Manuela D’Ávila: “Doeu demais viver os últimos anos”

Em conversa com a Revista Parêntese, do Grupo Matinal, Manuela afirma que os ataques em Brasília ilustram a extrema-direita que ela denuncia há anos.

"No meu caso, a violência foi muito longa e anterior à eleição do Bolsonaro" | Foto: Reprodução/Matinal News

No dia 9 de novembro de 2022, a jornalista e ex-deputada federal, Manuela D’Ávila, concedeu uma entrevista à Revista Parêntese, do Grupo Matinal, pouco mais de uma semana após o segundo turno das eleições. Nela, Manuela fala sobre as últimas eleições, as dificuldades que antecederam a vitória de Lula, o que espera do governo e o futuro da democracia. Ela ainda falou sobre a violência política que sofre há anos, e também sobre literatura e feminismo.

Segundo os entrevistadores, “Manu é sempre uma figura interessante. Desde que surgiu no cenário político eleitoral – depois já de uns bons anos de militância estudantil – ficou visível seu carisma, sua grande capacidade de comunicação, sua fluência, sua verve. Não é possível passar por ela sem vê-la, sem prestar atenção em suas posições. Tudo isso aparece agora nesta entrevista. Mãe com profunda consciência sobre a condição, agitadora cultural das mais relevantes com seus círculos de leitura, escritora com títulos de grande alcance, Manuela D’Ávila tem clareza sobre pontos decisivos para nosso presente e nosso futuro. Ainda mais depois dos crimes de domingo passado em Brasília, perpetrados por fascistas da mesma estirpe daqueles que se ocuparam de atacá-la, tantas e tantas vezes.”

Na última semana, o grupo enviou novas questões para que Manuela comentasse os recentes atos golpistas. “Acho que os atos (de 8 de janeiro) dão a dimensão real das ameaças à democracia que enfrentamos no processo eleitoral e das razões pelas quais eleger Lula e construir uma frente ampla de sustentação do governo são tão importantes”, observou.

Para a ex-deputada, os ataques ilustram a extrema direita que ela e tantos outros vêm denunciando nos últimos anos. Manuela, que pesquisa sobre moderação de conteúdo na internet, está segura de que “a articulação do ato de domingo e também os limites do governo de monitoramento sobre ele são relacionados à internet”.

E acrescenta: “Esse governo será de reconstrução nacional e democrática, e só o faremos sem anistiar ou perdoar os criminosos que atentam contra as instituições”.

Leia abaixo a transcrição editada da entrevista gravada no dia 9 de novembro de 2022. A íntegra está no vídeo, que pode ser visto aqui.

Manuela com os entrevistadores: Marcela Donini, editora-chefe do grupo Matinal, o jornalista Carlos Caramez e Luís Augusto Fischer, editor da Parêntese.

Parêntese – A gente está saindo de uma eleição das mais importantes dos últimos tempos, em que estava em jogo o futuro da nossa democracia. O que tu esperas desse novo governo, o terceiro mandato do Lula?

Manuela D’Ávila – Primeiro eu estou muito feliz de conversar com vocês em um momento em que todos nós estamos um pouco mais felizes. Eu estava na última Feira do Livro, aqui em Porto Alegre, e fiquei muito impactada com isso. Como as pessoas, de maneira ordinária, assim como quem não deve nada a ninguém, estão visivelmente mais leves. Nós vivemos quatro anos de muitas violências, violências que foram cometidas de maneira repetida contra todos nós. E nós tínhamos que sobreviver a isso, e todos os dias levantar e trabalhar e criar nossos filhos e sair pra rua. Pra quem é militante, nós tínhamos que seguir construindo caminhos de luta, mesmo que fôssemos submetidos a tudo isso todos os dias. Acho que há um ambiente mais leve, e eu atribuo isso à ideia de que a democracia venceu. Porque nós somos muitos e somos diferentes.

