combate à fome deixou de ser uma bandeira partidária e se tornou “uma bandeira da sociedade civilizada como um todo. É uma questão civilizatória. Mais da metade da população vive em insegurança alimentar, segundo os últimos dados. Você não pode virar as costas para isso”.

E como fazer? “Programas de transferência de renda são o primeiro passo. Quem tem fome tem pressa. Tem que garantir uma cesta básica, alimentação na mesa dessas famílias”, diz Belik. “O passo seguinte, de fato gigantesco, é atacar as questões da pobreza de forma multidimensional.”

Ele denuncia, nesse sentido, o aumento do gasto dos trabalhadores com transporte, que já ultrapassou as despesas com alimentação. “Como garantir alimentação se o sujeito vai gastar uma parte da transferência de renda para pagar o transporte para trabalhar? Aproximadamente 30 milhões estão em trabalhos precários e não têm vale-transporte. Gasta-se para trabalhar.”

A pobreza, pois, deve ser o alvo do próximo governo. “É passar dessa fase de programa ligados à segurança alimentar para programas mais gerais, que possam garantir a erradicação da pobreza, o objetivo número um do milênio da ONU”, conclui Belik.

Com informações da Folha de S.Paulo