Luciana Santos: Não pode haver no Brasil um teto fiscal que leve à fome

A presidenta nacional do PCdoB diz que o desafio é fazer o governo dar certo e enfrentar a desigualdade social e a mazela da fome

A presidenta nacional do PCdoB e vice-governadora de Pernambuco, Luciana Santos, explicou ao Portal Vermelho os rumos da transição de governo, da qual é integrante. Na opinião dela, a equipe de transição está no rumo certo: primeiro um grande movimento para garantir a maioria política na governabilidade. “Nós precisamos de estabilidade política e de paz para que o governo Lula dê certo”, enfatizou.

Um dos principais desafios, de acordo com a dirigente partidária, é colocar em prática a agenda do programa eleitoral vitorioso; ou seja, enfrentar a desigualdade social e a mazela da fome. “Para retomar o Bolsa Família, a gente precisa que o apoio social saia da regra do teto de gastos. Não pode haver no Brasil um teto fiscal que leve à fome”, resumiu.

Luciana também avaliou o momento de ascensão de forças de extrema-direita. Ela identifica a origem desse movimento na gravidade da crise econômica de 2008, quando a própria direita se dividiu e cada vez mais setores da burguesia passaram a dizer que não é possível conviver com políticas liberais sem autoritarismo. Para ela, Bolsonaro é pior representação dessa ideia.

VERMELHO: O PCdoB foi o primeiro partido a defender a frente ampla. Qual foi o papel do PCdoB na consolidação desse amplo arco de alianças em torno do chapa Lula-Alckmin?

LUCIANA SANTOS: O PCdoB sempre entendeu que esse é um país plural, com um histórico de conformação de forças políticas muito complexas. Possui realidades e dinâmicas regionais que interferem no plano nacional. Por entendermos essa complexidade, sempre defendemos que um projeto democrático, popular e nacional necessariamente tem que levar em conta essa diversidade e pluralidade.

Por isso, formulamos com muita convicção a necessidade de construção de frentes amplas. Ainda mais, diante de um governo com as características de Bolsonaro: autoritário na política, retrógrado nos costumes e ultraliberal na economia. Um governo de extrema-direita.

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Sempre reunimos convicção de que para enfrentar essa força não bastava o nosso campo, mas atrair outros setores. Muitas vezes fomos incompreendidos, mas prevaleceu a centralidade dessa tática para ganhar as eleições. Prevaleceu a justeza das nossas ideias. Por isso, hoje, podemos comemorar a vitória dessa formulação política.

VERMELHO: Como avalia o resultado geral das eleições com esse país que emergiu das urnas com uma diferença pequena? O que isso traz de elementos para pensarmos o futuro do Brasil?

LUCIANA SANTOS: Precisamos entender que esse fenômeno de uma grande polarização, radicalização, essa onda de violência política nas eleições, um país conflagrado, não é uma característica singular brasileira. Nós estamos vendo este fenômeno em várias partes do mundo, na Europa, na América Latina. Mesmo onde ganhamos as eleições à esquerda, ganhamos sempre numa margem bem apertada, pelas condicionantes dessa geopolítica e do mundo em que vivemos.

Precisamos tirar consequências da afirmação que fizemos quando teve o fim do campo socialista soviético.

Dissemos que a luta pelo socialismo passava para uma defensiva estratégica, daquilo que acreditamos como modelo socioeconômico justo, de igualdade de oportunidades, que leva a um outro patamar civilizacional.

Em 2008, quando aconteceu a crise econômica do capitalismo, houve um grande rebatimento no plano da política. Houve uma certa divisão entre os setores dominantes, que detém o poder econômico e o mercado financeiro do mundo todo. Que se traduziu numa divisão entre os setores mais extremados, e os setores mais social-democratas ou flexíveis na questão democrática. Cada vez mais, setores à direita passaram a dizer que não era possível conviver com políticas liberais se não fosse com autoritarismo. Então, no mundo todo, foram se desenhando cenários diferenciados de forças de extrema-direita versus centro-direita.

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Claro que temos nossas particularidades. Estamos superando em termos político-eleitorais, mas não no plano das ideias, o comando que tínhamos da extrema-direita, talvez a pior expressão desse campo, pela figura que representa Bolsonaro. Mas o bolsonarismo, que é essa atitude violenta e autoritária na política, permanece.

Precisamos ter mecanismos para fortalecer e elevar ainda mais o debate de ideias.