Eu quero começar falando da minha perspectiva, a partir da análise que eu faço da nossa vitória. Temos que ter consciência do grau de dificuldade que tivemos pra vencer, mesmo com Lula, que é o maior de todos os líderes políticos, não só do Brasil, talvez dos líderes do mundo – do ponto de vista de números de votos inclusive. Mas eu falo do exercício da liderança, da notoriedade pública, e talvez ele seja o líder mais relevante do mundo. Talvez equivalente ao Lula, do ponto de vista da notoriedade, só Barack Obama, como um líder global, que exerce um tipo de poder objetivo e subjetivo nas nações, nos presidentes, na luta política global. Então, mesmo com Lula, mesmo com uma frente amplíssima, que é materializada pelos 10 partidos que compuseram a aliança, com Alckmin de vice, mas é muito além disso – como eu costumo brincar nas reuniões que participo, era uma frente com Xuxa, Angélica e as Paquitas. E a gente pode ampliar pra Fátima Bernardes.

Eu falo isso pra ilustrar que ela é mais ampla do que nós jamais tivemos. Eu era muito pequena nas Diretas Já [1983/4], eu tinha dois anos de idade, mas não sei se naquele momento nós chegamos a ir tão dentro de um espaço que nos é proibido, como é o espaço da mídia tradicional. Com tudo isso a nossa vitória foi gigante no seu significado, mas muito apertada do ponto de vista da votação nominal. É importante que nós pensemos em como voltar a dialogar com a maior parte do povo brasileiro. Uma parcela grande adere às ideias do bolsonarismo, mesmo sem Bolsonaro. Quando nós perdemos a eleição de Porto Alegre, eu disse: Bolsonaro não votou aqui, mas o bolsonarismo venceu, atenção. A gente agora vê que eles prescindem de Bolsonaro. Mesmo com essa parcela que adere ao ideário bolsonarista, uma grande parte dos brasileiros não está totalmente deslocada pro lado de lá. Eu não posso conceber que metade do povo brasileiro seja fascista, né?

P – Uma pergunta de ordem pessoal: tu tiveste algum embate com algum familiar ou pessoa próxima nesse percurso da eleição?

MD – No meu caso, a violência foi muito longa e anterior à eleição do Bolsonaro. Se minha filha tem 7 anos, são pelo menos 8 anos em que eu sou submetida à violência física, verbal, na internet… Tive várias ao longo do caminho, mas no último ciclo, nos últimos quatro anos, não. Essas pessoas foram afastadas da minha vida.

P – Pra ti, então, foi um momento de baixa, enquanto pra todo mundo foi mais forte.

MD – Eu sempre fui para-raios de ataques, junto com a Maria do Rosário, com o Jean Wyllys, com alguns poucos outros, digamos, cobaias dos métodos de construção da extrema-direita no Brasil. É um método testado; tem método, não é aleatório.

P – E como é que tu viste isso nesse momento atual, com tua alma já atingida previamente por essa violência? Alguma coisa nova apareceu? Não pensando em pessoas, indivíduos, mas em ações como acampar na frente de quartel.

MD – Tem duas questões que me surpreendem e elas não são relacionadas a eles, e sim a nós. Eu me dedico muito mais a pensar na gente do que a pensar neles, porque eu acho que a gente tem que entender como vai se comportar politicamente, publicamente, nessa disputa para deslocar setores grandes de brasileiros e brasileiras para essa ideia de um Brasil desenvolvido e justo. Eu não quero que as pessoas pensem igual a mim. Na minha vida toda nunca pedi um voto para um amigo meu, porque eu sempre pensava que a pessoa não podia ser constrangida a pensar igual a mim, não é?

