Morte da rainha Elizabeth 2ª encerra 70 anos de reinado

Rainha prezou, nos 70 anos, pela discrição e neutralidade nos assuntos de estado. Resta saber como fica a monarquia com o príncipe de Gales assumindo com seu perfil mais polêmico

Copyright House of Lords 2019 / Photography by Roger Harris

Morreu hoje, no castelo Balmoral na Escócia, aos 96 anos, a rainha Elizabeth 2ª do Reino Unido. No poder há 70 anos, a rainha vinha apresentando problemas de saúde e mobilidade, tendo sido internada e contraído covid, já vacinada. O funeral está planejado para ocorrer dez dias após a morte.

Seu último compromisso público foi na terça-feira (6), quando nomeou a nova primeira-ministra britânica, Liz Truss. Pela primeira vez na história, a cerimônia foi realizada em Balmoral, em vez do palácio de Buckingham, em Londres. Elizabeth deixa quatro filhos, de seu relacionamento de 73 anos com o príncipe Philip, que morreu no ano passado: Charles, herdeiro do trono, Anne, Andrew e Edward.

A rainha sempre primou pela discrição em suas opiniões políticas. As responsabilidades de governo são todas atribuídas ao premiê. Até a escolha do novo governante é apenas uma confirmação pela rainha da escolha do Parlamento. A monarca orgulhava-se de ser neutra e reagia sempre que algum veículo de imprensa tentava atribuir opiniões a ela, como no caso do Brexit, em que se afirmou que era favorável, mas a rainha teria feito gestos contra.

No entanto, o próprio soft power emanado da Coroa é um importante elemento de confirmação das políticas de sanções contra nações consideradas inimigas, medidas imperialistas, apoio bélico a nações aliadas, entre outras. Quer queira ou não, a “neutralidade” da rainha exerce um poder de sanção de tudo que seu governo faz pelo mundo. Quem cala consente, e o silêncio sempre foi o modo da Rainha manter suas mãos limpas do esgoto criado por seus primeiros-ministros.

O papel da monarquia está mais associado a uma curiosidade folclórica, que diretamente ao poder. Não à toa se atribui à monarquia os bilhões de libras que o anacronismo de princesas, palácios e aristocracia rendem em termos de turismo. Ela aconselha seus políticos, mas precisa agir como uma mãe que consola os filhos, diante dos graves erros cometidos pelos governantes.

Devido a sua ausência de poder político real, a imagem marcada na memória nacional e internacional deixada pela monarquia e o reinado de Elizabeth está mais relacionada com escândalos familiares, que com algo ligado a governança. As traições, os divórcios e os estranhamentos entre membros da aristocracia eram mediados pela elegância e discrição da rainha, sempre disposta a botar panos quentes nas manchetes mais constrangedoras.

70 anos de reinado

Elizabeth foi a monarca mais longeva da história do Reino Unido e a que há mais tempo ocupou o poder no mundo. Terceira na sucessão ao trono britânico, acabou vendo o pai, rei George 6º, assumir em 1936, quando o tio, o rei Eduardo 8º, abdicou.

Em fevereiro de 1952, seu pai morreu prematuramente, vítima de uma trombose coronariana causada por um câncer de pulmão; aos 57 anos. Elizabeth, então com 25 anos, estava viajando pelo Quênia, na África, e voltou às pressas para o Reino Unido.

Ao ser coroada, Elizabeth se tornou chefe de Estado do Reino Unido, chefe das Forças Armadas britânicas, da Igreja da Inglaterra e da Comunidade Britânica, também chamada de Commonwealth. Seu reinado sempre foi marcado por popularidade e carinho dos britânicos, apesar do custo alto da coroa aos cofres públicos. Este custo é compensado pela entrega ao Estado da receita de suas propriedades, além das fabulosas divisas com o turismo. Em 1992, a rainha anunciou sua disposição de pagar impostos, após ter desfrutado de isenções fiscais durante todo o seu reinado.

Elizabeth também primava pela discrição nos gastos públicos, mudando hábitos da realeza para passar uma imagem de comedimento com o luxo e ostentação aristocrática. Acabou com bailes luxuosos e antiquados e passou a promover eventos públicos simples e singelos.

Política

Os 15 primeiros-ministros se sucederam continuamente no governo, com suas diferentes ideologias, enquanto a rainha foi a mesma. Sua relação com Winston Churchill, que ficou no poder de 1951 a 1955, foi muito próxima e pedagógica.

