Qual será o impacto da legião estrangeira da Ucrânia na guerra?

Estrangeiros na Ucrânia tem levantado preocupações com milícias de direita que se formam e voltam para seus países com visões extremistas.

Combatentes do Reino Unido prontos para partir de Lviv, no oeste da Ucrânia, em direção à linha de frente no leste

Em 26 de fevereiro, apenas dois dias após a Rússia ter invadido a Ucrânia, o presidente ucraniano Volodymyr Zelenskyy convocou voluntários estrangeiros para se juntarem às forças armadas ucranianas, anunciando a criação de uma legião internacional.

Dois dias depois, o presidente assinou um decreto dispensando vistos para qualquer cidadão estrangeiro que desejasse se juntar ao exército ucraniano, enquanto o Ministério das Relações Exteriores lançou um site com detalhes sobre como se inscrever.

Hoje, viralizou o vídeo do instrutor de tiro Tiago Rossi, de Maringá (PR), que partiu para lutar na Legião Estrangeira na Ucrânia contra a Rússia e acabou fugindo para a Polônia ao ver a realidade do conflito. Ele relata em vídeo que a base inteira da Legião foi destruída por um caça das Forças Aeroespaciais da Rússia com a morte da maioria dos soldados estrangeiros.

“Lá tinha militares das forças especiais do mundo inteiro. A informação que a gente tem é que todo mundo morreu. Eles (russos) acabaram com tudo. Vocês não estão entendendo, acabou, acabou. A Legião foi exterminada de uma vez só. Eu não imaginava o que era uma guerra”, lamentou.

A história de militantes de direita como Rossi, que deixam o país rumo §a Ucrânia em busca da adrenalina de uma aventura é cada vez mais comum. No entanto, traz um debate sobre a legalidade desse incentivo de alguns países a seus cidadãos participarem da guerra em outra nação. Além disso, o recurso serve mais à propaganda de guerra que à estratégia de defesa, como mostra o caso do brasileiro.

Algumas autoridades europeias receberam bem o convite e encorajaram seus cidadãos a se voluntariarem. Pelo menos dois funcionários – o parlamentar letão Juris Jurašs e o ex-ministro da Defesa da Geórgia, Irakli Okruashvili – deram o exemplo, viajando pessoalmente para a Ucrânia para se juntar ao esforço de guerra.

Nos últimos dias, as autoridades ucranianas disseram que cerca de 20.000 pessoas de 52 países se inscreveram para se juntar à legião.

Enquanto isso, na sexta-feira, o presidente russo, Vladimir Putin, também pediu que estrangeiros sejam autorizados a se juntar ao exército russo na guerra na Ucrânia, enquanto o ministro da Defesa, Sergei Shoigu, disse que cerca de 16.000 voluntários estão prontos para fazê-lo.

Essas alegações de Kiev e Moscou não foram verificadas de forma independente e alguns observadores sugeriram que podem ser movimentos de relações públicas, parte da guerra de informação. A participação anterior de combatentes de extrema-direita em ambos os lados da guerra na região leste de Donbas, na Ucrânia, no entanto, levantou preocupações sobre um possível influxo de voluntários com opiniões de extrema-direita.

Questões de legalidade

Embora autoridades do Canadá, Reino Unido, República Tcheca, Dinamarca, Letônia e outros países tenham incentivado aberta ou tacitamente seus cidadãos a se juntarem ao exército ucraniano em sua luta contra a Rússia, também houve dúvidas sobre a legalidade de tal empreendimento.

Países como o Reino Unido e o Canadá têm leis que proíbem seus cidadãos de participar de ações militares contra um país com o qual não estão em guerra. A República Tcheca também aprovou uma legislação que torna ilegal a adesão às forças armadas de outro estado. Outros países, como a Alemanha, alertaram que, se algum de seus cidadãos que se juntar ao esforço de guerra na Ucrânia violar a lei internacional, será processado.

No passado, vários países europeus julgaram alguns de seus cidadãos que lutaram em ambos os lados do conflito de oito anos no Donbas.

A Ucrânia não é o primeiro país europeu a recrutar estrangeiros para o seu exército. A França, por exemplo, tem uma legião especial para estrangeiros desde o século 19, enquanto o Reino Unido permite que pessoas da Commonwealth of Nations, composta por ex-colônias britânicas, sirvam em suas forças armadas.

As autoridades ucranianas insistiram que os candidatos terão que passar por um procedimento de habilitação, que inclui a prova de um registro criminal limpo. No entanto, houve relatos de que dezenas de estrangeiros cruzaram a fronteira para a Ucrânia sem seguir o procedimento oficial. Já é perceptível a presença de mercenários e milícias atuando fora do comando do exército ucraniano.