Deixou de ser assim, porque as pessoas que não aderiam às mesmas ideias que eu defendiam o meu extermínio, a minha morte. Tu me perguntas o que me surpreende: me surpreende a surpresa. Eu fico surpreendida que setores amplos ficam chocados com a saudação nazista em Santa Catarina, ou em qualquer outro lugar. Por quê? Porque quantas vezes eu relatei, e eu vou falar a partir de mim, mas poderia falar de outros interlocutores, amigos e amigas meus, que se tornaram meus amigos inclusive nessa dor que nós partilhamos. Quantas vezes eu contei a história que a minha filha foi agredida com 45 dias de vida? Qual a surpresa de alguém que tem ideias nazistas estender a mão? Ora, é a mesma coisa, é a manifestação física de um conjunto de ideias que a gente denuncia que estão crescendo na sociedade brasileira. Então a surpresa me surpreende, a ingenuidade me surpreende.

Nós fomos pra esta eleição com um preparo muito pequeno para enfrentar técnicas que sabemos que existem. E, repito, nós sabemos que existe método, existe técnica, e que nós estamos [em tom irônico], “olha, eles distribuem desinformação”… Gente, na primeira reunião da coordenação, virada do primeiro pro segundo turno, eu participei. Começou um “ah, mas não teve fake news”, e eu disse: presidente Lula, a gente precisa se dar conta de que a desinformação circula a partir de outro método, com a chamada mídia de referência, Jovem Pan, leia-se, e outras iguais. Monetizando, amplificando, trabalhando com dinheiro que não é computado na campanha, porque em tese os canais estão se promovendo e não são tratados como fake news, que é a mentira, com popularmente chamamos esse sistema de desinformação. Então, eu me surpreendo muito com nosso grau de surpresa depois de tanto. A Marielle foi executada, será que não conta? O Jean Wyllys não mora no Brasil. Vocês sabem quantos perfis de Facebook o Jean bloqueou em 2010? A gente não está falando ainda do Brasil com internet na palma da mão de todo mundo. Foram 400 mil. 400 mil que ameaçavam ele de morte! Entende? O problema é que aí tem outros debates. Quão importantes são esses interlocutores? A mulher negra executada, o “veado” que sai do país, a mãe que teve a filha agredida. Qual é a legitimidade que a gente confere aos diversos interlocutores na sociedade brasileira?

Quando fui eleita parlamentar a primeira vez em 2004, fui ameaçada já na primeira semana. Quando cheguei na Câmara, o coronel Pedro Américo Leal, que já não era mais vereador na época, atravessou o plenário e me falou: “guria, todas as tuas ideias são uma merda, mas eu vou morrer defendendo o teu direito de defendê-las aqui dentro”. Um homem que tinha sido da ditadura militar. Agora, quase todas as mulheres de esquerda andam escoltadas, têm a vida tripudiada, e esse é o ambiente normal do parlamento brasileiro.

P – E o que aconteceu, Manuela? A que tu atribuis essa escalada tão violenta? Porque a polarização política sempre existiu, o próprio Lula falou isso, mas não tão violenta como ela está hoje.

MD – Acho que isso não é a polarização política, isso é a essência da constituição do Brasil vindo à tona, sabe? Como se fosse um vulcão que expele seu magma das profundezas e que explode. O Brasil é fundado em cima de violência, o extermínio dos povos indígenas com a chegada dos portugueses, a violência dos 10 milhões de pessoas que foram tiradas do continente africano com violência no processo de escravização, 5 milhões vieram ao Brasil, 500 mil foram aos Estados Unidos. Esse número ilustra um pouco a fundação do nosso país. E acho que o que nós vemos agora não é a polarização da política: é como se o Brasil estivesse também conhecendo parte do que é o Brasil. Do país que permitiu durante décadas que milhares de jovens negros fossem exterminados, sem que isso fosse computado na cena pública. Aliás, esse não foi um debate dessa eleição, né? O tema da política de drogas não é um tema dessa eleição. Mesmo que isso signifique que, na Vila Cruzeiro, metade dos trabalhadores e trabalhadoras da região sejam submetidos a essa violência. Pra ver como a gente normaliza e naturaliza e assimila rápido o padrão de violência. A gente foi permitindo isso, aos poucos, com uma crença de que a violência não fazia parte dos padrões brasileiros, a gente foi negligenciando determinados comportamentos dentro da política institucional.