Diz-se da tensão na relação com a conservadora Margaret Thatcher, entre 1979 e 1990, pelas turbulências dramáticas envolvendo a greve geral dos mineradores e pela falta de sanções contra a África do Sul em meio ao apartheid.

Elizabeth tornou-se monarca em uma época em que a Grã-Bretanha ainda mantinha muito de seu antigo império. Um império forjado sob violência, opressão e exploração de recursos naturais de países africanos e asiáticos. Em meio à brutalidade de governantes brancos sobre populações negras e asiáticas, as visitas da Coroa a suas colônias frequentemente passavam uma imagem opressiva pela subalternidade com que as populações locais eram tratadas.

Em seus 70 anos de reinado, atravessou grandes eventos históricos, como guerras e revoluções, do século XX e início do XXI. Mas também viu por dentro o declínio do império britânico. Mas esta era elisabetana foi marcada por otimismo de seus súditos, com o aumento dos padrões de vida no pós-guerra. Com Thatcher, o  neoliberalismo deixou seu rastro de estragos no bem-estar social dos súditos, sob o silêncio cúmplice da Coroa.

O reinado da rainha também foi marcado por momentos de devastação nacional. Em 21 de outubro de 1966, uma avalanche de detritos de carvão que se soltaram de uma montanha encharcada de chuva invadiu a cidade galesa de Aberfan, matando 144 pessoas, a maioria crianças na escola.

Enquanto a nação lamentava a tragédia, Elizabeth atraiu críticas por esperar oito dias antes de visitar o local do desastre, uma decisão que ela diz se arrepender.

A Commonwealth, uma associação política de cinquenta e quatro nações de (principalmente) ex-colônias britânicas, é seu legado. Sua visita à Irlanda em 2011, a primeira de um monarca britânico desde que o país conquistou sua independência, em 1921, foi um grande negócio. 

As tensões entre as nações do Reino são velhas conhecidas de séculos. O terrorismo foi meio de resistência da Irlanda do Norte à opressão da Grã-Bretanha, inclusive com perdas na monarquia. Recentemente, o Brexit foi visto por muitos escoceses como uma oportunidade para escapar do Reino, também.

Sucessão

O conselho que vai proclamar o príncipe Charles, 73, como o novo rei deve ocorrer um dia após a morte da monarca, no Palácio St. James.

O duque de Cambridge, que está na fila para se tornar o príncipe de Gales e o primeiro na linha de sucessão ao trono, correu de Berkshire para Balmoral. Agora que seu pai se tornou rei, o duque também assumirá a responsabilidade e a renda multimilionária das propriedades do ducado da Cornualha.

O Palácio de Buckingham, residência de Charles com sede em Clarence House e Kensington Palace, que serve como corte do duque e da duquesa de Cambridge e até 2020 do duque e da duquesa de Sussex, planejam essa mudança na cúpula do estado britânico há vários anos.

Os membros mais jovens da família têm assumido cada vez mais deveres reais. William e Kate aumentaram seu perfil, assumindo papéis formais a pedido da rainha. Por exemplo, o duque de Cambridge no ano passado assumiu o papel de lord alto comissário e abriu a assembléia geral da Igreja da Escócia.

Charles assumirá um papel destinado a representar a estabilidade em tempos de mudança, em um momento de grande fluxo político e social. Não menos importante, apesar de sua idade, ele representará uma geração diferente da rainha, tornando-se o primeiro monarca britânico a ter frequentado a escola.

O novo rei conheceu dezenas de líderes estrangeiros, interagiu com vários governos britânicos e estabeleceu uma rede de instituições de caridade e causas que o conectaram a pelo menos algumas das preocupações do povo britânico comum e o levaram a conflitos com outros.

Em junho, em meio a relatos de que Charles havia expressado opiniões contrárias à política do governo do Reino Unido de deportar requerentes de asilo para Ruanda, a Clarence House divulgou um comunicado dizendo que permaneceria “politicamente neutro” como monarca.

Ele fez lobby por várias questões e, de fato, enfrentou reações adversas pelo que muitos acreditam ser uma interferência no processo político. É um defensor declarado das causas ambientais e frequentemente escreve cartas aos ministros do governo expressando suas opiniões.

Charles procurou melhorar o equipamento das tropas britânicas no Iraque, os maus-tratos aos agricultores pelos supermercados e a disponibilidade de medicamentos alternativos à base de plantas.