A esquerda bem informada
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“Em meio à tensão com a Ucrânia, Rússia busca concessões do Ocidente”

Para Angelo Segrillo, as concessões teriam que vir principalmente em relação à expansão da Otan, “porque ninguém gosta de ter uma aliança militar na sua vizinhança”. Para o analista, a interdependência econômica entre Europa e Rússia podem ser o caminho para a paz.

O presidente dos EUA, Joe Biden, aprovou o envio de mais soldados para a Europa pela primeira vez em semanas. Com essa medida, o presidente russo acusou os EUA e países do Ocidente de ignorarem as demandas de Moscou e tentarem arrastar a Rússia para uma guerra. 

Em entrevista, o professor Angelo Segrillo, livre-docente de História Contemporânea da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, aponta que o grande problema do Kremlin é em relação à expansão da Otan.

“Porque a Otan era uma aliança militar da Guerra Fria voltada contra a União Soviética.” Com o fim dessa polaridade, “os russos esperavam que a Otan diminuísse ou desaparecesse, mas, ao contrário, ela tem se expandido em direção à Rússia”. Parte dessa expansão é o Ocidente dizer que a Ucrânia tem direito a compor a Otan, enquanto Putin diz que não vai aceitar isso.

O professor, que é autor de uma das obras mais importantes sobre a região – O Declínio da URSS: um estudo das causas -, destaca que as Revoluções Coloridas, em que um governo pró-russo é derrubado nos países da antiga União Soviética e é substituído por governos alinhados com EUA e Europa, criam essas tensões. Estas manifestações teleguiadas pelo ocidente também são vistas como formas sutis de expandir o poderio ocidental rumo ao controle da Rússia, o país com a maior reserva energética da Europa.

Expectativa e realidade

Apesar do tensionamento provocativo acusado pelo governo dos EUA, como se Putin estivesse prestes a entrar numa guerra com o resto da Europa, o professor Segrillo não acredita que este cenário seja o planejado, embora possa sair do controle a depender mais da Otan.

Na análise dele, Putin não invadiria a Ucrânia, pois o presidente russo busca por concessões do Ocidente. “Em princípio, eu acho que o Putin quer é extrair concessões do Ocidente, principalmente em relação à questão da expansão da Otan, porque ninguém gosta de ter uma aliança militar na sua vizinhança”, pondera. Ele lembrou que, quando a Rússia cogitou montar bases militares na Venezuela e em Cuba, os EUA consideraram inadmissível.

Portanto, Segrillo ressalta que, ao que parece, isso vai caminhar para alguma forma de acordo entre as partes, mesmo que tácito, como foi o acordo sobre a crise dos mísseis em Cuba. Os americanos se comprometeram em não mais invadir Cuba e retiraram suas bases da Turquia. Posteriormente, prometeram a Gorbatchev e Yeltsin não expandir a Otan, mas não cumpriram, e ainda registraram em documento (secreto) a possibilidade da entrada da Ucrânia na Otan, o que levou às atuais desconfianças do Kremlin.

Dubiedade das alianças

“A Europa é dependente da Rússia nessa questão energética, principalmente de gás, também de petróleo. Eles têm uma relação meio ambígua. […] A Rússia também depende dessas exportações que faz. Então, talvez por aí esteja um caminho para a paz, nessa interdependência econômica”, aposta o professor, que menciona a dubiedade de alguns governos europeus em relação ao conflito.

A China também acabou se pronunciando e acusou os Estados Unidos de serem os agressores, fomentando a expansão da Otan como uma agressão à Rússia. “A China está se aproximando da Rússia nessa questão, até porque os Estados Unidos estão tendo problemas com a China em relação a Taiwan. Então, eu acho que é uma forma de a China também defender sua posição lá”, afirma o professor. Com isso, os chineses apoiam a legitimidade da demanda russa.

O analista também observa como, surpreendentemente, os governos do Partido Republicano, nos EUA, têm sido mais flexíveis nas relações com a Rússia (desde Nixon com a URSS, quanto Donald Trump), do que os democratas, como Joe Biden, que segue na esteira belicosa do governo Obama.

O peão do xadrez

Segrillo explica que essa situação entre Rússia e Ucrânia é histórica e resultou em relações ambíguas, às vezes de repulsão, às vezes de aproximação, conforme os ucranianos estiveram sob disputa de diferentes impérios.

“Historicamente eles têm aquelas ligações que também são extremamente complexas, porque os ucranianos estavam divididos em vários impérios ao longo da história, sendo que russos, ucranianos e bielorussos já foram um povo só entre os séculos 9 e 12″, explicou o professor. Além disso, o país tem uma parte de ucranianos étnicos mais identificada com o ocidente e uma parte de russos étnicos mais próxima de Moscou.

A Rússia tem sido mais assertiva às ameaças externas desde que saiu da profunda recessão dos anos 1990, com Boris Yeltsin. Recuperada economicamente, está permanentemente preparada para agressões a seu território. Segrillo lembrou que ninguém queria a Primeira Guerra Mundial, no entanto, uma tensão localizada (Sérvia e Áustria) levou as alianças militares a se confrontarem tornando aquele, um conflito generalizado. Ele considera importante sempre lembrar esses episódios didáticos.

Edição de entrevista à Rádio USP

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