Eu fui deputada federal de 2006 a 2014 e lembro que diversas vezes nós nos movimentamos para cassar o mandato de Jair Bolsonaro, diversas vezes. Éramos um grupo muito pequeno, que ouvia “O que vocês estão fazendo? Deixa, deixa falar sozinho”. Quando ele cometia crime de racismo, quando ele cometia crimes relacionados à homofobia, que ainda não era criminalizada. Nunca o Congresso Nacional se reuniu para cogitar nenhum tipo de punição a ele.

“As pessoas querem atribuir uma força aos outros que os outros não têm” / Foto: Matinal News

P – Nos dias atuais o combate às fake news é uma coisa fundamental. Esse tema não deveria ser uma política de governo, de Estado? Se houver um convite oficial você vai ajudar a trabalhar esta questão a nível nacional, no governo Lula?

MD – Eu acho que tu acertas quando dizes que tem que ser uma política de governo. A gente tem uma única experiência mais estruturada no mundo que é a finlandesa. Na prática eles trabalham com a ideia de letramento midiático e digital, e é o caminho que eu acho que nós temos que percorrer. A gente não vai conseguir colocar toda gente quem produz e distribui fake news na cadeia. Tem que punir quem produz e distribui. Eu mesma acionei judicialmente um monte de gente, o Roberto Jefferson já está me devendo até a casa de tantos danos morais. Mas a grande massa não é produtora e distribuidora, é vítima. Como é que a gente pode enfrentar isso? Eu acho que devemos enfrentar através do nosso sistema educacional. O Brasil precisa ter um grande processo de construção disso, e tem que ser uma política pública do governo federal em parceria com os municípios. Eu não tenho planos de participar do governo (na troca de mensagens com a redação em janeiro, Manuela comentou que a desinformação “não foi, infelizmente, objeto central de debate” no GT de Comunicação do qual ela participou durante a transição de governo) . Eu fiquei muito feliz esses dias, almocei com a professora Sueli Carneiro e ela me disse assim: “eu estou tão feliz que tu estás na sociedade civil!” Eu falei: “Nossa, professora, ser a senhora é mais legal, mas a senhora é a primeira pessoa que me diz isso”.

P – A questão da regulamentação do funcionamento dos meios de comunicação é um dos maiores tabus que enfrentamos. Cada vez que se fala nisso, dizem que é censura e cerceamento das liberdades democráticas. Você acha que esse assunto será tratado neste próximo governo? Porque nós somos vítimas disso há muito tempo.

MD – Esse é um debate tão antigo e tão mal feito no Brasil que a história está superando ele, não é? Do ponto de vista objetivo – esse é o tema do meu doutorado –, o grande debate hoje é o tema da moderação de conteúdo na internet. A gente está vendo aí perfis serem apagados, e a gente não tem regramento sobre isso, nem no Brasil, nem no mundo. Pra mim o grande tema da regularização da mídia, que é relacionado com a comunicação regional e com a perspectiva de um país como o nosso, continental, é que a diversidade seja contemplada, sobretudo regionalmente. Toda diversidade é importante, mas a mais danosa para o Brasil, na minha interpretação, é a gente não ter a possibilidade dessa diversidade de programação regional. E está diminuindo, né? Aqui no sul, dentro dos grandes grupos, tinha uma programação muito maior aí do grupo RBS do que temos hoje. E a gente sabe a diferença disso, por exemplo, na cena cultural do Rio Grande do Sul. A pessoa fala: “milagrosamente, veja, o rock gaúcho”. Não é tão milagre assim. Mesmo com a concentração na mão de uma família, o que também é um dos debates, havia uma grade de programação que tinha lá os contos gaúchos no sábado, os programas que botavam as bandas lá, e isso tinha um impacto. E a gente já sente, do ponto de vista objetivo, a diferença da diminuição da grade de programação.

