CFM entra na Justiça contra cotas na formação de médicos
Conselho médico manteve perfil bolsonarista na última eleição e enfrenta resistências de nova geração de médicos atacando principais pautas de democratização do acesso à saúde
Publicado 04/11/2024 14:21 | Editado 06/11/2024 12:40
O Conselho Federal de Medicina (CFM) ingressou recentemente com uma ação civil pública contra a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh), contestando a reserva de 30% das vagas para pessoas com deficiência, indígenas, negros e moradores de quilombos no Exame Nacional de Residência (Enare). O caso foi apresentado à 3ª Vara Cível de Brasília, no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), e evidencia uma oposição a políticas de inclusão e diversidade na formação de especialistas da saúde.
Em sua nota, o CFM argumenta que as cotas representam “vantagens injustificáveis” e “discriminação reversa”, sustentando que a seleção para residência médica deveria basear-se exclusivamente no “mérito acadêmico de conhecimento.” No entanto, a justificativa ignora que as políticas de ações afirmativas, amparadas legalmente e endossadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF), buscam compensar disparidades históricas de acesso e garantir uma representação demográfica mais inclusiva na medicina, especialmente em regiões e comunidades marginalizadas.
A Ebserh, responsável pela organização do Enare e vinculada ao Ministério da Educação, defendeu a legalidade e a importância das cotas. Segundo a estatal, a política de reserva de vagas para grupos sub-representados está de acordo com decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) e representa um esforço para garantir que o acesso às residências médicas e multiprofissionais seja mais representativo da diversidade demográfica do país.
A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) também expressou apoio à inclusão de políticas afirmativas no Enare, enfatizando que o acesso à pós-graduação e às residências em saúde continua profundamente desigual no Brasil. “O acesso às diferentes modalidades de pós-graduação, inclusive às residências em saúde, ainda é extremamente desigual, com sub-representação das pessoas negras (pretas e pardas), indígenas e pessoas com deficiência”, afirmou a Fiocruz em nota. Esses comentários destacam um problema persistente: a elitização da medicina e a exclusão histórica de determinados grupos.
Alinhamento conservador do CFM
A ação do CFM contra as cotas se insere em um contexto mais amplo, marcado por sua aliança com agendas conservadoras e políticas restritivas, principalmente desde o governo Bolsonaro. Em agosto, foi eleita uma nova diretoria do conselho, em sua maioria composta por chapas de perfil conservador, que abraça pautas políticas e ideológicas, como restrições ao direito ao aborto legal, pautas “pró-vida” e a defesa de práticas sem comprovação científica, como o uso da cloroquina para tratar a COVID-19.
A reação negativa do CFM às cotas é consistente com uma postura conservadora e elitista observada em outras decisões recentes do órgão, cujo posicionamento se aproxima de ideologias de direita e práticas excludentes. A campanha de alguns candidatos foi abertamente marcada por apoio a figuras políticas e por uma retórica contra movimentos progressistas, o que reflete a crescente influência do bolsonarismo nas esferas da medicina e na própria organização do conselho.
Raphael Câmara, um dos líderes desse movimento e figura central no CFM, promoveu iniciativas para limitar o direito ao aborto, inclusive articulando a chamada “resolução dos 22 semanas,” que buscava definir um prazo máximo para abortos legais em casos de estupro. A medida foi suspensa pelo STF, que a considerou uma extrapolação das funções do CFM, mas inspirou projetos de lei que tentam restringir ainda mais os direitos reprodutivos no Brasil. Este alinhamento entre o CFM e a agenda conservadora levanta sérias preocupações sobre a autonomia do órgão, tradicionalmente comprometido com princípios éticos e científicos, em meio a um cenário de politização crescente.
Esse alinhamento do CFM com posturas reacionárias e a ausência de uma agenda progressista é motivo de crítica. Dos 54 novos conselheiros eleitos, apenas 12 são mulheres, e, em várias chapas, há pouco ou nenhum foco no Sistema Único de Saúde (SUS) e na promoção de políticas de saúde pública inclusivas. As discussões sobre saúde preventiva e imunização estão visivelmente ausentes dos programas das chapas vencedoras, refletindo a falta de atenção do CFM às necessidades de saúde pública do país.
A luta por representatividade e Inclusão no campo médico
A crescente resistência contra o caráter elitista do CFM tem mobilizado uma nova geração de médicos que reivindicam um conselho mais plural e comprometido com a realidade da saúde pública brasileira. Médicos progressistas reconhecem que, embora a eleição deste ano tenha resultado na predominância de chapas conservadoras, a mobilização em torno de um movimento progressista na medicina nacional é um avanço importante.
Foi a primeira grande eleição com a participação de chapas de oposição. A resistência aos desmandos do CFM continuará, particularmente em um contexto em que a necessidade de políticas de saúde pública e de inclusão se torna cada vez mais urgente.
A Ebserh, responsável pela gestão de 45 hospitais universitários federais, respondeu que as cotas são parte de um esforço para tornar a formação médica mais representativa e inclusiva, em linha com a diversidade da população brasileira. Apoiada por instituições como a Fiocruz, a Ebserh vê na inclusão uma forma de tornar o Sistema Único de Saúde (SUS) mais acessível e plural.
Em um contexto onde a maioria dos médicos ainda é branca e de classe média alta, as cotas buscam reduzir o abismo de representatividade no setor e contribuir para uma medicina mais igualitária. A crítica do CFM ignora o fato de que a presença de profissionais de diferentes origens sociais e étnicas não se limita a preencher cotas, mas colabora diretamente para a formação de médicos com maior compreensão das realidades das comunidades brasileiras.
O posicionamento do CFM contra as cotas no Enare reforça sua desconexão com a realidade de um país onde o racismo estrutural e a exclusão social impactam diretamente a formação de profissionais de saúde. A ação contra as cotas evidencia a resistência de setores tradicionais e elitistas a medidas que buscam democratizar o acesso à formação médica e contribuir para a redução das desigualdades. Mais do que uma disputa judicial, essa é uma luta por um modelo de saúde mais inclusivo, representativo e comprometido com a diversidade da sociedade brasileira.