Declaração de Putin e Xi projeta liderança mundial alternativa, por Celso Amorim

“O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, confirmou sua viagem à Rússia. A pergunta que inevitavelmente tem de ser feita é se ele tem noção das complexidades geopolíticas deste momento crucial. Há razões para supor que não”

Xi Jiping e Vladimir Putin

A declaração conjunta de Vladimir Putin, presidente da Rússia, e Xi Jinping, líder chinês, cristaliza um processo de imenso significado geopolítico e constitui, em si mesma, o fato singular mais importante desde os eventos que marcaram o fim da Guerra Fria, em particular, a derrubada do Muro de Berlim e, sobretudo, a dissolução da União Soviética.

Mesmo sem a força jurídica de um tratado, a declaração expressa, com uma clareza nunca antes alcançada, uma realidade até aqui vista apenas como uma possibilidade: o fim da era da hegemonia quase absoluta dos Estados Unidos sobre os destinos do mundo.

Em um documento tão denso quanto longo, os líderes do país mais populoso do planeta (e, em breve, também, o economicamente mais forte) e o país com maior território, que coincidentemente é também o que divide com os EUA a primazia em potencial bélico estratégico, traçam os delineamentos de uma ordem mundial baseada em conceitos que diferem substancialmente daqueles sustentados pela potência até aqui dominante. Injetam sua própria visão de ­democracia e desenvolvimento e inserem questões cruciais como a defesa dos direitos humanos em contextos histórico-culturais frequentemente desprezados pela nação norte-americana. São cuidadosos em explicitar a necessidade de maior equilíbrio nas relações internacionais, de modo a levar em conta os interesses de países mais fracos ou mais débeis.

Em uma atitude rara para potências nucleares, colocam o desarmamento praticamente no mesmo pé da não proliferação do arsenal. Chegam a sugerir a necessidade de democratizar a ordem mundial, em uma afirmação que, para muitos, pode parecer de sinceridade duvidosa, à luz de posicionamentos passados no que toca, por exemplo, à reforma do Conselho de Segurança da ONU. Curiosamente, exaltam instituições cuja origem está ligada a iniciativas da superpotência supostamente em declínio e que ela própria tem abandonado em tempos recentes, como as Nações Unidas e a Organização Mundial do Comércio. Por outro lado, em um aspecto que nos diz respeito diretamente, o documento valoriza os BRICS, demonstrando a consciência dos dois líderes em relação à necessidade de alargar a base de sustentação da nova ordem.

De forma pouco usual, o documento combina densidade conceitual com referências à realidade concreta da atualidade político-estratégica. Claramente, os dois líderes criticam os esforços de ­Washington em expandir o alcance da Otan e deploram o seu apoio às “revoluções coloridas”, como a que levou ao poder o governo marcadamente contrário a Moscou na Ucrânia. Ao mesmo tempo, condenam as ações norte-americanos na região do Indo-Pacífico, citando nominalmente alianças lideradas pelos Estados Unidos, como a parceria quadrilateral (envolvendo Índia, Japão e Austrália) e a iniciativa de apoio à transferência de tecnologia de propulsão nuclear de submarinos a Camberra. No caso da doutrina de “uma única China”, a declaração é ainda mais explícita, nomeando Taiwan como parte integrante da nação chinesa.

Os dois líderes, que modestamente se autointitulam simplesmente como “as partes”, invocam uma amizade sem limites e projetam uma aliança, que constitui, de fato, uma liderança alternativa aos projetos de ­Washington para o mundo. Para quem via riscos da “Armadilha de Tucídides” na ultrapassagem dos Estados Unidos pela China, em termos econômicos, os desafios se tornaram ainda mais complexos, com a criação de um grande bloco eurasiano capaz de desafiar o poderio de ­Washington em terrenos variados, do tecnológico ao militar, sem falar no soft power em relação às nações em desenvolvimento, sem deixar de lado temas vitais da atualidade, como mudança climática e cooperação no enfrentamento de pandemias.

Para os que ansiavam por uma nova ordem mundial, ela pode estar a caminho. Resta saber se atenderá plenamente aos desejos de justiça e equilíbrio embalados por muitos. Mais imediatamente, será preciso verificar como os Estados Unidos reagirão a esse desafio colocado à sua hegemonia. Contrariamente ao que a dupla Richard Nixon e Henry Kissinger buscou na Guerra Fria, os movimentos recentes de Washington resultaram na consolidação de uma aliança que muitos reputavam como improvável entre duas potências de imensa dimensão. O dilema entre cooperação e conflito nunca esteve tão próximo.

O que a declaração diz é que o mundo mudou. Cabe a cada Estado e/ou a cada região (como a América do Sul) mostrar como vai se inserir na nova realidade. A viagem do presidente da Argentina, ­Alberto Fernández, a Moscou e Pequim, assim como a adesão do país ao projeto da Nova Rota da Seda, é uma indicação do que pode ocorrer.

O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, confirmou sua viagem à Rússia. A pergunta que inevitavelmente tem de ser feita é se ele tem noção das complexidades geopolíticas deste momento crucial. Há razões para supor que não.

Publicado originalmente em CartaCapital

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