O tema da moderação conecta três grandes questões: a liberdade de expressão; a possibilidade de o conteúdo ser ou não ser moderado e em que termos (quem é o dono da palavra final?), e o discurso de ódio. São os três grandes temas que se colocam na questão democrática. A gente não pode mais dizer que a mídia é tão concentrada assim. Olha o tamanho do [podcast] Flow. Ela vai se reconcentrando na internet também, eu não tenho a menor ilusão com o ambiente da internet. Nenhuma. Nem o Manuel Castells, que era nosso mestre dos magos, que ia nos guiando ali no mundo da internet há décadas, tem mais essa ilusão. É uma batalha, só que essa batalha da moderação é relacionada com a questão democrática, com a soberania dos países. É um negócio muito pesado.

P – Mas me conta uma coisa, tu não foste candidata agora. Explica isso. Por quê? Tu és um nome de referência, as pessoas te conhecem, tu terias assim, de saída, dezenas de milhares de votos. Como foi essa escolha?

MD – As escolhas nunca são resultado de uma única variável, são várias questões. Primeiro: eu fui candidata em oito eleições. Eu sou a única brasileira que disputou dois segundos turnos sob o governo Bolsonaro. Com ele próprio em 2018, e contra o Melo, em Porto Alegre, em 2020. Haddad não disputou dois, disputou agora o segundo; Marcelo Freixo não disputou dois; Guilherme Boulos também não. Então tem um lugar que eu ocupei como vítima preferencial de uma máquina de desinformação e de violência. São duas questões importantes. Quando surgiram os primeiros debates com relação a uma candidatura minha ao senado, eu nunca tinha sido candidata, então me fizeram desistir de algo que eu nunca cogitei. Por várias razões. Sobretudo porque eu acho que a unidade que nós construímos aqui é motivo de grande celebração, mas insuficiente para quem está enfrentando Bolsonaro e o bolsonarismo. E isso em mim, alguém que era e é vítima de um esquema de violência e ameaça, fragiliza mais. Tu vais disputar contra quem? Em quais condições? Diante de um quadro de fragilidade evidente. Eu sou humana. As pessoas dizem: “ai, como tu é forte”.

Eu não sou mais forte que ninguém, eu sou igual a ti, a ti, a ti, igualzinha. As pessoas querem atribuir uma força aos outros que os outros não têm. Todo mundo é humano, todo mundo é igual. Primeiro isso. Segundo: eu tenho responsabilidade sobre a minha saúde e a saúde das pessoas que convivem comigo. São sete anos que a minha família é vítima de um conjunto de violência. Eu entendo que a política é feita por homens e para homens, e que os homens não têm responsabilidade nenhuma com a estrutura de cuidados, nem prática nem afetiva, de suas famílias. Não é o meu padrão. Primeiro que não era um período revolucionário, digamos assim, né? Eu tenho 40 anos, eu preciso durar mais 40, eu não vou me liquidar. E acho que as pessoas precisam saber. Ser submetida ao que o bolsonarismo representa é estar lutando permanentemente para não ser liquidado. É isso. Eu não desejo a nenhum dos meus piores inimigos aquilo a que eu fui submetida, ao que minha filha foi submetida, ou ao que meu marido e meu enteado foram submetidos. A nenhum. Eu quero transformar essa política.

“Quando fui eleita parlamentar a primeira vez em 2004, fui ameaçada já na primeira semana” / Foto: Matinal News

P – “Dos homens” tu estás falando da parte masculina da humanidade?

