Após audiência de conciliação sobre Marco Temporal, consenso é escasso no STF
Ministro Gilmar Mendes apresentou texto que mantém proteção a terras indígenas, mas permite mineração sob consulta prévia. Deputada indígena barrada gera protestos.
Publicado 17/02/2025 20:46 | Editado 18/02/2025 11:19

O Supremo Tribunal Federal (STF) realizou nesta segunda-feira (17) uma audiência de conciliação para discutir uma proposta de alteração na lei que estabeleceu um marco temporal para a demarcação de terras indígenas. Entretanto, a sessão revelou grande divergência entre as partes envolvidas, com poucos pontos de consenso no texto discutido. Os itens sem acordo serão analisados em votação na próxima segunda-feira (24).
O texto, com 94 artigos, busca conciliar interesses de indígenas, setor agropecuário e União, mas enfrenta resistências de ambos os lados. A comissão de Gilmar Mendes tenta mediar o conflito, mas indígenas acusam o ministro de favorecer o agronegócio. A disputa reflete um embate entre desenvolvimento econômico e direitos ancestrais, com o STF no centro de uma crise institucional. O desfecho pode redefinir o futuro de 730 terras indígenas em processo de demarcação no Brasil.
A audiência contou com a participação da União, representantes do Congresso, partidos políticos e do Ministério Público Federal, entre outros órgãos e entidades. A condução ficou a cargo do juiz auxiliar do gabinete do ministro Gilmar Mendes, Diego Veras, que criticou o alto número de pontos sem consenso.
“Me chama a atenção que vocês destacaram praticamente todos os dispositivos. Salvou-se aqui, talvez, 5% do que foi estabelecido. Isso demonstra duas coisas: a aridez do tema e a indisposição de quem está aqui, sentados na mesa, de negociar”, afirmou Veras.
Em 2023, o STF declarou inconstitucional a tese do marco temporal, que restringia os direitos territoriais indígenas às terras ocupadas até 1988. No entanto, o Congresso Nacional aprovou uma lei restabelecendo essa tese, posteriormente vetada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O veto foi derrubado pelos parlamentares, mantendo a lei em vigor e gerando uma nova batalha judicial.
O ministro Gilmar Mendes, relator das ações sobre o tema, propôs um processo de conciliação, culminando na proposta apresentada pelo seu gabinete na última sexta-feira (14). Entre os principais pontos do documento está a confirmação da proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras indígenas, independentemente da data de 5 de outubro de 1988. Esse trecho confronta diretamente a tese do marco temporal.
Mineração em terra indígena
Outro aspecto relevante da proposta é a possibilidade de atividades econômicas em terras indígenas, incluindo contratos com não indígenas, desde que sujeitos à fiscalização e eventuais ajustes ou encerramentos determinados judicialmente. Ademais, a previsão de instalação de bases militares sem consulta aos indígenas foi retirada, mas manteve-se a possibilidade de atividades de segurança nacional mediante consulta prévia. Caso haja oposição das comunidades indígenas, caberá ao presidente da República decidir pela autorização da atividade, desde que comprovada sua imprescindibilidade.
A proposta também inclui uma seção sobre participação indígena nos lucros da mineração em seus territórios, prevendo o repasse de 50% da Compensação Financeira pela Exploração Mineral (CFEM). Além disso, a lei vigente proíbe a ampliação de terras já demarcadas, mas a minuta sugere que redimensionamentos possam ocorrer em até cinco anos após a demarcação, caso se comprove erro grave e insanável.
Se a proposta for aprovada pela comissão, precisará de homologção por Gilmar Mendes e, posteriormente, será submetida ao plenário do STF.
Tensão entre deputadas marca discussão
O debate sobre o marco temporal gerou atritos entre parlamentares indígenas. Na sexta-feira, o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), indicou a deputada bolsonarista Silvia Waiãpi (PL-AP) como titular na comissão de conciliação do STF. A decisão gerou rechaço da deputada Célia Xacriabá (Psol-MG), que pediu para ser promovida a titular, sem sucesso.
Durante a audiência desta segunda-feira, Célia Xacriabá afirmou ter sido impedida de se sentar à mesa.
“De maneira revoltante, hoje não pude sentar à mesa. Posso falar de pé, posso falar caminhando, porque nossa luta é coletiva. O Congresso Nacional quis usar uma figura simbólica de mulher indígena para contrapor um voto de violência”, declarou.
Silvia Waiãpi rebateu, alegando que sempre participou das discussões, mesmo antes da nomeação. Também questionou por que Célia Xacriabá não havia contestado a participação de deputados brancos na comissão.
Lideranças do agronegócio contestam proposta de Gilmar Mendes
Parlamentares ligados ao agronegócio também criticaram a proposta do gabinete de Gilmar Mendes. O deputado Pedro Lupion (PP-PR), presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária, afirmou que a minuta ignora o cerne do marco temporal.
“Nossa preocupação é o direito à propriedade e a segurança jurídica dos produtores rurais”, disse Lupion.
A proposta ainda passará por ajustes antes da deliberação final pelo STF e, eventualmente, pelo Congresso Nacional. A próxima semana será decisiva para definir o futuro das regras sobre demarcação de terras indígenas no país.
Principais pontos em debate:
- Fim do marco temporal:
Mantém a decisão do STF de setembro de 2023, que considerou inconstitucional a tese de que só teriam direito a terras indígenas os povos que as ocupavam em 5 de outubro de 1988 (data da Constituição). - Atividades de interesse público:
Permite mineração, obras de infraestrutura (transporte, energia, saneamento) e exploração de recursos estratégicos em terras indígenas, desde que haja consulta prévia às comunidades, participação da Funai e do Ministério Público Federal (MPF). - Indenizações:
Propõe compensações financeiras a proprietários não indígenas que comprovarem posse direta de áreas reivindicadas. - Critérios técnicos:
Exige estudos fundiários, histórico de ocupação e descrição de atividades produtivas indígenas para demarcações.
Conflitos e polêmicas
- Mineração em terras indígenas:
É o ponto mais controverso. Ruralistas defendem a atividade como “estratégica”; indígenas a veem como ameaça. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) abandonou a comissão em 2023, alegando que “direitos não se negociam”. - Substituição de Célia Xakriabá:
A deputada (PSOL-MG), indígena e líder da Frente Parlamentar Indígena, foi substituída pela ruralista Silvia Waiãpi (PL-AP), que nunca participou das reuniões. Xakriabá criticou: “É um desrespeito colonial. Querem enfraquecer nossa luta”. - Pressão ruralista:
Pedro Lupion (PP-PR), presidente da Frente da Agropecuária, exigiu a manutenção do marco temporal: “Sem ele, não há segurança jurídica. O Congresso aprovou a lei com 400 votos”. O setor apoia a PEC 48, que busca incluir o marco na Constituição. - Audiências em 24 de junho:
Debaterão pontos divergentes. Se não houver consenso, o STF votará os artigos controversos. - Homologação:
Qualquer acordo precisará ser aprovado pelo plenário do STF e pelo Congresso. - PEC 48:
Tramita no Senado e pode consolidar o marco temporal, ignorando a decisão do STF.
Próximos passos