O que Putin disse um ano depois? Retórica e realidade

O presidente russo culpa o Ocidente e as elites ucranianas pela guerra. Seu discurso revela o corolário de uma nova polaridade hegemônica no mundo.

Na noite desta segunda-feira (20), o presidente da Rússia, Vladimir Putin, fez um longo discurso de 1h45m marcando um ano de conflito com a Ucrânia. O discurso sobre o estado da nação feito em Moscou avaliou a invasão da Ucrânia iniciada em 24 de fevereiro de 2022.

O discurso foi marcado pelo anúncio da ruptura da Rússia com o tratado de armas nucleares, feito com os EUA em 2010.

“Sou forçado a anunciar hoje que a Rússia está suspendendo sua participação no tratado estratégico de armas ofensivas.”

O novo tratado START foi assinado em Praga em 2010. Entrou em vigor no ano seguinte e foi prorrogado em 2021 por mais cinco anos após a posse do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden.

Ele limita o número de ogivas nucleares estratégicas que os Estados Unidos e a Rússia podem implantar e a implantação de mísseis e bombardeiros terrestres e submarinos para lançá-los.

A Rússia tem o maior estoque de armas nucleares do mundo, com cerca de 6.000 ogivas, segundo especialistas. Juntos, a Rússia e os Estados Unidos detêm quase todas as ogivas nucleares do mundo (90%).

“Faço este discurso em um momento que todos sabemos ser um momento difícil e divisor de águas para nosso país, um momento de mudanças cardeais e irreversíveis em todo o mundo, os eventos históricos mais importantes que moldarão o futuro de nosso país e de nosso povo, quando cada um de nós carrega uma responsabilidade colossal.”

Putin admite a dimensão geopolítica do conflito, que se esperava fosse rápido e menos abrangente, a partir da demanda russa de que a Ucrânia não aceitasse bases da Otan (tratado militar de países ricos do Norte) nas suas fronteiras. Algo que já ocorrera antes com a Geórgia e se resolveu em poucos dias, sem a interferência dos países do Ocidente.

No entanto, a recusa do presidente ucraniano Volodymyr Zelensky em aceitar a reivindicação, num clima em que os atritos com a Rússia e os russos residentes no país só escalavam, acabou levando as Forças Armadas da potência militar russa até as fronteiras do vizinho. Com a ajuda de outros países, acirrando as ameaças e alertas à Rússia, em vez de colaborar para o diálogo, a invasão acabou ocorrendo.

De lá pra cá, sanções econômicas, políticas, culturais do Ocidente fizeram a Rússia se aproximar ainda mais de países aliados, como a China, fortalecendo um campo hegemônico ao Oriente. O Ocidente, por sua vez, unificou a narrativa contra a Rússia. 

O discurso de um “divisor de águas” aponta para um fechamento ainda maior da Rússia para o Ocidente, evitar operações com o dólar, bloqueio de exportações de combustíveis para a Europa, aproximação de aliados asiáticos, corrida armamentista, ruptura total com a Ucrânia e com acordos multilaterais diversos, como o de armas nucleares.

“Eles apenas tentaram usar esses princípios de democracia e liberdade para defender seus valores totalitários e tentaram desviar a atenção das pessoas de escândalos de corrupção… de problemas econômico-sociais”.

Com o fechamento do Ocidente a qualquer possibilidade de diálogo com a Rússia, Putin ganha argumentos para defender um discurso ideológico que repercute cada vez mais em países orientais e muçulmanos, que já desconfiam das intenções americanas e europeias, há anos. 

Países com governos centralizadores, ou fortes, ou autoritários, ou teocráticos do Oriente vêm o discurso de defesa da democracia e dos direitos humanos feito pelo Ocidente, cada vez mais, como uma cortina de fumaça para impor pela força seu controle sobre economias vulneráveis. 

O domínio ou divisionismo nefasto imposto sobre Iraque, Líbia, Afeganistão ou Síria, por exemplo, levaram ao desmonte da governabilidade desses países, conflitos civis incontroláveis e apropriação de riquezas, sob a desculpa cada vez menos aceitável de democratizar esses países. 