MD – Eu estou falando de uma política que não cabe para as mulheres. Quando eu falo sobre essas responsabilidades, não são responsabilidades que eu quero deixar de ter. Eu tenho e compartilho elas com meu marido, que é um homem extraordinário. Tu já viste algum homem pensando qual seria o impacto na saúde da sua família com ele aceitando um mandato de oito anos em outra cidade? Não é um tema. “Ah, joga os filhos pra cá”. O homem nasceu no Rio, vira governador em São Paulo, vão aquelas mulheres, os filhos tudo atrás, tudo a reboque. Por quê? Porque o homem não leva a criança na escola. O congresso nacional se reúne das 8 da noite às 3 da manhã, por quê? Porque ninguém busca filho na escola, né? Porque se buscasse filho na escola teria um horário de trabalho normal, das 8 da manhã às 8 da noite, às 7 da noite, 6 da tarde. Não, é plantão médico. Todo dia plantão médico. Com uisquinho, cigarrinho, e criança sendo criada por mulher. Pelas suas mulheres, que vivem tentando combinar as suas vidas com aquela loucura.

Não existe uma razão pela qual eu não concorri. As pessoas às vezes dizem: “Ah, ela não concorreu por causa das ameaças.” Não, eu concorri apesar das ameaças, em 18 e 20. Não é? Eu concorri apesar das ameaças, e apesar de as pessoas não levarem a sério as ameaças. Apesar de a polícia nunca ter encaminhado com seriedade as ameaças contra a minha família. Apesar de eu ser agredida violentamente. Apesar da minha filha ser fotografada entrando na escola. Apesar de tudo isso, eu concorri. Bom, isso quanto aos cargos majoritários. E com relação aos proporcionais, eu tenho uma crença. Eu, quando me elegi a primeira vez, tinha 22 anos, gente. Eu já fui deputada federal, estadual, eu recebo com muito carinho [a ideia] de que eu podia voltar pra esses espaços. Mas eu acredito fortemente que outras pessoas podiam ocupar esses espaços, trazendo outros elementos de outros olhares, de um outro tempo. Esse foi o caso da Daiana Santos e da Bruna Rodrigues [mulheres negras eleitas deputada federal e estadual, respectivamente]. Eu tenho muito orgulho de ter bancado, de ter discutido, de ter dito que nós podíamos eleger outras pessoas. Isso eu escuto em todos partidos, de cabo a rabo: “tem que renovar, ah, mas se não for a fulana não elege”. Vai renovar como? Vai renovar quando? A gente precisa reunir forças, emprestar esse prestigio, que não é particular, é construído coletivamente. Como quando a Jussara Cony, lá atrás, me passou o bastão e disse: vai.

P – Sobre a renovação dessas lideranças de esquerda, a gente fala muito que o futuro, e mesmo o presente, é feminino. Já estamos vendo essas conquistas, como as da Daiana – a primeira deputada federal no Rio Grande do Sul negra, sapatão e de origem pobre. A Bruna também, na Assembleia Legislativa. Tu achas que é uma saída os partidos apostarem nas mulheres para renovar a liderança na esquerda?

MD – Eu acho que é a única saída. O Brasil só vai se realizar enquanto nação quando a gente enfrentar a desigualdade tremenda que marca a nossa realidade. Essa realidade é historicamente construída a partir de determinadas questões. Ela é econômica, mas é uma desigualdade marcadamente racial. Não existirá um governo Lula exitoso se o tema do enfrentamento ao racismo não for o tema central, junto com a questão da sustentabilidade. Ou seja, imaginar o mundo do trabalho, do enfrentamento da pobreza, com esses recortes, sendo conscientes deles. E também a questão de gênero. A pobreza brasileira é estruturada assim. Eu só acredito, e cada vez mais, na possibilidade da gente fazer esse enfrentamento ao lado do povo brasileiro. E quem é o povo brasileiro senão essas mulheres, como a Bruna e a Daiana? As mães das duas, a quem eu conheço e admiro profundamente, são o povo brasileiro. Às vezes, a turma, às vezes não, recorrentemente, a turma mais…, não vou nem dizer antiga, porque não é geracional isso, mas a turma diz: “ah, essas questões identitárias…” Falam com certo desprezo, como se a gente estivesse falando apenas de identidade. Identidades também são importantes, são constitutivas do que nós somos, mas isso não é sobre identidade. Não existe esse povo brasileiro sem as mulheres, sobretudo as mulheres negras.