Somos daqueles que acreditam que a superação de alguns momentos históricos é fortalecer os mecanismos de debate de ideias, e, ao mesmo tempo, compreender a realidade concreta naquele contexto.

Os desafios são gigantescos. Esses quatro anos de governo Bolsonaro foram de retirada de direitos e desmonte nacional do estado brasileiro. Precisamos ter maioria política e fazer uma agenda de reconstrução nacional que coloque o papel do estado no ponto certo.

Não somos dos que defendem o estado máximo, muito menos o estado mínimo.

Queremos o estado do tamanho necessário para ser o indutor do nosso crescimento e do desenvolvimento, e restaurar os direitos da população. Essas coisas andam juntas. Não é possível ter prosperidade, geração de emprego e combate à fome, se não tivermos uma agenda de crescimento que passe pela reindustrialização do país. Ou seja, os desafios são gigantescos, porque as ferramentas indutoras do desenvolvimento foram aos poucos desmontadas. Uma delas, o papel dos bancos públicos na economia.

VERMELHO: Nesse quadro conflagrado, como você avalia o papel do TSE no processo eleitoral?

LUCIANA SANTOS: São múltiplas crises que atravessamos nesse período de governo Bolsonaro. Crise social, econômica, democrática, instabilidade política, mas sem dúvida uma das mais graves é a crise institucional brasileira.

Acho que o papel do Tribunal Superior Eleitoral nesse processo foi de coragem, de estabelecer os parâmetros democráticos. De defesa do nosso sistema eletrônico, considerado exemplar no mundo pela tecnologia utilizada, e como isso dá autonomia ao voto e defende o direito soberano do povo brasileiro. Pela segurança que o eleitor tem de que sua escolha é livre.

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Foi necessário, nesse período, afirmar o óbvio, de que temos um sistema avançado no mundo todo, inconteste. Prevaleceu a verdade, a afirmação de uma tecnologia avançada que protege a livre escolha do cidadão brasileiro.

VERMELHO: Não fica um desafio para o judiciário eleitoral, à medida que houve uma série de abusos que não foi possível conter, como o excesso de fake news? Como enfrentar isso?

LUCIANA SANTOS: Fora o extensivo uso das fake news, houve um abusivo uso da máquina pública, houve uma atuação religiosa e dos direitos do trabalho. Até mudar a Constituição brasileira fizeram para usar a máquina. É um verdadeiro escracho o que fizeram nas instituições democráticas e na lógica de disputa de poder.

Precisamos garantir mecanismos que protejam a democracia.

Não só o Brasil tem esse desafio, mas o mundo todo. A manipulação das ideias e a deturpação da verdade, um verdadeiro mundo paralelo que procuram construir. É um grande desafio do debate de ideias no mundo todo.

Há estudos de como as plataformas digitais têm a capacidade de levar um conjunto de proposições sobre o dia-a-dia das pessoas, entendendo como a personalidade delas reage, por conta dos dados que circulam nas plataformas digitais.

O gabinete do ódio existe desde 2018 e nunca foi desmontado.

Para defender a democracia, temos que constituir um aparato tecnológico de coragem política para enfrentar isso que é um fenômeno do nosso século, na perspectiva de garantir a circunstância da verdade histórica, que é um desafio cotidiano.

VERMELHO: Na sua opinião quais os principais problemas a serem enfrentados logo nos primeiros dias de governo?

LUCIANA SANTOS: A nossa equipe de transição está no rumo certo: primeiro um grande movimento para garantir a maioria política na governabilidade. Nós precisamos de estabilidade política e de paz.

Lula está certo ao dizer que o principal desafio brasileiro é unir o país. Nós já constituímos a maior frente política das eleições, desde que ganhamos em 2002. Foram dez partidos políticos no primeiro turno, mais dois no segundo turno, agora esse esforço consolidado na direção do PSD, que já está na equipe de transição e veio para a base do nosso governo. Além do esforço, agora, na direção do MDB, para além de Simone Tebet, formalizar a participação na base do governo. Isso acaba de ser anunciado na tarde de hoje [quarta-feira, 10], com a equipe de transição também consolidando esse movimento.

Um dos principais desafios é que esse governo dê certo.

E colocar em prática a agenda do programa eleitoral que é enfrentar essa desigualdade social. Infelizmente, Bolsonaro conseguiu colocar o Brasil na décima terceira economia do planeta, mas somos um país rico de um povo pobre. Para enfrentar isso, é preciso combater a fome, a pior mazela da desigualdade.

