Órgão de combate à tortura aponta graves violações em prisões

Relatório mostra o uso de instrumentos como bombas de gás e porrete, além de maus tratos, insalubridade, falta de atendimento em saúde e pedidos de socorro

Penitenciária de Guarulhos. Foto: MNPCT

Relatório do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), divulgado nesta terça-feira (1º), explicita uma das marcas históricas mais cruéis do sistema penal brasileiro e, em especial, do paulista: os maus tratos e a tortura contra os apenados. Após uma série de visitas, o grupo constatou que essas práticas continuam, mesmo já tendo havido recomendações para que as mesmas fossem sanadas, perpassando os últimos governos do estado mais rico do país. 

De acordo com o órgão — que é composto por 11 especialistas independentes e faz parte do Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura —, o documento resultante de vistorias em diferentes unidades mostra um um cenário trágico no sistema prisional de São Paulo. No caso dessas instituições, seis foram visitadas durante o mês de outubro de 2023. 

As situações constatadas mostram o quanto ainda é preciso avançar no âmbito dos direitos básicos de pessoas que cumprem pena. Herança das práticas disseminadas ainda na escravidão, a prisão é muitas vezes encarada como uma ferramenta de vingança e não de Justiça. Sob essa perspectiva, boa parte da sociedade encara como correta e normal a prática de maus tratos a alguém que está preso por ter cometido um crime. 

Soma-se a esses aspectos o fato de que a ascensão da extrema-direita  potencializou o autoritarismo e o uso da força por parte dos agentes de segurança pública, validando explícita ou implicitamente medidas que resultam em abusos desse tipo. 

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Para piorar, o problema não parece estar perto de acabar no estado, comandado por representantes desse espectro político, como governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), apadrinhado de Jair Bolsonaro (PL), e os secretários de Segurança Pública, Guilherme Derrite, que fez parte da Rota, e de Administração Penitenciária, Marcello Streifinger, coronel da Polícia Militar. 

O relatório lembra que a partir de uma articulação envolvendo associações de familiares, sobreviventes do sistema prisional e organizações da sociedade civil, foi elaborado um projeto, apresentado em 2014, instituindo o Comitê e o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura. 

Apesar de aprovado pela Assembleia Legislativa de SP, foi vetado pelo então governador João Dória. Outras tentativas para reverter o veto foram feitas, sem sucesso.

Segundo o Mecanismo, já sob o governo de Tarcísio de Freitas, em 2023, o MNPCT fez uma apresentação do órgão e do sistema de prevenção e combate à tortura para o secretário-executivo da Secretaria de Justiça e para a Coordenação de Direitos Humanos da mesma secretaria e não obteve resposta. “Ou seja, o estado com o maior número de unidades prisionais e socioeducativas no Brasil, de maneira flagrante, além de descumprir as diretrizes do OPCAT (Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes) e a legislação nacional, está dentre uma das unidades da federação que não assume compromisso mínimo com o sistema de prevenção e combate à tortura”, alerta o relatório. 

Essa situação, enfatiza, “contribui para o aumento significativo do cenário histórico de violência institucional, que vai desde a arquitetura violadora das unidades de privação de liberdade, à falta de vagas e, consequentemente, à superlotação dos alojamentos, o não acesso à educação, à saúde, à alimentação e, por fim, as situações de tortura física e mental provocadas diretamente pelos agentes públicos”. 

Tratamento desumano

Caso de necrose em unidade de Guarulhos. Foto
MNPCT, 2023.

Conforme relatado, foram evidenciadas práticas de tortura sistemáticas, por meio de espancamentos, violência psicológica e uso desproporcional e inadequado de armamentos menos letais, além de outras formas de tratamento cruel e desumano, como situações de fome, incomunicabilidade, superlotação e desassistência à saúde.

Alguns exemplos desses tratamentos foram encontrados na Penitenciária I de Presidente Venceslau. A unidade — que contava com 523 pessoas cumprindo pena quando da inspeção e já foi modelo no Brasil, segundo a Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) — hoje está longe de servir de exemplo. 