P – Por outro lado, os deputados mais votados, tanto federal quanto estadual, aqui pelo Rio Grande do Sul, são pessoas que apoiavam o governo Bolsonaro. Entrando no tema do teu livro Somos as palavras que usamos, como se faz esse diálogo, com quem está completamente desconectado dessas lutas?

MD – Quando a eleição de 2018 terminou, eu escrevi o Revolução Laura, que foi escrito durante a eleição, e eles pediram para fazer um livro sobre feminismo. Eu falei: cara, tem dezenas de livros teóricos sobre feminismo prontos, tem inclusive livros simples. Por exemplo, a Márcia Tiburi tem um livro extraordinário que é Feminismo pra todes, que agora até mudou o nome, O feminismo é o contrário da solidão, de tanto que eu enchi o saco dela, porque esse título é uma frase lindíssima e virou o nome do livro dela. Aí eu pensei: eu não quero fazer um livro sobre feminismo. Então o que eu fiz: eu juntei durante um tempo diversas frases que eu ouvia, que faziam com que as pessoas não votassem na gente. “Feminismo é o oposto do machismo”, “as feministas odeiam homens”, “as feministas não se depilam”, “como é que teve filho se defende o aborto?”. Juntei todas essas frases e peguei umas vinte amigas minhas, com diferentes profissões, mas com consciência, e falei: se vocês fossem pensar nas respostas que nós feministas mais temos que dar, quais seriam essas perguntas? Elas me mandaram outras tantas frases. “ah, fala pra mulher se aceitar, mas faz academia”. Tipo Danilo Gentili, que falou: “A Manuela fala pra mulher se aceitar, mas faz lipo”. Eu falei, bá, se eu já estou pagando o preço, podia aproveitar e fazer, não é? [risos]. Pagando o preço pelo que eu nem fiz, né? Mas, enfim, sistematizei isso numa ideia de que nós precisamos falar com essas pessoas, porque, como marxista que eu sou, embora ainda seja estranho pras pessoas ouvirem que existem marxistas, eu acredito na disputa da consciência das pessoas. Os trabalhadores, eles não vão pra fábrica, pras lojas, pro Uber, com consciência da exploração que eles sofrem. E isso eu falo desde 2018. Eu falava: gente, ou nós vamos tentar conversar com as pessoas que não estão junto com a gente, ou a gente não vai mudar o mundo.

P – Como é que foi a tua entrada no mundo da literatura, dos ensaios, dos livros que explicam coisas? Tu chegas nesse mundo dos clubes de leitura depois de uma história de militante, de mulher com mandato, de estudiosa e de acadêmica. Conta essa história, essa passagem.

MD – Eu desde pequenininha fui alfabetizada pela minha irmã mais velha. Me alfabetizou e me educou com livros como Feliz ano velho [de Marcelo Rubens Paiva] quando eu tinha uns 10 anos, me traumatizou. Eu nunca mais pulei na cachoeira depois, graças a ela, mas tudo bem (risos). Então eu sempre tive, digamos assim, o meu espaço sagrado, o meu individual, sempre foram os livros. Quando eu era deputada e vivi muita violência em Brasília, era ali naquele mundo que eu me protegia, e eu fui me dando conta disso. E fui me dando conta de que as pessoas não tinham a menor ideia disso. Porque claro, eu sou mulher, né?, então nunca fui vista como muito capaz, as pessoas pensavam assim “Nossa, ela lê, uau”. E por que estou falando isso? Porque aconteceu que eu li um livro muito bom, e comecei a postar nas minhas redes sociais. Me dei conta de que aquilo engajava, e comecei a achar uma coisa muito legal, pensei assim: cara, essa tal de influência… Se eu posso influenciar as pessoas, vou influenciar as pessoas a ler! Que político dá dicas de livros? Que coisa relevante eu posso fazer! A coisa mais relevante que eu fiz na minha vida pública foi ter dito que eu iria criar a minha filha, foi o que mais mudou o Brasil e as pessoas a partir do que eu fiz. Aí pensei: vou começar a falar dos livros que eu leio. E aí começaram a vender os livros, e eu comecei a ficar super feliz, e pensei: “Que massa, cara, eu posso ajudar a fazer uma editora pequena vender mil livros.”

