A ADI presidencial

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Foto: Alan Santos/PR

Os assessores do Presidente da República prepararam e ele assinou uma Adi, logo formalizada sob o número 6764 no STF requerendo que liminarmente “(…) seja determinada a suspensão do Decreto nº 41.874/2021, do Distrito Federal; do Decreto nº 20.233/2021, do Estado da Bahia; e dos Decretos nº 55.782/2021 e 55.789/2021, do Estado do Rio Grande do Sul” e também que seja fixada “ (…) interpretação conforme à Constituição dos artigos 2º, incisos I, II e IV; e 3º, incisos I e II, da Lei nº 13.874/2019 (Lei de Liberdade Econômica) e dos artigos 2º, inciso I e II; e 3º, incisos II e VI, da Lei nº 13.979/2020 (Lei sanitária de enfrentamento à pandemia), para que se estabeleça que, mesmo em casos de necessidade sanitária comprovada, medidas de fechamento de serviços não essenciais exigem respaldo legal e devem preservar o mínimo de autonomia econômica das pessoas, possibilitando a subsistência pessoal e familiar (…)”

Conquanto se trate de uma Adi, a petição arguiu a violência aos “valores sociais da livre iniciativa e a liberdade de locomoção, além de ver respeitados os princípios da legalidade e da proporcionalidade (artigos 5º, II; XV; e LIV, da Constituição de 1988)”.

A leitura panorâmica da Adi revela que o presidente se encontra em país que não é o Brasil. Como no famoso conto de Rubens Figueiredo, quando lhe convêm ele se acomoda nos olhos de um intruso e o Brasil não lhe interessa porque o futuro fugiu para outro lugar. Então, delirante, ordena sejam feitas coisas que absolutamente não poderiam nem deveriam ser feitas. E em ocasiões, quando lhe convém, demonstra eufórico seus arroubos autoritários e procurando se articular e balançar nas tramoias do poder, faz a bravata de sugerir “medidas duras” e até suscitar inquietações sobre um “estado de defesa” ou um “estado de sítio”. Nesses mecanismos de defesa e ataque à Constituição a Adi é outro artifício encadeado. Não temos que nos estranhar, até na vida mais banal há lugar para tudo.    

O centro da questão – retirando as arandelas de supostas razões que compõem a peça protocolada e até relevando o fato de que os decretos tem vida curta – consiste na ideia de que existe quebra do princípio da legalidade nos atos das autoridades estaduais. Os Estados deveriam ter feito leis para atender a crise sanitária e os decretos emanariam dessas leis. Não existindo, os decretos deveriam respeitar a lei de liberdade econômica e a lei sanitária. Na verdade, como se vê, parece mais controle de legalidade que controle de constitucionalidade. Porém, repito, como se trata de Adi, então parece ter resultado no mínimo “interessante” lembrar da Constituição. A Adi não está muito ligada à questão da liberdade de locomoção, como faculdade com conteúdo jurídico próprio, senão no nexo entre essa liberdade e a livre iniciativa, para justificar que a lei 13874 está sendo atacada e que houve ferimento à proporcionalidade, porque não foram examinadas hipóteses menos gravosas. Da Adi (ou dos assessores) se desprende, então, que “os atos normativos impugnados são inconstitucionais por violação direta ao princípio da legalidade, já que não há – nem no direito ordinário (nacional e local), nem na Constituição – nenhuma provisão que habilite os chefes dos Poderes Executivos distritais, estaduais e municipais a decretar, por autoridade própria, esse tipo de inibição nas liberdades econômica e de locomoção dos cidadãos”.  Logo, que se restrições pode haver são de competência exclusiva do Executivo federal nas hipóteses de estado de defesa e estado de sitio.

Seria cômico se não fosse trágico ler na peça a seguinte afirmação: “A doutrina especializada tem diagnosticado que a experiência de combate ao Covid-19 vem exercendo uma pressão deformadora sobre o conteúdo da Constituição de 1988, que nasceu sob a inspiração de rejeição ao autoritarismo. Diante do aparecimento de diversos atos normativos locais com comandos restritivos dos direitos e liberdades fundamentais dos brasileiros, é possível observar um verdadeiro episódio de mutação informal ilegítima no Texto Constitucional.