“A responsabilidade é do Ocidente e da elite e do governo ucraniano, que não serve ao interesse nacional, mas [ao invés disso, serve ao interesse] de terceiros países [que] usam a Ucrânia como base militar para combater a Rússia.

A Rússia entende o conflito na Ucrânia como uma guerra por procuração, em que os EUA usam o país europeu, e a própria União Europeia, como grande oportunidade para fragilizar Putin e dominar os fartos e valiosos recursos naturais russos. 

A Otan que serviu ao propósito de proteger a Europa capitalista da União Soviética comunista, nunca foi desmontada, apesar das promessas vazias. Acordos para desmilitarização das fronteiras com a Rússia foram descumpridor sistematicamente. 

Gradualmente, Putin foi vendo a Otan se aproximar de suas fronteiras a partir de antigas repúblicas soviéticas, num movimento considerado desnecessário, já que a Rússia não representava ameaça aos vizinhos. Desta forma, golpes brandos (primaveras) substituíam governos nacionalistas aliados de Moscou por governos títeres alinhados com EUA e União Europeia. As elites econômicas e políticas desses países, por sua vez, foram sendo cooptamos por promessas de inserção na Comunidade Europeia. 

“Quanto mais eles enviarem armas para a Ucrânia, mais teremos responsabilidade pela situação de segurança na fronteira russa. Esta é uma resposta natural.”

Mais uma vez, Putin ressalta o fechamento do país e a corrida armamentista que deve ocorrer, desde já. Regras elementares de conflitos modernos que Putin alega estar respeitando, como a preservação da população civil, a abertura de corredores humanitários, o acordo para escoamento de exportações agrícolas, respeito aos direitos humanos de militares e populações rendidas, assim como uso apenas de armamentos permitidos pelos acordos internacionais, podem ir por água abaixo.

“Não lutamos com o povo ucraniano. Eles se tornaram reféns do regime de Kiev, que ocupou a Ucrânia econômica e politicamente. Ao longo dos anos, eles foram fazendo de tudo para trazer essa degradação… Eles estão usando seu povo, é triste, mas é verdade.”

Este discurso vem sendo feito desde 2014, quando das manifestações da primavera ucraniana, que “coincidentemente”, ocorreram em várias partes do mundo (inclusive no Brasil), sempre mobilizadas por redes sociais controladas pelos americanos, para derrubar governos não-alinhados com os EUA. 

Sob o argumento de combate à corrupção do governo, defesa da democracia e, – em países como a Ucrânia -, a demanda por entrada na União Europeia, governos caíram, foram substituídos por outros tão corruptos e autoritários quanto, mas dispostos a conflitar abertamente com vizinhos. 

Desta forma, as populações de trabalhadores que foram as ruas cheias de esperança se tornaram reféns de governos de feição neonazista e militaristas que só fizeram jogar seu povo num ambiente muito pior do que viviam. Em vários deles, como Líbia, Síria e Ucrânia, o cenário é de devastação sem promessa de perspectiva de retomada da paz.

“Passo a passo, com cuidado e consistência, vamos resolver as tarefas que temos pela frente. Desde 2014, o (povo do) Donbass lutava, defendendo seu direito de viver em sua própria terra, de falar sua língua nativa.

Aqui, Putin volta à justificativa original para a invasão, ao citar a região fronteiriça com a Rússia, de maioria de população de origem russa. Ao anunciar que pretendia desnazificar a Ucrânia, se referia ao ambiente envenenado qee se tornou a região do Donbass, desde que milícias neonazistas começaram a atuar livremente contra russos, a esquerda e sindicalistas.

“Eles lutaram e não desistiram nas condições de bloqueio e bombardeio constante, ódio indisfarçável por parte do regime de Kiev. Eles acreditavam e esperavam que a Rússia viesse em seu socorro.

Desde a ascensão das forças de extrema direita, em 2014, esses russos foram brutalmente perseguidos e impedidos de falar sua língua materna. Chacinas e linchamentos eram diários pelas ruas de cidades como Mariupol. Muitos alegaram que a chegada do Exército russo foi um alívio do clima que se instalara na região. 

