Elifas Andreato (1946-2022), o artista de cores, brasilidade e combate

Artista gráfico, morreu nesta terça-feira (29), vítima de infarto, aos 76 anos

Montagem: Caminhada de Silêncio

Ele assinou cartazes para filmes, peças, exposições e shows. Ilustrou páginas da grande mídia, da imprensa alternativa e de livros. Mas foi na criação de capas de discos de vinis que a genialidade de sua marca autoral se tornou conhecida. Foram mais de 350 álbuns que contaram com sua colaboração – a começar com A Dança da Solidão (1972), de Paulinho da Viola.

Graças a seu traço único, repleto de cores e brasilidade, Elifas Andreato – que morreu nesta terça-feira (29), vítima de infarto, aos 76 anos – já entraria para a posteridade como um dos maiores artistas gráficos do Brasil. Mas Andreato foi mais do que um esteta, um criador, um artista.

Avesso ao diletantismo, contrário à pregação da ars gratia artis – a arte pela arte –, injetava mensagens e significados em suas composições. Era um homem da resistência, de esquerda. “Toda a minha vida profissional foi dedicada ao combate”, declarou em 2012, numa entrevista a Joanne Mota para o Vermelho. “Sempre atendi ao que a história me convidou a fazer, sempre estive ao lado das causas que representaram a sociedade.”

Paranaense de Rolândia, nascido em 1946, Andreato era filho de lavradores e passou a infância em cortiços, sem frequentar a escola. “Desde os 8 anos, trabalhei fazendo, na roça, serviço de criança: colher algodão, limpar cova de café, torrar amendoim para paçoca”, contou ele, em entrevista a Roseli Fígaro. “Depois, já na cidade de São Paulo, trabalhei carregando cesta de feira e em outras atividades que toda criança brasileira pobre ainda faz.”

Autodidata, só aprendeu a ler aos 15 anos. A despeito das dificuldades, logo revelou o talento para as artes. Ainda criança, recolhia materiais recicláveis e montava pequenas esculturas. Adolescente, fazia caricaturas para familiares, amigos e companheiros de trabalho.

“Meu irmão mais velho, desde pequenino, rabiscava seus sonhos e ia mudando nosso destino”, afirmou, em texto publicado em suas redes sociais e pelo Portal Vermelho, o ator Elias Andreato, ao anunciar a morte de Elifas. “Tudo o que ele tocava com as suas mãos virava coisa colorida, até a dor que ele sentia era motivo de tinta que sorria.”

Uma vez em São Paulo, ainda adolescente, Elifas Andreato começou a trabalhar na fábrica de fósforos Fiat Lux, na Vila Anastácio. Com a indicação de amigos, passou a desenhar murais e a decorar, com seus desenhos, as festas operárias. Em 1967, aos 21 anos, o operário desenhista virou estagiário na Editora Abril. Lá, com o lançamento, em fascículos, da inesquecível coleção História da Música Popular Brasileira, saiu do anonimato. A cada nova capa que ilustrava para a série, tornava-se mais e mais reconhecido e aclamado.

“Foi o que definiu toda a minha carreira, pois realizei um trabalho gráfico com independência e de qualidade. Repercutiu muito”, disse, certa vez, Andreato. “Tive a honra de conviver com Pixinguinha, que foi o personagem do fascículo número 2. Perguntei se havia na música brasileira alguém que pudesse substituir a santíssima trindade – Donga, João da Baiana e ele. Pixinguinha disse: ‘Não, meu filho. Nós somos um poema’. Na hora, não entendi, mas depois de fechar o fascículo ficou claro para mim. ‘Esse homem é um poema’ foi a chamada de capa.”

Outra relação marcante foi com Vinicius de Moraes. Filho de um homem rude e autoritário, Andreato não queria ser pai. Mudou de ideia enquanto criava a capa para o álbum Vinicius e Toquinho, de 1975. A música do disco que mais o sensibilizou foi O Filho que eu Quero Ter. Numa conversa com Vinicius, relatou o impacto que música lhe causara. “A vida não será completa e você não será capaz de perdoar seu pai se não tiver filhos”, disse-lhe o “Poetinha”. Andreato teve dois filhos e disse ter “pagado a dívida com Vinícius”, apenas em 2012, com a exposição O Haver – Pinturas e Músicas para Vinicius, na Galeria BNDES, no Rio de Janeiro,

Seu trabalho, embora popular, não era uma unanimidade. Porém, se as produtoras o criticavam e pediam concessões ao marketing, não cedia. Para azar dos empresários, os cantores ficavam do lado de Andreato.

Em 1979, quando Chico Buarque gravou um álbum com a trilha da peça Ópera do Malandro, a Philips tentou vetar a capa proposta pelo artista gráfico. O nome de Chico aparecia discretamente, sem foto. Em vez disso, havia a ilustração de um homem vadio, de terno e chapéu brancos, deitado indigentemente no banco de uma praça. O executivo de vendas da produtora não conseguiu demover Andreato e resolveu apelar a Chico – sem sucesso. “Quem vende disco é você. Eu sei fazer discos. O Elifas sabe fazer capas”, reagiu o cantor.

É extensa a lista dos ícones da Música Popular Brasileira que tiveram capas de discos estampadas por Elifas Andreato. Além de Paulinho, Pixinguinha, Chico e Vinicius, ele se envolveu em projetos de Adoniran Barbosa, Caetano Veloso, Carmen Miranda, Clara Nunes, Clementina de Jesus, Elis Regina, Martinho da Vila, Noel Rosa, Tim Maia, Tom Zé, Toquinho e Zeca Pagodinho. Quando os CDs substituíram os LPs como os principais produtos físicos da indústria fonográfica, o maior capista de disco do Brasil se desinteressou.