Logo, o presidente, que em alguns casos se omite quanto a atos contrários à conquista da democracia e em outros os protagoniza abertamente em homenagens verbais e por escrito a saudosos da Ditadura, assina um trecho no qual pretende se apoiar na ideia de deformações autoritárias dos decretos estaduais. Resulta incrível acreditar a estas alturas da pandemia, após um ano de descumprimento pelo Executivo federal das diretrizes das normas mais elementares de prevenção pautadas pela OMS, demonstrado o atraso e a falta de critérios transparentes, que este seja quem exija respeito à legalidade. Inexiste autoridade moral pera tal exigência.  

De início, deve-se notar que o tema das competências dos entes federativos em matéria de saúde pública foi abordado, já especialmente no marco desta pandemia, tanto pela doutrina como pelo próprio STF na Adin 6341/DF, Rel. para o Acordão. Min. L. E. Fachin. E na verdade, como já tem sido afirmado inúmeras vezes, quanto mais o Brasil se afunda num cenário extremamente grave em termos sanitários mais há que reforçar que os entes federativos sigam as balizas constitucionais em termos de repartição constitucional de competências. Por isso, nenhum deles atua discricionariamente, senão fundados na competência comum e concorrente dos artigos 23 e 24 da CF de 1988 em matéria de saúde. Não vou chover sobre o molhado, mas apenas pontuar que se algo está claro é que no exercício dessas competências, cada ente atinge de alguma forma o comportamento das pessoas. Isso é próprio do Direito: as normas proíbem, permitem ou obrigam a fazer algo. O que não se deve descuidar é que cada um o faça por meio dos órgãos que tenham atribuições para tanto e que o conteúdo de cada diretriz normativa tenha um fundo de razoabilidade atrelado ao valor ou à finalidade constitucional. É dizer, se se trata de limitar a liberdade, então deve haver tanto a devida competência constitucional para interferir na liberdade como também a razoável demonstração de que este é o meio necessário e proporcional para prestigiar tal valor ou tal fim plasmado. No caso em particular, como tem sido todos os dias exposto em quantos canais de comunicação existem, quanto mais se circula mais chances existem de propagação do vírus, ou seja, do que se trata e da proteção da inviolabilidade da vida. É preciso dizer isso quantas vezes?

No primeira plano de análise, o STF já naquela decisão foi bastante assertivo: “O pior erro na formulação das políticas públicas é a omissão, sobretudo para as ações essenciais exigidas pelo art. 23 da Constituição Federal. É grave que, sob o manto da competência exclusiva ou privativa, premiem-se as inações do governo federal, impedindo que Estados e Municípios, no âmbito de suas respectivas competências, implementem as políticas públicas essenciais. O Estado garantidor dos direitos fundamentais não é apenas a União, mas também os Estados e os Municípios”.

Na oportunidade, quando consultados, concordamos tranquilamente com a jurisprudência. Outras vezes tínhamos discordado. Faz parte do ofício. E concordamos porque sustentamos várias vezes que o Estado de Direito brasileiro ostenta um segmento instrumental, do qual faz parte a organização político-administrativa federada, e um segmento finalístico, que aponta à efetividade, no seu maior alcance, caso a caso, dos direitos fundamentais. Por outras palavras, o federalismo, como instrumento de descentralização de funções de legislação, de política pública, de instâncias de decisão, na forma prevista pelo constituinte, somente faz sentido estrutural se voltado à plenitude desses direitos. E por essa trilha deve caminhar a interpretação constitucional. 

Daí nossa concordância, também manifestada em outra oportunidade, com a interpretação conforme do artigo 9, da lei 13.979 de 2020, que nunca diz que o presidente não possa tomar medidas para combater a pandemia, senão que devem ser preservadas as competências dos demais entes federativos. O artigo 23, II, obriga a todos os entes a “cuidar da saúde (…)”, e isso significa que a União através de seus órgãos – em particular o Ministério da Saúde – tem papel essencial para coordenar as ações para combater o vírus. E, junto com a União, os demais entes, todos os Estados, o Distrito Federal e cada um dos munícipios. E essa competência é primordialmente administrativa, que obriga a tomar providências concretas.

