Pesquisa analisa nostalgia soviética que fortalece Putin

Pesquisa analisa o fenômeno saudosista da “nostalgia soviética”, que impacta toda a produção cultural da Rússia e é explorada pelo presidente russo

A "nostalgia soviética” é caracterizada pela revalorização da experiência vivida pela Rússia a partir de 1917, quando aconteceu a revolução socialista que culminou na criação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), até 1991, com a dissolução da URSS  Foto: Moises Gonzalez/Unsplash

A pesquisa realizada pelo historiador Henrique Canary analisa o sentimento nostálgico em relação aos tempos da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) que a população russa tem experimentado. Trata-se de um fenômeno contemporâneo que impacta toda a produção cultural da região.

A tese de doutorado de Canary, defendida no último mês de outubro na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, revela também como este sentimento nostálgico é explorado por Vladimir Putin para reforçar os sentimentos patrióticos, nacionalistas e religiosos do povo russo. Ele extrapola sua análise historiográfica para um aspecto político contemporâneo ao considerar que essa dimensão simbólica é utilizada como instrumento de dominação cultural.

“Nostalgia soviética” foi o nome cunhado por pesquisadores para a revalorização da experiência vivida pela Rússia entre 1917, quando ocorreu a revolução socialista que culminou na criação da União Soviética, até 1991, ano da dissolução da URSS.

Canary viveu na Rússia de 1996 a 2003, onde se graduou em História e, em seguida, fez mestrado. Nesse período que esteve na região, teve a oportunidade de observar in loco como esse saudosismo vinha influenciando todos os campos sociais – cultura, política, relações comerciais e interpessoais.

Segundo o pesquisador, a produção cultural também foi impactada por essa visão romântica do passado. Filmes, livros, músicas e programas televisivos remetiam a uma era nostálgica soviética, tempos em que a URSS era uma potência mundial. Ressurgem também marcas tradicionais que lembram o “cheiro e o gosto” da infância e da juventude dos russos: vodka, sorvete, suco, embutidos, iogurte, cerveja, etc.

“Nem mesmo as inúmeras tentativas de apagamento da memória (desconstrução de símbolos soviéticos, mudanças de nomes de ruas e derrubada de monumentos ícones do comunismo, por exemplo) conduzidas por Boris Yeltsin (1991-1999), o primeiro presidente da Rússia após o colapso econômico da União Soviética, e suas reformas traumáticas liberalizantes foram suficientes para deixar no passado lembranças do império soviético”, relata Canary.

Produção cultural impactada – TV Russa

A pesquisa para a tese de doutorado Nostalgia Soviética: memória e cultura na Rússia contemporânea foi baseada, principalmente, na análise de um programa chamado Namiédni – 1961-1991 (tradução: Recentemente 1961-1991 – nossa era), documentário de alta audiência que foi levado ao ar diariamente pela rede estatal russa, entre os anos de 1997 e 1998. O pesquisador também analisou outras produções culturais das décadas de 1990, 2000 e 2010, além de pesquisas de opinião sobre temas relacionados ao passado soviético. 

O programa Namiédni fazia uma retrospectiva de fatos positivos acontecidos entre os anos de 1961 e 1991, com enfoque apenas no processo do “lembrar”, sem se ater à profundidade dos fatos históricos. “A proposta era valorizar e captar o sentimento nostálgico (nostalgia reflexiva) que já vinha sendo gestado na sociedade, que passou, a partir de então, a ter seus representantes na mídia de massa”, diz o pesquisador.

Henrique Canary, autor da pesquisa que deu origem à tese “Nostalgia soviética: memória e cultura na Rússia contemporânea” – Foto: Arquivo pessoal

Iuri Gagarin

Um dos fatos abordados pelo programa foi a viagem espacial do cosmonauta soviético Iuri Gagarin, primeiro humano a viajar pelo espaço, em abril de 1961. A abordagem do voo foi feita com grande entusiasmo e sentimentalismo pelo apresentador, igualmente a outras reportagens que valorizavam o balé soviético, a qualidade do espumante russo, eventos esportivos, dentre outros. De modo geral, a vida era apresentada no programa Namiédni como alegre e com “bem-estar geral”, exatamente o oposto da imagem cinzenta e predominante dos anos de 1990, quando, sob o comando de Yeltsin, tudo que estava relacionado ao comunismo era tratado como atrasado, diz o pesquisador.

Questionado sobre a veracidade histórica da programação, o apresentador Parfiônov dizia que “o importante não era a ordem dos eventos, mas os estereótipos que se formavam da experiência nacional”. Ao todo, foram exibidos 60 programas, de 45 e 60 minutos, cada.

A programação era dirigida a um público que viveu pessoalmente os fatos narrados e procurava resgatar e exaltar conquistas econômicas e políticas, além de acontecimentos cotidianos das pessoas comuns. “Esse formato acentuava a sensação de pertencimento e de identidade do telespectador com o programa”, diz o pesquisador.

O impacto do programa foi tanto que, desde a estreia, em 1997, ele já foi reprisado quatro vezes pela TV russa em 2011-2012, 2012-2013, 2014-2016 e em 2017. Também deu origem a uma coleção de livros e a outras séries similares.

Canary analisou também dados do Instituto de Pesquisa Levada-Tsentr, sediado em Moscou, que, desde março de 1992, realiza pesquisas anuais sobre a relação dos russos com o passado soviético. Diante da pergunta “Você lamenta a dissolução da URSS?”, para o período de 1992 até 2018, a maioria dos entrevistados respondeu sim à pergunta. Resultado semelhante foi obtido pelo VTsIOM, um outro instituto de pesquisa.

Segundo a pesquisa, o saudosismo reflexivo (o tipo disseminado pelo programa televisivo), a saudade do lar ou dos tempos passados, é parte fundamental da experiência humana ao longo da história.

Com a ascensão de Putin ao poder, nos anos 2000, o Estado passou a promover “uma nova ideia nacional, profundamente patriótica, cristã ortodoxa e nacionalista, diferentemente da orientação do governo Yeltsin, que caminhava em direção ao Ocidente. Aquilo que era um mero lembrar (saudosismo reflexivo) se transformou em uma política cultural específica (saudosismo restaurativo), voltada para o renascimento da grandeza passada”, explica o historiador.

Canary observa os eventos na Ucrânia como parte deste fenômeno cultural nostálgico. Até os anos 50, a península da Crimeia fazia parte da Rússia, quando Khruschov (secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética), por um ato administrativo, passou a Crimeia para a Ucrânia.  Hoje, parte do território é predominantemente de etnia ucraniana e a outra metade russa.

A escritora russa Svetlana Boym, professora de literatura comparada da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, citada na pesquisa, diz que “a nostalgia reflexiva (a saudade pura e simples do que se passou) se transformou em nostalgia restaurativa (desejo de restauração do passado glorioso)”, se referindo aos planos de manutenção do poder do atual presidente.  

Conheça a tese de doutorado Nostalgia Soviética: memória e cultura na Rússia contemporânea, defendida em outubro de 2021.

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