Dalmo de Abreu se eterniza na persistência por um estado de direito

Nesta sexta feira, 8 de abril, deixando um vazio enorme na sociedade brasileira, na comunidade jurídica, entre aqueles que prezam […]

Dalmo de Abreu Dallari

Nesta sexta feira, 8 de abril, deixando um vazio enorme na sociedade brasileira, na comunidade jurídica, entre aqueles que prezam a democracia, entre os humanistas e defensores dos direitos e as liberdades, partiu o professor Dalmo de Abreu Dallari.

A grandeza de sua vivência, experiência e legado, se estende a várias áreas do conhecimento científico e se projeta a diversas dimensões da vida. No meio da tristeza, lembramos os testemunhos de amigos e amigas, de conhecidos e conhecidas ao longo da nossa permanência no Brasil, que destacaram o papel do jurista e professor na defesa do Estado de Direito, da Constituição e dos direitos fundamentais. Acompanhando essas palavras, são também inúmeros os depoimentos da sua gentileza, galhardia e amabilidade. É dizer, Dalmo de Abreu Dallari resumia e sintetizava, com folga e para alegria dos que compartilhavam um momento com ele, as melhores qualidades de um ser humano.  

E lembramos também das ocasiões nas quais tivemos a felicidade de cumprimentá-lo, estreitar sua mão ou lhe dar um abraço. Estive a seu lado em bancas realizadas na PUC/SP e escutei com admiração seus argumentos sólidos e bem costurados, nos quais ficava sempre a lição de defesa intransigente dos direitos humanos. Tive a honra de que se interessasse, ao finalizar uma dessas jornadas acadêmicas, por trocar ideias sobre a problemática dos indígenas na América Latina, constatando que tinha um conhecimento primoroso da realidade continental. E é impossível esquecer a sua cordialidade quando me indagou sobre uma obra de García Márquez que ele “não tivesse lido” quando nos encontramos um começo de noite na livraria Martins Fontes. Para minha sorte havia um exemplar de “Do Amor e Outros Demônios”, que adquiri e lhe ofereci como um agradecimento por tantos ensinamentos na sua obra Elementos de Teoria Geral do Estado, que me acompanhava nos meus estudos e servia de referência obrigatória para o ensino da disciplina nas faculdades nas quais ministrava aulas.   

Muito pode ser dito da sua vida e trajetória, de seus anos de USP ou na vida institucional, mas o que marca e transversaliza seu itinerário é sua prática e engajamento em favor da democracia, ainda nas piores situações atravessadas pelo Brasil. Veja-se que a primeira edição dessa obra, que aborda de maneira tão didática, sem perder brilho e detalhamento, as questões inerentes ao Estado, veio à luz em 1971. Ou seja, em plena ditadura, em tempos de um ignominioso regime de exceção. Avançar na análise do Estado, da forma como ele conduzia, quando nem Constituição existia porque rasgada no 64, no meio de um Estado de não-direito, na acepção de Duverger, quando tudo é fiscalizado e censurado, não é somente um atestado de coragem senão a demonstração do caráter e do autoencargo significativo e essencial de semear, apesar das adversidades, uma cultura de responsabilidade democrática.

Essa característica do ser humano que se coloca á frente, lança em riste contra os inimigos da liberdade, é sem dúvida um exemplo dos mais relevantes para toda uma geração de brasileiros e brasileiras e de todos e todas as que pisamos este solo. E sempre sobre a base do diálogo, da persistência denodada, como quando ajudou à criação da Comissão Justiça e Paz ou assumiu a direção da Faculdade de Direito do Largo São Francisco.     

O prefácio da primeira edição apontava para o novo significado do intervencionismo estatal, após a Segunda Guerra. Com autoridade e perspicácia, o professor destacava a transformação que acontecia porque,

“De fato, chamado primeiramente a intervir para assegurar a justiça social, contendo os abusos das grandes forças político-sociais, o Estado foi primeiramente combatido por essas forças, as quais, entretanto, verificando a inevitabilidade da intervenção, mudaram seu comportamento, procurando dominar o Estado e utilizá-lo a seu favor, gerando uma nova espécie de intervencionismo”.  

Já na segunda edição, o professor notava que

“(…) não basta a garantia formal da liberdade onde pessoas, grupos humanos, populações numerosas, sofrem profundas discriminações e não tem possibilidade de acesso aos benefícios proporcionados pelas criações da inteligência humana e pela dinâmica da vida social. Por tudo isso, e mais do que antes, o conhecimento do Estado e de seu significado, positivo ou negativo, para a preservação e promoção dos direitos fundamentais da pessoa humana, é indispensável”.

Em obra na qual aborda “O Poder dos Juízes”, publicada em 1996, o professor Dalmo destacava o papel da Magistratura nas sociedades democráticas e submetidas ao império do direito, para a proteção dos direitos humanos.  É preciso ter muito claro, ensinava, que para a real proteção desses direitos não é suficiente, senão pelo contrário, muito perigoso só cumprir formalidades judiciárias e ter uma aparência de proteção judicial, que adormece a vigilância e que não é, porém, mais do que uma ilusão de justiça.  Nenhuma advertência resultaria mais propícia e oportuna na mais recente história do país. 

E talvez na mais bela das obras escritas nestas latitudes sobre as origens do Constitucionalismo, intitulada A Constituição na vida dos Povos, o professor Dalmo destacava a relevância desta autêntica conquista da humanidade. O Constitucionalismo, expôs com excelência, não foi resultado de alguma proposição teórica abstratamente formulada, mas resultou do reconhecimento de peculiaridades da pessoa humana, de necessidades e aspirações comuns a toda a humanidadeÉ um produto da história e um elemento fundamental para a construção de sociedades justas.

Nas aulas de Fundamentos de Direito Público na PUC/SP, nos primeiros meses dos estudos jurídicos de tantos e tantas jovens despertos ao conhecimento, continua ser necessário frisar, como em 1971 o fazia o professor Dalmo, que “ (…) os que se preparam para exercer qualquer profissão jurídica têm, mas do que qualquer pessoa, absoluta necessidade de conhecer o Estado, sua organização e seu funcionamento, para desempenharem adequadamente suas respectivas funções, que os colocarão sempre em estreito relacionamento com os mandamentos do Estado ou com os próprios agentes estatais.”.

Só resta afirmar, em esta coluna que não tem, em momento algum, a pretensão de abranger toda a grandeza histórica e amplitude da obra do professor Dalmo, que em tempos tão conturbados como os presentes o Constitucionalismo por ele ensinado, por ele batalhado e de alguma forma plasmado no texto normativo da Constituição de 1988, reclama, nas suas palavras, que os direitos fundamentais não sejam proclamados apenas como faculdades genéricas e abstratas, desligadas da realidade, mas que sejam possibilidades ao alcance de todos, tornando realidade a afirmação de que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos.

Que assim seja, por supuesto.

Do Empório do Direito