Com o avanço do conflito, milhões de russos ucranianos foram deslocados e abrigados no país, embora outros milhões tenham se espalhado como refugiados pela Europa.

“Enquanto isso, fizemos o possível para resolver esse problema por meios pacíficos. Nós tentamos pacientemente negociar uma saída pacífica desse conflito tão difícil, mas um cenário completamente diferente estava sendo preparado pelas nossas costas.”

Neste ponto, Putin se coloca como vítima de uma conspiração ocidental, ao sugerir a pureza de suas intenções, diante do que o Ocidente planejava para fragilizar seu governo sem explicitar os objetivos. 

“Já começamos e continuaremos a construir um programa de grande escala para a recuperação e desenvolvimento socioeconômico desses novos sujeitos da federação (território anexado da Ucrânia). Estamos falando de revitalizar empresas e empregos nos portos do Mar de Azov, que voltou a ser um mar interior da Rússia, e construir novas estradas modernas, como fizemos na Crimeia”.

Aqui, Putin admite o caráter de anexação dos valiosos territórios às margens do Mar Negro. A defesa do Donbass sempre foi um argumento utilizado para justificar a “operação militar especial” para a população russa. O fato de muitos terem famílias na região, cientes dos problemas discriminatórios enfrentados, todos confiavam no governo.

Assim, a intenção legítima de afastar a Otan das fronteiras russas acaba se perdendo com a anexação de partes da Ucrânia. Cada vez mais verbalizado, a defesa da integridade territorial vai se tornando a grande justificativa para o acirramento do conflito e envio de armas mais pesadas do Ocidente para Zelensky.

“Todos nós entendemos, eu entendo como é insuportavelmente difícil agora para as esposas, filhos, filhas de soldados caídos, seus pais, que criaram defensores dignos da Pátria.”

Putin disse entender como é difícil para os parentes dos soldados russos que morreram lutando na Ucrânia e prometeu “apoio direcionado” com um novo fundo especial.

Esta parte do discurso apela para a compreensão do povo, conforme as perdas se avolumam e a aprovação a guerra vai diminuindo. Um público que ouviu o tempo todo falar em “operação militar especial”, em vez de guerra, e justificativas que parecem cada vez mais distantes e esquecidas, começa a desconfiar de seu governo. 

As sanções e retirada das empresas ocidentais do país, com explosão da inflação, do desemprego e do desabastecimento, se soma às vidas perdidas de jovens como agravantes para a perda de popularidade do governo. As populações russas no Donbass, também começam a se sentir exaustas com o prolongamento da guerra. 

“Eles distorcem fatos históricos e constantemente atacam nossa cultura, a Igreja Ortodoxa Russa e outras religiões tradicionais de nosso país”, disse Putin sobre as nações ocidentais que apoiam a Ucrânia.

“Veja o que eles fazem com seus próprios povos: a destruição da família, da identidade cultural e nacional, a perversão e o abuso de crianças são declarados a norma. E os padres são forçados a abençoar os casamentos entre pessoas do mesmo sexo.

“Como ficou conhecido, a Igreja Anglicana planeja considerar a ideia de um Deus neutro em termos de gênero… Milhões de pessoas no Ocidente entendem que estão sendo levadas a uma verdadeira catástrofe espiritual.”

“Veja o que eles fazem com seu próprio povo: a destruição de famílias, de identidades culturais e nacionais e a perversão que é o abuso infantil até a pedofilia, são anunciados como a norma … e os padres são forçados a abençoar pessoas do mesmo sexo casamentos”.

Discursando para uma plateia de militares, elite econômica, política e cultural, além de autoridades do clero, Putin apela aos valores religiosos da Rússia conservadora para atacar o liberalismo de costumes no Ocidente. 

Sua retórica, aqui, se aproxima dos governos teocráticos orientais, mas também da hipocrisia e utilitarismo da extrema-direita ocidental. Temas que normalmente são usados como cortina de fumaça para impedir a consciência das populações para as verdadeiras ações do governo e reais problemas do país, são abertamente estimulados pelo líder russo.

Leia a íntegra do discurso aqui.

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