Isso não foi entendido até o momento pelo presidente – ou nunca o quis entender – e por isso assusta quando em público manifesta que o STF tolheu sua possibilidade de coordenar saídas à crise e que a responsabilidade recai sobre os demais entes. O presidente tomou a interpretação das diretrizes constitucionais como um golpe político a sua autoridade e não como uma possibilidade de juntar esforços para coordenar ações. É e continua a ser uma posição torpe, irresponsável e, nas atuais circunstâncias, muito vil. Mas, o que fica claro é que o presidente, por um lado, omite-se e afirma ser tolhido na sua competência e, por outro lado, quando os outros entes a exercem, também fica incomodado, porque perde protagonismo e pensa na insatisfação popular ocasionada com as medidas de fechamento comercial. O resultado da ADI pouco importa e o ajuizamento da ação apenas se presta para demostrar que está o presidente do lado de quem representa seu eleitorado mais ferrenho, a quem poderá dizer que foi até o próprio STF para fazer valer a livre iniciativa. Vistas assim as coisas, faz sentido na lógica presidencial uma peça trasnoitada. 

Em outra ação, a ADI 6.343, Rel. Min. A. de Moraes, o STF traçou diretrizes sobre a importância da descentralização administrativa do SUS, instrumento criado pela Constituição e que deve ser especialmente fortalecido e dotado de orçamento, recursos humanos e técnicos para poder avançar com firmeza no combate à crise sanitária. E a Corte concluiu que os condicionamentos que estavam consignados no artigo 3, VI, b, e seus parágrafos 6, 6A e 7, II, da lei 13.979, de 2020, aos Estados e Municípios, para adotar medidas de enfrentamento da pandemia eram inconstitucionais. A pergunta é: qual a ação do Executivo federal para o fortalecimento do SUS? Nisso deveria estar pensando o presidente e não em ações entorpecedoras da saída da crise e reavivar um debate que a nada conduz.

As administrações estadual e municipal têm competências para determinar restrições à locomoção em suas devidas áreas de competência territorial, sem que se cogite de insubordinação a dispositivo legal. Veja-se que os três decretos contra os quais se insurge agora o presidente consubstanciam exercício do poder de polícia, conforme os termos da Lei 13.979, de 2020, em seu artigo 3º, e isso também já tem sido exposto e juridicamente justificado pela excepcionalidade da pandemia. Não se está a caracterizar estado de defesa ou estado de sitio. Tal poder excepcional é exercido em beneficio primordial do interesse público. É um poder para disciplinar condutas, regular e imprescindível para concretizar, em tempos de pandemia, o isolamento social necessário e recomendado pela OMS e as diversas entidades dedicadas ao combate do vírus. Tomar medidas de isolamento ou restrições à circulação se inserem nos marcos do exercício desse poder, que inclui ainda a atividade fiscalizatória. A restrição ao direito de locomoção não torna vítima a quem permanece em casa; por sua vez, a restrição do comércio ou a circulação de bens, não se dirige ao estabelecimento considerado de forma isolada, descontextualizada no tempo e no espaço, senão que adquire o caráter de acautelamento necessário fazendo com que todos os membros da coletividade sejam beneficiados.

O presidente deveria coordenar junto aos demais entes federativos medidas efetivas de auxílio, outorgando subsídios substanciais, e promover uma negociação com o capital industrial, comercial e financeiro, com fundamento no artigo 3º, da Carta, que traça os objetivos fundamentais da República, comprometendo-os em ações de solidariedade permanente para resolver a crise de quem mais padece economicamente; deveria, igualmente, ter iniciativa jurídica para convênios internacionais que promovam a aquisição das vacinas e iniciativa política para focar na vacinação rápida da coletividade brasileira.

Haverá um novo tempo em que o trágico seja superado pela dignidade e a felicidade do ser humano. Por enquanto resistir e agir, para que isto passe logo, por supuesto.

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