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Para isso, o povo precisa estar no orçamento. Então, a principal batalha é mudar o orçamento para caber o Bolsa Família, que não é só uma retomada do nome, mas do conceito. No Auxílio Brasil, a pessoa recebe uma ajuda de sobrevivência de R$ 600, e acabou. O Bolsa Família exige que a criança vá para a escola, esteja em dia com a carteira de vacinação, com a atualização do SUS, – um programa estruturante que cuida das famílias. Para retomar isso, a gente precisa que o apoio social saia da regra do Teto de Gastos.

Estamos cuidando desse compromisso de campanha que é salário 1,6% acima da inflação, que significa garantir o poder de compra do povo.

Garantir orçamento para vacina, para a Farmácia Popular, para o enfrentamento à violência contra as mulheres, questões que não estão previstas no orçamento brasileiro para este ano. Estamos vendo a forma de modificar isso. Se por meio de uma PEC que daria mais segurança jurídica, ou através de uma Medida Provisória Extraordinária, com a anuência do Tribunal de Contas da União e do Poder Judiciário. Numa perspectiva de cumprir com os compromissos de campanha que levaram à vitória.

O povo brasileiro vê o Governo Lula com esses compromissos. Precisamos colocar no orçamento brasileiro, porque não pode haver no Brasil um teto fiscal que leve à fome. Temos que virar essa página de que esse teto represente mais desigualdade e iniquidade social. Essa é a tarefa dessa primeira fase da transição.

VERMELHO: Como o governo de transição vai equacionar e/ou contemplar as diversas posições, algumas até antagônicas em temas como economia, por exemplo?

LUCIANA SANTOS: Lula revela uma história de grande político no país, pois procura uma convergência de setores que podem ter pensamentos díspares, contanto que a gente não abra mão do conceito que nós temos, do que deva ser a nossa economia. A economia tem que ter o papel do estado forte para induzir o desenvolvimento, para garantir que as grandes estruturas do país que impulsionam esse movimento se fortaleçam.

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Acho importante que num momento de grande crise econômica, de grande instabilidade, ele possa ter uma equipe de transição que tenha opiniões diferentes, e algumas questões podem ser complementares. Paradoxalmente, e é assim que é a vida, o André Lara Rezende tem posições muito diferenciadas do que tinha na época em que implantou o Plano Real. Temos o Nelson Barbosa, que é um desenvolvimentista, tem o Guilherme Mello, o Pérsio Arida.

É um exercício de debate e sinalização para a opinião pública de um governo aberto a opiniões.

E que, em última instância, tem firmeza de que é necessário ter um estado que possa garantir a indução ao desenvolvimento. E ver de que forma vai fazer uma transição que garanta alguns conceitos de macroeconomia, que possam corresponder a uma correlação de forças do tempo que a gente vive. É preciso o tempo todo afirmar um vértice, uma perspectiva, que a nosso ver, é a defesa do crescimento, da retomada da reindustrialização brasileira. Isso só é possível com ferramentas que possam fazer uma agenda desenvolvimentista no Brasil.

VERMELHO: Qual é o seu papel no grupo de transição? Qual o papel do PCdoB nessa fase de elaboração de plano e discussão do novo governo?

LUCIANA SANTOS: O próprio presidente Lula não economiza elogios ao papel do PCdoB nesse período todo, de aliança política. Nós temos essa aliança básica com o Partido dos Trabalhadores, desde a primeira eleição do Lula, em 1989. E sempre procuramos entrar nessa discussão com ideais-força, como o programa do nosso Partido. Somos um partido programático, ideológico e temos a defesa de uma perspectiva de construção do socialismo com as características brasileiras. E sempre procurando entender que temos um caminho para isso.

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O caminho é o nosso programa poder garantir no país uma agenda de aceleração do crescimento, de reindustrialização, de defesa dos direitos fundamentais do povo, do cuidado com as pessoas. Somos respeitados exatamente porque a gente se pauta e porque o que nos move é a questão programática e os nossos compromissos. E a contribuição na elaboração desses desafios brasileiros.

VERMELHO: Qual expectativa de participação do PCdoB no próximo governo?

LUCIANA SANTOS: O que conseguimos acumular, até agora, é que vamos construir politicamente uma participação destacada em três questões temáticas: a Ciência e Tecnologia, do Trabalho e da Cultura.

