Conceitos, preconceitos e eufemismo

O lusotropicalismo de Gilberto Freyre, como falsa teoria social, tal como o discurso da crioulidade em Angola, passavam a ser incutidos para que se ignorasse “a dimensão sócio-económica e política da colonização”

Pese o facto de a “raça” ser um falso conceito de muitos preconceitos e da essência da humanidade ser toda ela mestiça, a aparência das pessoas, em função de um maior ou menor grau de melanina, mantém-se ainda, nos dias de hoje, como uma questão polémica, apesar de cientificamente esclarecida, desde 1945, por biólogos ao serviço da UNESCO.


O filósofo africano Valentin Yves Mudimbe, no seu livro “A Invenção de África – Gnoses, Filosofia e a Ordem do Conhecimento”, refere que a identidade e alteridade são vistas sempre como algo que é dado a outros, assumidas por um Eu ou Nós-sujeito, estruturadas em diferentes opiniões e expressas ou silenciadas de acordo com desejos pessoais face a uma “episteme”.


A língua é um sistema de signos convencionais usado pelos membros de uma mesma comunidade. A linguagem, por sua vez, é o resultado da combinação entre a língua e a fala. Um outro aspecto elementar da linguística é o signo, que advém da união do significante e do significado. Ao utilizarmos uma determinada palavra, fazemos por meio dela ecoar todo um processo histórico de formação de conceitos sobre a vida e sobre o mundo, para além dos valores simbólicos e ideológicos que se podem associar ao mesmo. Quando queremos conhecer a origem das palavras, recorremos à etimologia.


Após a II Guerra Mundial, chegou-se finalmente à conclusão que a espécie humana tinha uma única origem e que as chamadas “raças” da humanidade eram estatisticamente apenas grupos distinguíveis. Segundo Jorge Dias, em “Antropologia Cultural”, na realidade não existem raças puras nem nunca devem ter existido, porque a humanidade pertence toda à mesma espécie “homo sapiens” e as chamadas “raças” não são mais do que variantes em zoologia. Tudo isto, a propósito de miscigenação e da palavra “mulata”, fruto do cruzamento entre europeus e negros africanos.


De acordo com uma notícia recente saída num blog, a origem da palavra “mulata” voltou a ser discutida, porque um bloco de carnaval do Rio de Janeiro anunciou boicotar a canção “Tropicália”, de Caetano Veloso, por causa de um dos versos apresentar a seguinte referência: “os olhos verdes da mulata”. Para o bloco de carnaval, a palavra “mulata” etimologicamente advém de “mula”, mas a historiadora Lita Chastan refere que a origem do termo pode ser outra: “o termo árabe muwallad (mestiço de árabe com ‘não árabe’)”. E acrescenta “muwallad (mualad, mulad); = mestiço do árabe com o ‘não árabe’ / mulata = mestiça do branco com a negra.”


Todavia, o Wikipédia refere que “a maioria dos estudiosos confirma que o termo ‘mulato’ vem da palavra ‘mula’ em espanhol e português, que, por sua vez, baseia-se no termo em latim para o mesmo animal, ‘mulus’. A mula é o progénito do cruzamento do cavalo com jumenta e do jumento com égua. Como significa ‘híbrido’ (resultado de mistura de raças), passou a aplicar-se ao filho de homem branco e mulher negra ou vice-versa. A palavra foi usada pela primeira vez há cerca de 400 anos, durante o período esclavagista. Na comparação implícita, pode ter entrado o interesse dos escravocratas em justificar a escravidão e todas as perversidades contra os negros escravizados, passando a ideia de que eram próximos, mas não pertenciam à mesma espécie dos brancos”. Refere ainda o Wikipédia que “a maioria dos etimólogos e lexicógrafos descarta a hipótese de que a palavra ‘mulato’ seja proveniente do árabe ’mowallad’ (filho de árabe e estrangeiro) ou que possa estar relacionada com ’walada’ (dar à luz). Eles ressaltam que ‘mulato’ é certamente um termo ligado ao comércio atlântico de negros escravizados”.


