70 anos são um sopro

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Pesquiso no calendário e descubro que o dia 29 de setembro de 1950 caiu numa sexta-feira. Então chega de Natal, nesta semana, a mensagem do cientista político José Antonio Spinelli, um amigo desde o tempo de adolescência. Em seu ponto mais comovente, Spinelli me fala:    

“Chegar aos 70 anos, no tempo da nossa adolescência e da juventude, e mesmo há 20 anos atrás, era quase impensável!
E então: como encararmos o futuro? Que planos podemos fazer? Que perspectivas temos?”

São perguntas difíceis de serem feitas e mais ainda de serem respondidas. Diante do complexo que envolvem, eu lhe disse que eram motivo para um novo texto. É o que procuro fazer a seguir.

Todos os militantes socialistas do Brasil, nos anos da ditadura, jamais esperaram completar a idade que agora atravessamos. A morte estava ali, aqui, já, hoje ou logo amanhã de manhã. As prisões, torturas e assassinatos de companheiros se sucediam, e chegavam cada vez mais perto de nós mesmos, dos camaradas da última sexta-feira de carnaval. Por que nos poupariam o fim? Daí que vivíamos todos sob alta tensão. Daí que vivíamos todos como se ganhássemos as últimas horas do último dia. Mas sobrevivemos, só Deus e o Diabo sabem como.

Agora, sob um governo fascista, problemas que julgávamos resolvidos voltam à tona. O que será dos nossos direitos? O que será do trabalho dos nossos filhos? Haverá um mundo digno do nome para as novas gerações? Para essas perguntas bem sabemos a resposta: vamos à luta, não podemos submergir em um mar de angústia e desesperança. O problema é que no contexto geral desse fascismo vêm as perguntas particulares para a nossa idade: como podemos encarar o futuro? Que planos faremos? Que perspectivas temos?

Para quem atinge os 70 anos, o futuro a ser vivido é curto, pode até nem atingir o fim deste dia. Nesse aspecto, é uma repetição dos anos de ditadura, em inesperada semelhança. No entanto, a resposta hoje é bem diferente daqueles dias. Hoje, devemos encarar o futuro sem lhe destacar o prazo certo, pequeno de tempo. Para o breve futuro caminhamos na certeza de que até o fim viveremos com a força do que sabemos fazer e acreditamos. Ateus, materialistas, não teremos o céu depois da morte. O céu é nosso trabalho, aqui, agora, de hoje até o último segundo. O inferno é negar o que temos de melhor em nossa alma, porque de ideias e sentimentos somos feitos.

Mas que planos faremos? Para tão curto espaço de horas o plano é amar, beijar as pessoas, dizer-lhes o que nunca lhes dissemos, porque temos a consciência do próximo mergulho que não projetamos. E trabalhar, e trabalhar, e trabalhar para realizar o melhor que somos. Admitamos, esse é um grande plano. Pois devemos dividir e multiplicar as lições que acumulamos.  Queremos aquele alto que Joaquim Nabuco expressou tão genial em seu fim:

– Doutor, tudo, menos perder a consciência!

Se a perdemos, já não somos. E quando a perdermos, não seremos. Não deve haver lágrimas para um corpo inútil corpo, sem identidade. Então o plano é ser, o ser pleno, o plano é pleno. Até onde possamos sorver a plenitude.   

Mas que perspectivas temos? Daqui onde estamos, nesta hora, que olhar podemos lançar para o porvir? Uma resposta está no que vimos há pouco, nas linhas anteriores. Outra quase resposta  talvez se encontre no romance “A mais longa duração da juventude” em uma de suas páginas:

“A resistência, que é vida, se faz na brevidade pelas ações e trabalho dos que partiram e partem. Mas nós, os que ficamos, não temos a imobilidade da espera do nosso trem. Nós somos os agentes dessa duração, o trem não chegará com um aviso no alto-falante, ‘atenção, senhor passageiro, chegou a sua hora’. Até porque talvez chegue sem aviso, e não é bem o transporte conhecido. O trem é sempre de quem fica. E porque somos agentes da duração, a nossa vida é a resistência ao fugaz” 

Quando olho os primeiros dias, sinto que importantes foram as pessoas que conheci. E nelas incluo objetos  e animais que humanizei sem saber que esse era o nome. Então vêm a cadela Chandu, de olheira negras; então revejo encantado o boneco Benedito, que falava na frente do Mercado Público de Água Fria; então reencontro um pão com açúcar que um dia recebi de presente da minha mãe.  E outras pessoas como lembrei no Dicionário Amoroso do Recife: 

Euclides, que ensinava a desenhar de graça aos meninos na terra, no chão de um beco da Rua Alegre. Zelita, solteirona, que era discriminada por sofrer de epilepsia. No entanto, nesse Recife bárbaro, Zelita se erguia e ensinava aos meninos contas de dividir, imensas, com divisores de quatro ou cinco algarismos, sorrindo, que era sua maneira de estar com as crianças. Um sorriso triste, mas sorriso ainda assim. E o mestre Arlindo Albuquerque no Colégio Professor Alfredo Freyre, em Água Fria. Nós, os meninos, dele podemos dizer que era o mestre só possível de acompanhar com os nossos queixos erguidos, para melhor vê-lo. Apreendê-lo. Para não perder na sala um só momento seu, com os nossos olhos e ouvidos despertos.

E para não ser injusto nem gerar mágoas em amigos não mencionados, lembro Marco Albertim, jornalista e escritor falecido, a quem dediquei o romance “A mais longa duração da juventude”, modelo do personagem  Luiz do Carmo.

Enfim, ganhei e perdi amigos, amigas, amadas, gente fundamental que carrego até na fala que se corta à sua lembrança. Passem-se os séculos, essas pessoas permanecem. São a minha glória, minha forma e jeito de ser, a minha recompensa em silêncio.  Na altura destes 70 anos, posso dizer que tudo  passou muito rápido. Foi um sopro. Me ocorre agora associar estes dias a um verso de Manuel Bandeira: “Vida noves fora zero”. Mas ao ver aquele  29 de setembro de 1950, posso bem adaptar o poeta: Vida noves fora nasci hoje.

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