Além de problemas estruturais que levam a ambientes insalubres, de acordo com o relatório, foram marcantes “os inúmeros pedidos de socorro realizados pelas pessoas presas na data da inspeção. A Penitenciária I de Presidente Venceslau já é considerada como uma unidade de castigo, mas o setor disciplinar que existe dentro dela é chamado de ‘trem fantasma’, ou seja, é o castigo do castigo”.

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Ainda mais graves, conforme o documento, foram os relatos sobre a atuação dos agentes de segurança, que envolvem algemação imprópria de pessoa presa na porta da cela em situações de revista; uso inadequado e abusivo de bombas/granadas de gás, spray de pimenta e tonfas (espécie de porrete) fora dos protocolos normativos e utilização de materiais artesanais não autorizados, como barras e canos de ferro. 

Outro ponto é a baixa qualidade da alimentação, o preparo em condições inadequadas de higiene e o extenso intervalo de tempo entre a última refeição (por volta das 15h30) e a primeira do dia seguinte (aproximadamente às 7h30). 

“A recorrência de jejum prolongado é potencial causador de uma série de impactos à saúde das pessoas. O jejum imposto pelo estado de São Paulo, através da SAP, já foi amplamente exposto e denunciado a órgãos nacionais internacionais pelo MNPCT e outras entidades no ano de 2022, nomeando a situação como pena de fome”, afirma o documento.

Também foram constatadas práticas violentas e abusivas no transporte ou transferência de apenados, tais como a realização de “corredor polonês” na saída da unidade; deslocamentos em camburões superlotados e sem ventilação e a passagem de longos períodos dentro da viatura parada debaixo do sol. “As pessoas relataram que ao longo do translado não receberam água nem alimentação, algumas delas chegaram a desmaiar na viatura pelo calor e desidratação”, diz o relatório. Outro caso que chamou atenção foi encontrado na penitenciária Adriano Marrey, de Guarulhos, onde um detento que havia realizado uma amputação em membro inferior estava com sinais de necrose por falta de atendimento adequado. 

Nas unidades prisionais femininas inspecionadas, o grupo destaca problemas como a desassistência material e de saúde, além de tratamentos vexatórios em relação aos procedimentos de revista pessoal. 

No caso da estrutura física, o Centro de Detenção Provisória de Franco da Rocha está entre os mais insalubres e nessa unidade também foi constatada a manutenção do aprisionamento de mulheres gestantes, “com grave desassistência à saúde”. Também foram verificadas “rotinas de trancafiamento e violências morais” de mulheres puérperas com seus bebês na unidade de Tupi Paulista. 

Recomendações

A situação levantada na vistoria e nos relatos que chegaram ao Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura resultou ainda numa série de recomendações voltadas a órgãos do Executivo estadual, bem como as direções das unidades, de controle e do judiciário, como o Ministério Público e o Tribunal de Justiça de São Paulo. 

Entre essas recomendações estão a implementação do Sistema Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, com um comitê em condições de funcionamento e um Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, “com vedação de presença de pessoas ligadas a órgãos da segurança pública ou a outros que possam representar conflito de interesses para sua atuação autônoma”. 

Além disso, sugere que seja vedado o uso de armamentos menos letais no interior das unidades prisionais tais como “cartuchos de impacto cinético com múltiplos projéteis pela imprecisão e o risco de causar danos; bomba fumígena HC, pois possui comprovadamente riscos desconhecidos e em decorrência disso sua produção foi banida em outros países”, entre outros. 

Também foi recomendado o uso de câmera corporal durante todas as ações e intervenções por parte das forças policiais empregadas nos estabelecimentos penais de São Paulo. 

No que diz respeito à saúde, foram feitas sugestões como a implementação da Política Nacional Atenção Integral à Saúde de Pessoas Presas em todas as unidades prisionais e que sejam garantidos todos os equipamentos, medicamentos e outros insumos necessários para realização de atendimentos médicos, odontológico e psicossocial nas unidades prisionais.

Por outro lado, diante da precarização das condições de trabalho dos servidores, o relatório também aponta para a necessidade de que sejam garantidos aos policiais penais o aumento de salário, os adicionais noturno, de insalubridade e de periculosidade e a gratificação por formação em curso superior e pós-graduação.