Andreato cobrava caro das produtoras, mas fazia preços especiais e até trabalhos voluntários para o movimento sindical e para a imprensa alternativa. Em 1969, em meio à escalada da repressão da ditadura militar, aderiu à AP (Ação Popular) pelas mãos do jornalista Carlos Azevedo, que o conheceu na Abril. Ao mesmo tempo em que, como profissional, ilustrava capas de revistas como Realidade e Veja – símbolos da grande mídia –, colaborava militantemente para veículos alternativos – a “imprensa nanica”.

Foi em decorrência desse vínculo com a AP que Andreato se tornou responsável pelas ilustrações – e também pela impressão clandestina e caseira, num mimeógrafo – do jornal Libertação. Mas nenhum material produzido pela Ação Popular superou, em ousadia e importância, o Livro Negro da Ditadura Militar (1972), que, no auge da censura oficial, trazia denúncias de violações dos direitos humanos no Brasil.

“O Duarte Pereira era o ‘pai da criança’ e escreveu uma parte dos capítulos, com um texto excepcional, muito bom. O Carlos Azevedo, a Jô Moraes e eu éramos os co-autores – cada um pegou dois ou três capítulos”, lembra o jornalista Bernardo Joffily. Ao casal Divo e Raquel Guisoni, cabia a etapa da impressão. Já Andreato participou do projeto com a criação da capa do livro – uma caveira com um quepe de general.

Ocorreu, porém, um acidente técnico com a ilustração original, e Bernardo ficou encarregado de reproduzi-la com a maior fidelidade possível. “Como copista, tive de pegar a matriz avariada e redesenhá-la, traço por traço”, conta o jornalista, 50 anos depois.

Um dos fundadores dos jornais Opinião e Movimento, ao lado de Raimundo Pereira, Carlos Azevedo e outros nomes, Andreato sabia de seu papel social e histórico. “Entrei nesses movimentos todos, nessas publicações, porque passei a fazer parte de um seleto time que tinha coragem para realizar aquilo. Muita gente hoje lê a história, mas não imagina o que era de fato”, contou na entrevista a Roseli Fígaro. “Nós éramos todos guerrilheiros, militantes, e toda vez que me chamaram para desenhar alguma coisa com a qual eu concordava, sempre fiz.”

Por algumas ilustrações, chegou a ser perseguido. O desenho em que Dom Paulo Evaristo Arns aparece com uma a roupa vermelha, após celebrar a missa em memória do estudante Alexandre Vanucchi, morto pela ditadura, lhe rendeu a prisão e algumas agressões. “Quando o censor viu aquilo impresso, a primeira coisa que ele fez foi me dar um tapa na cara! Ele se sentiu ludibriado com aquilo, pois tinha aprovado um desenho preto e branco”, afirmou Andreato. “Então ele me pegou pelos fundilhos e, juntamente com Raimundo Pereira e Tarik de Souza, jogou-me num camburão. Ficamos presos umas três horas. Era humilhante o que eles faziam. Além de baterem, o interrogatório era extremante violento e repleto de insultos.”

Amigo do PCdoB, Andreato teve presença na Tribuna da Luta Operária, o jornal lançado pelos comunistas em 1979, no rastro da Lei da Anistia. O Partido, iniciando um período de semiclandestinidade, fez valer a sentença de Lênin e adotou um jornal como um “organizador coletivo”. Os militantes “tribuneiros” se empenhavam na venda e na circulação do semanário.

Capa Tribuna Operaria 0 – Reprodução

No logotipo criado por Andreato, enfatizavam-se os termos “Tribuna” e “Operária”, o que levou a publicação a ficar mais conhecida pelo nome abreviado, sem o “da Luta”. “Para ajudar no esforço do jornal, ele também doou o quadro com o rosto de três operários”, diz Bernardo. “O quadro foi reproduzido no primeiro número do jornal e fizemos uma rifa para arrecadar fundos.” Em 2012, os comunistas também confiaram ao artista a concepção visual do aniversário de 90 anos do PCdoB.

Ainda em 1979, Andreato ajudou o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC com um de seus mais célebres e contundentes cartazes. Dezenas de milhares de operários estavam em greve, e o sindicato pediu ajuda a diversos artistas. Andreato cedeu à entidade um cartaz que mostrava um trabalhador desesperançado, sob classificados de empregos – comuns nos grandes jornais da época – e pichações contra a ditadura. Estima-se que 25 mil cópias da obra foram vendidas, incrementando o fundo de greve.

Andreato deu aulas de artes na USP (Universidade de São Paulo) e, à frente da agência Andreato Comunicação e Cultura, editou o Almanaque Brasil de Cultura Popular. Autor de estatuetas para prêmios concedidos pela Arquidiocese de São Paulo, pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) e pela Organização das Nações Unidas (ONU), também recebeu homenagens. É o caso da Ordem do Mérito Cultural, de 2009, e do Prêmio Vladimir Herzog, de 2011.

Jamais deixou de cooperar com os movimentos sociais – notadamente, com o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). Mas a criação artística estava em ritmo mais lento. Um de seus trabalhos mais recentes foi a capa do CD Aldir Blanc Inédito, lançado em 2021, um ano após a morte do compositor carioca por Covid-19.

O corpo de Andreato foi cremado na tarde desta terça-feira (29), no Crematório da Vila Alpina. Sua última entrevista, gravada em fevereiro pela Rádio Bandeirantes, tem exibição prevista para o próximo sábado (2). Já a cenografia para uma nova montagem de Morte e Vida Severina, dirigida pelo irmão Elias Andreato, será conhecida em abril, quando a peça estrear. Mesmo morto, o artista das cores, da brasilidade e do combate há de nos surpreender.

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