São temas estratégicos que têm tudo a ver com o PCdoB. Mas vamos participar de todos o grupos temáticos [31] com atuação mais destacada nestes temas. Não há uma política pública importante e estratégica no país, que não tenhamos quadros experientes com grande capacidade de formulação teórica e prática. Vamos colocar toda a capacidade instalada de inteligência de nosso partido à disposição dessa construção da transição nos grupos temáticos.

VERMELHO: Qual sua expectativa com a COP 27, com a participação destacada de um chefe eleito e não empossado, como Lula?

LUCIANA SANTOS: A agenda climática tem um caráter estratégico, porque trata da afirmação das nações no mundo. Como a nação que procura olhar sob a ótica do crescimento com sustentabilidade. Não é possível simplesmente abstrair o que significam os impactos das mudanças climáticas, e que cada país precisa fazer seu dever de casa no plano de descarbonização, porque isso significa a defesa da vida, do meio ambiente e do próprio desenvolvimento.

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O papel de Lula nisso? Mesmo sem ser chefe de estado, será recebido com honras de chefe de estado. O Brasil tem muita autoridade para falar em mudanças climáticas. O Brasil tem uma matriz energética das mais sustentáveis do planeta. 70% é hidroelétrica. Temos uma diversidade, em que só a energia solar instalada no Brasil representa a produção de uma hidrelétrica de Itaipu. Temos uma matriz energética renovável e limpa. Uma das maiores reservas de água do planeta, uma diversidade dos nossos biomas.

Uma das políticas mais avançadas que o Lula desenvolveu no seu período de governo foi a política externa.

Não é possível ter estabelecido relações externas mais avançadas do que Lula desenvolveu naquela época. Como bem fez a síntese, Chico Buarque, você não pode falar fino com os EUA e grosso com o povo latino-americano, com o povo africano. Foi nesse tempo que foi possível criar o BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul). Uma conformação de um mercado institucional e financeiro que tem como base o financiamento das grandes potências mundiais, pois somos potências. Mas numa visão multilateral de como deve ser o papel dos estados e nações, do ganha-ganha, de colaboração e cooperação.

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O Lula chega na agenda climática com esse legado. Não é a toa que o presidente dos EUA, Barack Obama, chegou a chamar ele de “o cara”, pela capacidade política que ele teve de enfrentar e defender os interesses. Então, ele chega na COP27 dizendo que não pode ser os países em desenvolvimento, que vão cumprir as metas de descarbonização. Os países ricos não podem apenas pagar para que a gente cumpra as metas. Eles têm que cumprir as metas deles. Mas também, no mundo todo, aqueles países que cumpriram precisam ter recursos para fazer sua agenda de desenvolvimento.

VERMELHO: O continente está em ebulição, com cada país sofrendo os impactos da inflação e da desorganização das cadeias produtivas. Já existe um debate sobre como conduzir esse diálogo com os vizinhos? Quais as prioridades para avançar numa integração da América Latina?

LUCIANA SANTOS: Vivemos num mundo das cadeias globais que é inconteste. Esse desafio para o Brasil parece assunto antigo, mas é muito contemporâneo: diminuir a dependência. Precisamos ter mais autonomia nos insumos, nas chamadas manufaturas, as instâncias das cadeias globais de maior valor agregado. Não podemos ser tão dependentes de fertilizantes sendo os maiores produtores de alimentos do mundo. Não podemos ser dependentes das terras raras, minérios que o próprio Brasil detém, mas dependemos da Ásia, em particular da China, para obter terras raras para a indústria de Tecnologia da Informação (TI). Nos medicamentos, não podemos ter o grau de dependência na indústria de fármacos. Convivemos com essas contradições básicas.

Precisamos ter uma visão estratégica de nos inserirmos nas cadeias globais mais dinâmicas, que agregam valor, que nos tornem mais autônomos.

Este é o desafio da geopolítica do mundo, este é o desafio do mundo conflagrado que nós vivemos, em última instância, a guerra pelo domínio tecnológico. Não podemos ficar atrás. Precisamos dar respostas. Não nos falta inteligência e capacidade política para isso. Para isso, precisamos de investimento, garantir que nosso sistema de inovação responda a isso, e a gente possa entrar nessa dinâmica das relações globais numa outra condição.

Temos muitas possibilidades de fazer muitas parcerias nessa perspectiva. Veja que a política que o Partido Comunista Chinês prega no mundo, de cooperação mútua, de ganha-ganha, é o conceito que precisa prosperar. Sou otimista nisso, porque acho que, desse ponto de vista, o presidente Lula tem um legado, porque tratou essas relações internacionais com muita altivez e um norte correto e avançado.

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