O primeiro-ministro tcheco Petr Fiala anunciou que os cidadãos tchecos que forem lutar na Ucrânia não enfrentarão consequências legais ao retornarem. A atitude tem sido diferente com europeus que se juntam ao Estado Islâmico, por exemplo.

Relações públicas e propaganda

Embora o governo ucraniano tenha dito que 20.000 estrangeiros se inscreveram para participar da luta contra a Rússia, não forneceu dados sobre quantos deles realmente chegaram ao país.

Kacper Rekawek, pesquisador do Centro de Pesquisa sobre Extremismo (C-REX) da Universidade de Oslo, também expressou dúvidas sobre se dezenas de milhares de estrangeiros realmente chegarão à Ucrânia.

“É muito menor [do que está sendo dito na mídia], mas será maior que 2014”, disse Rekawek, referindo-se ao número de voluntários estrangeiros que se juntaram à guerra no Donbas entre forças ucranianas e separatistas apoiados pela Rússia.

De acordo com algumas estimativas, cerca de 17.000 combatentes estrangeiros participaram de ambos os lados do conflito ucraniano entre 2014 e 2021. Unidades especiais foram criadas para alguns dos maiores grupos de estrangeiros, incluindo um batalhão georgiano e um checheno.

É improvável que a participação de voluntários estrangeiros do lado ucraniano faça uma grande diferença na dinâmica geral da guerra, disse Rekawek. Em sua opinião, a utilidade da Legião Estrangeira está em chamar a atenção da mídia.

“Acho que é um exercício de relações públicas. Cabe à Ucrânia mostrar que ‘OK, temos pessoas conosco de todo o mundo’… É uma tentativa de internacionalizar isso”, disse Rekawek.

Preocupações de extrema-direita

O recrutamento de estrangeiros para o exército ucraniano levantou preocupações sobre o possível influxo de simpatizantes da extrema-direita no país. A erupção dos combates no Donbas em 2014 levou ao empoderamento e armamento de grupos de extrema direita ucranianos, particularmente o Batalhão Azov .

Em novembro de 2014, o grupo foi incorporado à Guarda Nacional Ucraniana e posteriormente sua liderança se separou da unidade e formou um partido político. Embora tenha tido algum sucesso eleitoral no início, o partido não conseguiu obter apoio suficiente para entrar no parlamento nas últimas eleições, em 2019.

Mesmo depois de se tornar uma unidade oficial da Guarda Nacional, o Batalhão Azov continuou a recrutar voluntários estrangeiros para lutar no Donbas. Apesar das preocupações expressas por funcionários dos EUA, também recebeu treinamento de forças ocidentais.

De acordo com Oleksiy Kuzmenko, um jornalista investigativo ucraniano-americano, a atividade de extrema-direita dentro das forças armadas ucranianas não se limita a Azov. Em um artigo de 2021 , ele documentou “um grupo de cadetes e oficiais militares de extrema direita bem no meio do que antes da eclosão da guerra era um dos principais centros de treinamento do Ocidente na Ucrânia, a Academia Nacional do Exército”.

A possibilidade de membros de grupos de extrema-direita viajarem para a Ucrânia alarmou alguns países ocidentais. Autoridades alemãs disseram à mídia local que estão monitorando indivíduos conhecidos por seu ativismo de extrema-direita e estão tentando impedi-los de viajar para a zona de conflito. De acordo com o Ministério do Interior alemão, sabe-se que menos de 10 cidadãos alemães com afiliações de extrema-direita foram para a Ucrânia.

No entanto, experiências anteriores com combatentes estrangeiros retornando à Europa ou permanecendo após um conflito – como no caso da Bósnia – levantaram questões sobre o retorno de voluntários estrangeiros após o fim da guerra na Ucrânia.

“[Existe] a questão do ‘software’ militar – as habilidades que as pessoas adquirem, a maneira como seu pensamento muda e o que elas podem considerar aceitável na busca de objetivos políticos”, disse Stefan Wolff, professor de ciência política da Universidade de Birmingham, nos Estados Unidos.

“Se pensarmos que existe o risco de a guerra na Ucrânia atrair pessoas com atitudes já ambíguas em relação à democracia liberal, a exposição à brutalidade da guerra, na minha opinião, aumentaria o risco de consolidar ainda mais essas atitudes.”

Para ele, encorajar os europeus a se juntarem à luta na Ucrânia não é uma estratégia razoável.

Da Aljazira

Autor