O académico e escritor angolano Arlindo Barbeitos, num texto intitulado “Estratégias de Identidade entre Angolenses – Uma Mudança Dramática – O Malentendido”, também chama a atenção para “a animalização que se torna ostentatória no produto da miscigenação, como que a verberar a infracção grave que o misto constitui: ‘mulato’ (de mula), ‘cabrito’ (de cabra). A especificação, violentamente concebida e outorgada, se compõe, assim, de uma totalidade despojada dos predicados que o africano se atribuía a si e daqueles que o dominador aplicava ao homem feito à sua imagem. Ela equivale, de uma parte, à objectivação da relação mencionada e, de outra, à sua transfiguração, impingida enquanto identidade, e indicando simbolicamente dependência real ou virtual.” Através dos versos de um poema, Barbeitos chega a manifestar repúdio pela identidade, enquanto fantasia social: “A identidade/ ou / voo esquivo de pássaros nocturnos/ em torno da lua/ Identidade/ é cor/ de burro fugindo”.


Também o investigador brasileiro José Ramos Tinhorão nos dá a seguinte elucidação: “mulato, como se sabe, era o nome que originalmente se dava ao macho da mula, o animal híbrido e estéril no mesmo género, proveniente do cruzamento de jumento com égua ou de cavalo com jumenta. A extensão dessa designação aos descendentes de brancos e negros deve ter tido porém origem não apenas no facto de tais mestiços humanos resultarem também de um cruzamento de raças, mas de os cavalos e muares serem comummente baios, ou de cor castanha de tonalidade próxima do pardo da pele humana, como aliás ressaltaria no século XVIII o satírico Nicolau Tolentino de Almeida. Ao referir-se a um padre mestre de retórica mulato, seu desafecto era essa comparação maldosa que usava para o diminuir: ‘um homem de couros baios’.”


O dramaturgo português Gil Vicente (1465-1537), de acordo com Tinhorão, antecipava, de certa maneira, no “Pranto de Maria Parda” (1522) “a ligação ideológica que o povo logo estabeleceria entre os mestiços animais e humanos ao atribuir ao taberneiro João do Lumiar, na fala em que este se nega a vender vinho fiado à parda beberrona, o comentário: ‘que eu não hei-de fiar / de mula com matadura’. O trocadilho estava no duplo sentido do verbo ‘fiar’, que aí funcionava acumulando o sentido original de confiar com o de venda sob promessa de pagamento futuro. Quer dizer, João do Lumiar não fiava o vinho por não confiar na parda que, após tantos anos de vício, lhe lembrava uma mula velha daquelas a quem o uso antigo dos arreios já lhe estampava marcas no pêlo (a chamada ‘matadura’).”


Nos EUA, afirma Kwame Anthony Appiah, no seu livro “Na casa de meu pai”, prevalecia o ponto de vista de que “negro” era qualquer pessoa com uma dose de “sangue negro”, por mínima que fosse: “any person with an admixture of negro blood, no matter how small”. Assim sendo, o conceito de “negro” abrangia também os mestiços. Porém, os conflitos entre negros e mestiços no Haiti e na Nigéria, onde, na década de 70 do século XIX, o clérigo da igreja protestante americana Edward Wilmot Blyden esteve pessoalmente envolvido, bem como ainda o facto dos mestiços nos Estados Unidos, naquele período, beneficiarem de um estatuto social superior ao dos negros, levou-o a colocar-se definitivamente numa posição “anti-mulatos”. Estes foram então remetidos para um lugar junto das raças caucasóide ou mongolóide.


Depois de, em 1878, Blyden ter oficialmente manifestado esta sua opinião, não encontrou eco nem nos meios políticos americanos da época, nem nos da Libéria. Só anos mais tarde as referências negativas aos “mulatos” vieram a encontrar ambiente propício para voltarem a ser postas em cena.


Porém, Pinharanda Gomes, no seu livro “Fenomenologia da Cultura Portuguesa”, publicado em 1969, chegou a defender que “a invenção do mestiço era o facto mais importante da colonização portuguesa; o mestiço era a vida necessária ao aparecimento da nova cultura portuguesa; o mestiço seria a ponte de união geográfica de Portugal e o mundo por ele colonizado”. O lusotropicalismo de Gilberto Freyre, como falsa teoria social, tal como o discurso da crioulidade em Angola, passavam a ser incutidos para que se ignorasse “a dimensão sócio-económica e política da colonização”.

Filipe Zau é Ph. D. em Ciências da Educação e Mestre em Relações Interculturais

Artigo originalmente publicado no Jornal de Angola (Terça-feira, 28 de Fevereiro, 2017), Opinião, Edições Novembro, Luanda, p.7

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