P – O fenômeno da pandemia na leitura, na associação…

MD – Aí começou tudo. Nesse mesmo momento tinha outra coisa legal: no Instituto que eu coordeno, de combate às fake news, a gente parou de fazer palestra em escolas e transformou a venda dos meus livros em cestas básicas, e uma cesta básica que vinha com um livro dentro. A gente começou a circular mais nesse ambiente meio coletivamente, por desespero, para conseguir garantir comida para as pessoas, por que, de onde é que iríamos tirar o dinheiro? Nós doamos 100 toneladas de alimentos só com venda de livros. Quando acabou eu pensei: “cara, mas eu gosto tanto disso, e no final, as pessoas vêm falar comigo sobre política, e mais interessantes são as mulheres que vêm falar comigo sobre esses livros, que leram e querem discutir. Vou criar um clube”. Acabou sendo um lugar muito especial, para usar a literatura não como válvula de escape da realidade, mas como lente capaz de mediar a realidade, é extraordinário. Todo semestre abrem as inscrições, mas tem um grupo mais ou menos sólido, de umas 500 que são firmes e que vão a todos os encontros.

P – Qual é a tua maior esperança para esse próximo ano novo, e para esses quatro anos de Lula? Tu estás esperançosa?

MD – Nossa, eu estou muito esperançosa, sabe? Esse último período foi muito violento para todos nós. Todos nós sofremos muito, e a minha maior expectativa e a mais urgente, digamos, é que a gente consiga muito rapidamente implementar ações de enfrentamento à fome e à miséria. Eu torço muito e lutarei com todo o meu empenho, como sempre, mesmo fora do parlamento, para que a gente consiga mais uma vez tirar o Brasil do mapa da fome. É mais relevante isso em 2022 do que era no outro período, porque o mundo é mais complicado do que era no outro período. E eu começo por isso, porque claro, precisa pacificar, precisa gerar trabalho e renda, precisa retomar a atividade industrial, precisar reposicionar o Brasil no mundo, precisa parar de queimar a Amazônia, precisa parar de destruir o Pantanal, precisa parar de assediar as mulheres, mas não existe nada mais violento pra mim, e acho que para grande maioria, de nós, do que saber que tem uma pessoa igualzinha a mim, uma mãe igualzinha a mim, que tem uma filha igualzinha à minha, e que para ela aquela pessoa é a pessoa mais importante do mundo, como os meus são para mim, e ver essa pessoa passando fome [Manuela se emociona, e se dirige à Marcela, que fez a pergunta]. Tu não devias ter feito isso, meu rímel é ruim. Eu virei, depois da eleição de domingo, uma máquina de chorar, desde domingo as pessoas queriam falar comigo na apuração e eu não conseguia falar. Eu realmente espero que pare de doer tanto viver no Brasil, porque viver no Brasil no último período doeu demais em todos nós, eu espero que seja melhor. E eu fiz uma promessa, quatro anos atrás, para um grande amigo meu, de que eu só ia me dar o direito de chorar quando as pessoas pudessem voltar. Eu espero que as pessoas possam voltar a viver nesse país sem correr risco de vida por expressarem as suas opiniões, por serem quem elas são. Porque nós vivemos assim no último período, não é?

* O conteúdo acima foi produzido pela equipe do Grupo Matinal Jornalismo, formado por três veículos de comunicação digital.

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(BL)

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